Memória
Instituto de Psicologia confere diploma póstumo a Aurora Furtado, assassinada pela Ditadura Militar, em cerimônia tocante que também lembrou Iara Iavelberg
Emoção e revelações foram a tônica da solenidade realizada em 30 de outubro, com a participação de ex-presos(as) políticos(as) e de amigos(as) de “Lola”, como era conhecida Aurora Maria Nascimento Furtado, executada no Rio de Janeiro em 1972, aos 26. Iara, que estudou e lecionou no então Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, e foi igualmente assassinada pelos militares (em 1971, aos 27), foi citada e homenageada pela diretora Ianni Regia Scarcelli e pela estudante Diana Badaró Marques
(atenção: trechos no final desta matéria descrevem torturas)
“É com grande honra e reverência que abro essa cerimônia em memória de Aurora Maria Nascimento Furtado, estudante de psicologia assassinada pela Ditadura Militar em 10 de novembro de 1972, aos vinte e seis anos. Aurora ou Lola, como era chamada, lutou corajosamente contra a ditadura que trouxe danos irreparáveis à sociedade brasileira”.
Assim a professora Ianni Regia Scarcelli, diretora do Instituto de Psicologia da USP, deu início à solenidade realizada na tarde de 30 de outubro no Auditório Carolina Bori, na presença de cerca de duzentas pessoas, público que incluia amigos de faculdade de Aurora, camaradas da luta contra o regime ditatorial, docentes, funcionários(as), estudantes, dirigentes da USP.
A vice-reitora Maria Arminda do Nascimento Arruda, a pró-reitora Ana Lucia Duarte Lanna (Pertencimento e Inclusão) e o pró-reitor Aluísio Augusto Cotrim Segurado (Graduação) eram os representantes da Reitoria presentes na mesa do evento, que contou ainda com a participação de Vera Silvia Facciolla Paiva, docente do Departamento de Psicologia Social do IP e representante da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania; de André Carreiro Kohan, diretor do Diretório Central dos Estudantes (DCE); e de Diana Badaró Marques, diretora do Centro Acadêmico Iara Iavelberg (CAII).
A solenidade integrou o projeto “Diplomação da Resistência”, iniciativa da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP) e da Pró-Reitoria de Graduação (PRG), que assim respondem a uma das principais recomendações do relatório final da Comissão da Verdade da USP, publicado em 2018: a de conferir diplomas de graduação honoríficos a trinta e três estudantes que não puderam concluir seus cursos por terem sido assassinadas(os) pela Ditadura Militar (1964-1985). O projeto foi sugerido pela vereadora paulistana Luna Zaratini (PT) e pelo coletivo estudantil Vermelhecer. A cerimônia de 30 de outubro contou com a participação do grupo TEIA – Memória e Patrimônio Cultural do IP.
Na continuação de seu pronunciamento, a diretora do IP traçou o panorama político e social resultante de vinte e um anos de Ditadura Militar. “Danos como o aprofundamento da desigualdade social, a violação dos direitos humanos, a censura, as reformas que privatizaram e sucatearam a educação pública, desqualificaram a formação crítica, o silenciamento, o apagamento da memória”, sintetizou. “Esses danos, legado indelével desse regime, ainda estão presentes em nosso cotidiano, expressado pela desumanização da população pobre, pela violência contra as pessoas negras, contra pobres e indígenas, contra a população LGBTQIA+, contra as mulheres, e também pelas práticas de genocídio, de campos de concentração, enfrentadas em presídios, em hospícios e diversos locais. Por isso é fundamental lembrar das consequências desse período que ainda ecoam na nossa sociedade. E é fundamental lembrar pessoas e dos grupos que lutaram e faleceram para que o regime ditatorial pudesse arrefecer”.
Ianni distanciou-se da visão predominante na PRIP, de excluir dessas homenagens quem já “recebeu seu diploma”. Depois de mencionar que o processo chamado de “transição” ocorrido ao final da Ditadura envolveu “um pacto de silenciamento”, ao invés de “políticas de memória, reparação e justiça”, ela enfatizou a importância de “lembrar e honrar Aurora, e a partir dela lembrar e honrar todos os estudantes, funcionários e professores da USP que foram mortos pela Ditadura”. Citou, então, a outra perda sofrida pelo curso de Psicologia naquele período. “Creio que se Aurora estivesse viva estaria engajada hoje na luta contra as injustiças, as desigualdades, as violências. Mas apesar de Aurora não estar com vida, ela está viva na memória. Assim como Iara Iavelberg, ambas mulheres corajosas, que contribuíram para o que somos hoje, nós aqui na Psicologia. Pois elas continuam presentes por terem lutado incansavelmente para que não fôssemos silenciadas”, frisou.
“Nós nos movemos e respiramos nos espaços que Aurora e Iara ajudaram a construir, e é nossa responsabilidade continuar sua luta buscando um Brasil mais justo e inclusivo. Aurora e Iara resistem. Iara formou-se psicóloga. Aurora não teve essa possibilidade em vida. Por isso, temos a honra hoje de conferir a Aurora Maria Nascimento Furtado o diploma honorífico de Psicologia pela Universidade de São Paulo, diploma que será colocado em auditório do Instituto de Psicologia que leva o seu nome”, concluiu Ianni, sob aplausos.
“Lola sempre foi psicóloga, em sua militância pela democracia”, considera Diana
A estudante Diana Badaró, representante do CAII, propôs uma reflexão sobre os sentidos da homenagem a Lola. “A todas as iniciativas e instâncias que nos permitem honrar e celebrar sua memória, aplaudimos sem restrições, de mãos dadas. Como representação política dos estudantes de Psicologia da USP, e sendo esse nosso primeiro encontro implicado com uma Diplomação da Resistência da nossa própria história, da nossa própria memória, pareceu essencial nos questionarmos: por que homenagear Aurora com uma diplomação? Diplomar Lola é poder chamá-la ‘psicóloga’, é evocar uma pessoa que queríamos ter conhecido, e que precisaríamos conhecer, juntos: formada e habilitada”, disse. “Entender uma Lola que sempre foi psicóloga, em sua militância pela democracia, pelo direito ao bem-estar social, à moradia, ao trabalho digno, à educação e a um sistema político que possibilitasse o livre direito, sem o medo da violência do Estado e da miséria. Uma psicóloga que entendia a saúde através e pela democracia — representante, em sua luta, da nossa futura profissão”.
Referindo-se a depredações com suásticas nazistas encontradas no Bloco Didático do IP no primeiro semestre deste ano, Diana defendeu que esse fato não pode ser esquecido ou minimizado, porque os símbolos da violência não devem ser banalizados nem entendidos como mero vetor emocional. “Pois é precisamente no mundo emocional que vive a memória, da qual ela se tece, e é dessa malha que se constroi, por exemplo, a equivocada ideia de que a Ditadura Militar golpista e ilegítima que assolou nosso país foi em alguma medida um ‘mal necessário’, uma ‘ditabranda’ ou, ainda, a ideia de que ela terminou plena e pacificamente em um estado democrático de direito que a superou. E é nesse mundo emocional que a extrema-direita parasita, sob o pretexto da banalização de todos os símbolos, aproveitando cada e toda oportunidade para elogiar os supostos avanços e méritos desse regime hediondo”.
Uma sociedade violenta constitui-se em primeiro lugar na mentira, afirmou a diretora do CAII. “Como outrora, quando foi veiculada, de maneira covarde, a morte de Lola: reduzindo sua luta incessante à imagem de uma mulher que denunciaria seus próprios companheiros e que fugiria da luta. Pior ainda, colocando-a dentro da categoria, a preferida dos norte-americanos, de ‘terrorista’ — a mesma em que entrou a nossa Iara Iavelberg e tantas outras e outros camaradas: os primeiros a serem depois nomeados como exceção na Lei da Anistia do ilegítimo governo Figueiredo”. Lembrar-se sempre “da mentira por detrás de cada violência” permitirá, ademais, combater a “Ditadura que permanece hoje: da meritocracia que preserva uma USP branca e elitista, do silêncio frente ao sofrimento LGBTQIA+, do racismo assassino que funda a Polícia Militar”, apontou Diana. Porque não há “banalização da violência, nem um Outro monstruoso para direcionar atrocidades, sem essa mentira”, que atribui a individualidades irracionais a responsabilidade por uma sociedade “profundamente desigual, racista, intolerante e violenta”, uma sociedade que “pode e deve ser repensada, refeita, por todos nós”.
A representante do CAII encerrou sua manifestação com um elogio à determinação e ao destemor de Aurora. “Aplaudimos e reverenciamos, indo de encontro à nossa Lola, que lutou até o último instante contra a violência de estado e as desigualdades por ele protegidas, com convicção e coragem inabaláveis, como a melhor representante da Psicologia que qualquer um de nós terá, maior que qualquer teoria estudada entre quatro paredes”, exaltou. “Pois na sua luta encontramos a origem e o destino da nossa prática, de sempre pensar cada cuidado como político e cada indivíduo como coletivo. E assim nos unimos, com convicção e orgulho, para diplomá-la psicóloga, hoje e para sempre. Aurora, presente!”.
André Kohan levantou, igualmente, correspondências incômodas entre passado e presente. “Na Ditadura Militar, a Reitoria desta universidade queria tutelar, calar e reprimir aquelas e aqueles que se levantavam contra a repressão e o autoritarismo, aquelas e aqueles que ecoavam as vozes dos estudantes. Era a Universidade do silêncio, como nomeou certa vez Florestan Fernandes. Mas, apesar da forte repressão e colaboração da USP com o regime militar, os estudantes fundaram esta entidade paralela, livre e clandestina, para que nossos gritos e protestos jamais fossem abafados e nossa luta pudesse continuar se organizando”, manifestou o diretor do DCE-Livre.
“É por isso que a diplomação honorífica de Aurora Furtado é um importante movimento para honrar a memória da sua vida e de sua luta, bem como de todos os outros 46 membros da comunidade USP que foram assassinados durante a Ditadura Militar. Um momento de reparação histórica, de afirmar a disputa de projeto e memória desta universidade pública, de transformar nossos lutos na continuidade da luta”. “Não toleraremos que nomes como Luis Antonio da Gama e Silva, que foi reitor e professor de Direito desta universidade durante a Ditadura e redator do Ato Institucional número 5, tenham voz e espaço na USP”, destacou.
“Lola, imagino-me conversando contigo pelos corredores de nosso instituto e dividindo nossas aflições do presente e da atualidade das batalhas que você e suas companheiras e companheiros travaram para dentro e para fora de nossa universidade”, prosseguiu, para então referir-se ao PAD instaurado pela Reitoria contra cinco alunos. “Pergunto-me o que você nos diria, ao te encontrar em uma reunião do nosso centro acadêmico, ou numa assembleia, em que seguimos enfrentando a perseguição da universidade a estudantes que não se calaram ao denunciar as colaborações da USP com universidades do estado genocida de Israel, com base no mesmo regime disciplinar que buscava perseguir estudantes como você”.
Na sua conversa imaginária com Lola, Kohan descreveu “a forma antidemocrática dos órgãos desta universidade”, a “reprodução de uma estrutura elitista, racista, machista e lgbtfóbica que atravessa desde os currículos até os espaços de maior poder da USP” e o fato de ter sido “a última universidade a adotar as cotas sócio-econômicas e étnico-raciais”. Depois, aludiu à gravidade da situação política brasileira, ao golpe fracassado de 8 de janeiro de 2023 e ao projeto da extrema-direita: “São aqueles como Tarcísio de Freitas e o bolsonarismo que seguem com a militarização de nossas periferias e escolas, com a privatização de nossos serviços públicos, retirada de nossos direitos e genocídio da juventude negra, indígena, trans e pobre desse país”. A seu ver, derrotar a extrema-direita e construir uma sociedade alternativa é fazer justiça a Lola. “Aurora Maria Nascimento Furtado, teu legado é uma de nossas trincheiras e estaremos organizadas e em luta pela punição de todos os golpistas do passado e do presente. Não te esquecemos, Lola! Aos nosso mortos, nenhum minuto de silêncio, mas toda uma vida de luta!”, concluiu.
“São muitos os que ainda defendem os algozes de Aurora”, protesta Vera Paiva
De teor igualmente político e marcante foi o pronunciamento da professora Vera Paiva, representante da CEMDP, da qual é integrante desde 2015. Vera é filha do ex-deputado federal Rubens Beirodt Paiva, assassinado pela Ditadura Militar em 1971, desaparecido desde então, e da advogada Eunice Paiva. A história da família Paiva é narrada no filme “Ainda estou aqui”, do cineasta Walter Salles, em exibição nos cinemas nacionais. O filme se baseia no livro homônimo, de autoria de Marcelo Rubens Paiva, irmão de Vera.
“Memória, verdade e reparação é o que estamos trazendo para essa mesa que homenageia Aurora, aluna do IP cuja vida e destino foram interrompidos em 1972, por torturas indizíveis”, principiou Vera. “Talvez o poema de Alípio Freire, que também viveu isso, traduza de uma maneira singular, simples, maravilhosa como sempre, o que significa numa outra linguagem aquilo que foi vivido por ela. O que eu queria marcar é que lembrar é seguir reparando pessoal e coletivamente um passado que ficou marcado como trauma, pessoal e coletivo, para que não mais aconteça. E segue acontecendo. Os assassinos de Marielle Franco estão sendo julgados nesse momento, para a gente não esquecer que assassinatos políticos continuam acontecendo. Indígenas continuam sendo massacrados da mesma maneira”, denunciou.
“A gente tem um monte de situações como em Manguinhos, Acari, Heliópolis e Paraisópolis onde a polícia de estado tortura e mata da mesma forma que a Ditadura matava. Dom Phillips, jornalista, e Bruno Pereira, indigenista, quase viraram desaparecidos, se não fosse a prisão e a confissão [dos assassinos], e aquilo que fizeram com os corpos deles, cortados e espalhados num lugar distante, era o que faziam com os nossos assassinados políticos e desaparecidos já nomeados pelas comissões da verdade”, comparou.
“Lembrar é resistir à tentativa permanente de destruição das democracias, tentativa que ficou marcada em cada vidraça rompida dos prédios de Brasília, no dia 8 de janeiro de 2023”. Tratou-se, acrescentou Vera, de uma repetição do motim ocorrido no dia 6 de janeiro de 2020 em Washington, configurando-se assim um movimento internacional, articulado. “São muitos os que ainda defendem os algozes de Aurora, seguem defendendo a tortura, a morte de inimigos, permitem-se decidir desde os anos 1960 quem vive e quem morre”, acusou.
“O Brasil tem uma história marcada pela violência, mas também marcada pela resistência popular. Multiplicar atos e marcos de memória e verdade sobre essas ditaduras é justamente o que renova a cada geração a defesa dos direitos humanos para todo ser humano, sem discriminação de credo, religião, cor da pele, identidade étnico-racial, de gênero ou sexual. Luto para nós é luta”, sustentou Vera.
“Lola era calada, embora alegre, sempre com sorriso maroto nos lábios”, conta Carmo
Maria do Carmo Reginato Gama de Carvalho, professora aposentada do IP, leu um extenso e comovente relato da convivência com Aurora. “Para falar da Lola”, iniciou, “temos que seguir sempre dois movimentos diferentes, que se passam nos idos de 1960 e 1970: o da amizade, espontânea e sincera, e o da militância política estudantil, mais rigorosa, que nos marcaram a vida e nos trazem lembranças pungentes. O seu próprio nome – Au-ro-ra Ma-ri-a-do-Nas-ci-men-to Fur-ta-do – sempre me pareceu quase um verso alexandrino, sonoro e bem cantado. Ela era calada, meio taciturna, embora alegre, olhar profundo, e sempre com um sorriso maroto nos lábios”, descreveu.
Lola ingressou no curso de Psicologia em 1965, tendo cursado os primeiros anos, mas ausentou-se porque foi perseguida pela Ditadura Militar, “ao ligar-se a atividade política clandestina considerada subversiva pelas autoridades da época”, esclareceu Maria do Carmo, que também participou do movimento estudantil no então Departamento de Psicologia da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. “Nossas atividades na Associação Universitária de Estudos Psicológicos, AUEP, ou Centrinho da Psicologia”, relembrou, eram “artesanais”, realizadas no saguão do famoso prédio da Rua Maria Antônia, no seu porão, ou no amplo salão do Grêmio da Filosofia. “Usávamos um mimeógrafo a álcool, que permitia poucas cópias de texto, meio borradas, e era operado manualmente”.
Maria do Carmo citou dezenas de estudantes que participavam das atividades do Grêmio da Filosofia na época, entre os quais Ecléa Bosi, Maria Helena de Souza Patto, Cesar Ades, Pedro Paulo Chieffi (que posteriormente despontariam como docentes), Cláudio Willer, Consuelo de Castro, e vários que seriam depois assassinados pelo Terrorismo de Estado: João Antonio Abi-Eçab, Catarina Abi-Eçab, Iara Iavelberg, Isis de Oliveira, Antonio Benetazzo, José Arantes — namorado de Lola e seu camarada de militância na Ação Libertadora Nacional (ALN), grupo armado de resistência à Ditadura Militar.
“Aurora participava ativamente dos grupos no Centrinho, principalmente com seus colegas Orlando Bueno, Maria José Reginato, Meyri Chieffi, Norberto de Abreu e Silva. Lembro-me com emoção das visitas de 1971 e 72 que a Lola nos fazia no apartamento onde morei com meu marido, Cley Gama de Carvalho, no centro de São Paulo, ao lado da Biblioteca Municipal. Nosso filho, Keith, era bebê nessa época”, rememorou. “A Lola gostava muito de pegar o bebê no colo, dizia o quanto gostava disso, e o quanto gostava do cheiro de feijão no fogo, de como era bom sentir o cotidiano, a vida da família. Tomava cafezinho conosco, eram visitas breves”.
Maria do Carmo relatou, então, o derradeiro encontro das amigas. “Certa vez, creio que em 1972, no início do ano, sua última visita, conversamos muito entristecidas sobre a morte de seu companheiro José Arantes, morto pela repressão da Ditadura”. Lola contou-lhe, “com a intensidade do amor que sentia por ele”, que a música predileta dos dois era ‘Último Desejo’, de Noel Rosa. “Ela parecia saber que não havia mais saída para sua situação, a não ser continuar lutando. Descemos pelo elevador, fomos tomar um cafezinho na praça da Biblioteca. Antes de sairmos, ela me disse se não teria medo de estar com ela na rua, e me mostrou um revólver, que acredito era para sua proteção, se necessário. Eu respondi que tinha ‘um pouco de medo’, mas que gostaria de descer com ela. E então fomos”. Tomaram o cafezinho num bar, “com muito prazer”, e depois se despediram. “Nesse mesmo ano de 1972, soubemos de sua prisão pela repressão. Teve morte sob tortura cruel na ‘cadeira do dragão’, com a ‘coroa’ ou ‘tiara de Cristo’. Que afundou sua cabeça, esmigalhando-a”.
“Enredo de Em Câmara Lenta é a história da vida de Aurora na luta armada”
Também pungente, por mesclar análise histórica e testemunho carregado de afeto, foi o depoimento do professor João da Silva Ribeiro Neto, ex-presidente do Grêmio da Filosofia e cunhado de Maria do Carmo. “A história da luta armada contra a Ditadura Militar continua desconhecida. Permanece na clandestinidade, da mesma maneira como ela se realizou, pois até hoje, a única iniciativa oficial de recuperação dessa memória foi a das comissões da verdade, criadas durante o governo da presidenta Dilma Rousseff”, lamentou. “Essas comissões todavia não podiam produzir provas criminais contra os torturadores. Esta condição tirou a efetividade das comissões e ajuda a entender em parte a presença avassaladora da extrema-direita na política brasileira atual”.
“Conheci a Lola, assim que ela entrou na faculdade, em 1965, quando eu estava no terceiro ano, porque entrou junto com minha futura esposa, Maria José Reginato, para fazerem o curso de Psicologia. Nesse mesmo ano, entrou no curso de Física da Faculdade de Filosofia José Arantes, que tinha sido expulso do ITA [Instituto Tecnológico da Aeronáutica] na repressão que se seguiu ao golpe militar de 1964. Nesse ano de 1965, eu havia sido eleito presidente do Grêmio da Filosofia, e num encontro de presidentes de centros acadêmicos organizado pela UEE, União Estadual de Estudantes, em Piracicaba, assisti ao início do namoro dos dois. Militávamos no mesmo grupo político e convivemos muito”.
Na época, Lola morava na rua Joaquim Antunes, em Pinheiros, na capital paulista, lembrou Ribeiro Neto. Ela tinha uma irmã no curso de ciências sociais, Laís, que se casou com Renato Tapajós, que posteriormente escreveria na prisão o romance Em Câmara Lenta, “cujo enredo é a história da vida de Aurora na luta armada”. O livro foi lançado em 1977, teve exemplares apreendidos pela polícia, e o autor, acusado de “subversão”, foi novamente encarcerado.
Lola e Arantes tornaram-se depois militantes da ALN, “e ambos morreram na luta armada, a Lola torturada brutalmente pelos órgãos da repressão, no Rio de Janeiro, em 1972, quando utilizaram a técnica da coroa de Cristo, uma argola com torniquete, que estourou a cabeça dela, fazendo os olhos saltarem das órbitas, como testemunhou sua advogada, que pôde ver o cadáver devolvido à família, em seguida à morte dela”. José Roberto Arantes de Almeida, que militou no Partido Comunista Brasileiro (PCB), depois na Dissidência Comunista, na ALN e por fim no Movimento de Libertação Popular (Molipo), foi preso em São Paulo por agentes do II Exército (DOI-CODI) em 4 de novembro de 1971, e igualmente assassinado sob tortura. No entanto, os militares difundiram a versão de que ele morreu durante um tiroteio.
“Minha relação com a Lola sempre foi muito próxima, por ela ser colega de minha esposa. Ela esteve no nosso casamento em janeiro de 1969, apesar de já estar vivendo clandestinamente, convivência que continuou nos três anos seguintes, esporadicamente, quando ela precisava de hospedagem, até sua morte em 1972”, recordou o professor. “A Lola era uma moça doce, meiga, afetiva, não tinha aparência nem personalidade que costumamos atribuir a urna guerrilheira, que teoricamente deve ser uma pessoa dura. Todavia, um general, Adyr Fiúza de Castro, então chefe do CODI no Rio de Janeiro, ao responder à pergunta se ele admirava algum inimigo, citou a Aurora como exemplo de coragem e competência, pois enfrentara vários policiais sozinha, quando foi presa, tendo em seguida sido torturada e assassinada”.
Lola tinha sido muito amiga de Ísis Dias de Oliveira, aluna do curso de ciências sociais, e militante como ela da ALN, contou Ribeiro Neto. “Atuaram juntas na luta armada, e foi Lola quem telefonou para os pais de Ísis, quando ela foi presa. Depois dessa prisão nunca mais se teve notícia dela. Ela faz parte da lista dos desaparecidos, termo usado como eufemismo para assassinato, que foram presos pela repressão da Ditadura Militar”.
Também se pronunciaram no evento a vereadora Luana Alves (PSOL), psicóloga formada pelo IP e mestranda da unidade; o professor Luiz Guilherme Galeão, do IP, em nome do grupo TEIA; Renato Cymbalista, diretor de Direitos Humanos e Políticas de Reparação, Memória e Justiça da PRIP; a pró-reitora Ana Lanna e o pró-reitor Aluísio Segurado; e a vice-reitora Maria Arminda.
“Um momento como esse é tão fundamental quanto perturbador. As solenidades de entrega dos diplomas honoríficos aos estudantes da USP que foram brutalmente assassinados pela Ditadura são uma tentativa de reparar o irreparável”, declarou a vice-reitora. “São momentos fundamentais para reconhecermos a barbárie, para nos lembrarmos de que devemos enfrentar e lutar contra essas situações irreparáveis”.
Após tantas manifestações carregadas de emoção, a última fala realizada no evento trouxe uma surpresa adicional. Flávio Sales, ex-militante da ALN, revelou que Aurora estava grávida de quatro meses quando morreu, como resultado do relacionamento que ambos iniciaram após a morte de José Arantes. Ele cobrou uma perícia nos laudos médicos legais, porque havia evidências da gestação que seria impossível não detectar.
A cerimônia de homenagem à memória de Aurora contou, ainda, com apresentações artísticas. A cantora Beth Amim e o pianista Sérgio Carvalho, ambos do Coral USP, interpretaram o Hino Nacional e “Viola Enluarada”, canção de Marcos Valle e Milton Nascimento. O professor José Moura Gonçalves Filho, do IP, declamou a poesia “Prenúncios de Aurora”, de autoria do jornalista, escritor e artista plástico Alípio Freire (1945-2021).
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