Conjuntura Nacional
Grupo de lobby do agronegócio, “De Olho no Material Didático” tem convênio com a Esalq e apoio da Fealq, fundação privada dita “de apoio”
“Agro pede alteração de conteúdos em livros didáticos”, dizia singelamente a manchete da página B3 da edição de 27 de agosto último do jornal Valor, a mais importante publicação nacional voltada para o noticiário de economia e negócios. A respectiva matéria traz, com destaque, um retrato de Letícia Jacintho, presidente da associação denominada “De Olho no Material Escolar” (Donme), que é a principal fonte consultada e, segundo o jornal, é “sócia da ZJ Investimentos, que atua nas áreas de grãos e cana de açúcar”.
Criada em 2021, a “De Olho no Material Escolar” é um grupo de lobby que pretende mudar conteúdos de livros didáticos e sistemas de ensino considerados pelo agronegócio “negativos”, “autorais” ou “opinativos”. A simples publicação da matéria com tal destaque num importante jornal nacional revela que o grupo é eficiente. Como observa o próprio Valor: “A iniciativa ocorre em um momento em que há discussões em andamento sobre o novo Plano Nacional de Educação (PNE), que valerá para os próximos dez anos, e para a Base Nacional Curricular Comum (BNCC)”.
Letícia Jacintho tem demonstrado agilidade em divulgar as ideias da associação, em cujo site é possível constatar que neste ano ela já publicou onze artigos seus sobre educação, o que inclui mídias jornalísticas de certo prestígio como Estadão, Poder 360 e Forbes Agro, além de outras politicamente alinhadas ainda mais à direita, como Gazeta do Povo e Revista Oeste. Segundo minibio publicada pelo Poder 360, Letícia é graduada em administração de empresas pela Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), “atuou no mercado financeiro, na área de captação e fundos e no agronegócio”, integra o Conselho Superior do Agronegócio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e ainda é “comentarista do programa ‘Conexão Campo Cidade’, do site Notícias Agrícolas”.
Já em 20 de junho de 2022, a “De Olho no Material Didático” firmou um convênio de cooperação com a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP), com a finalidade de criar a “Agroteca”, uma biblioteca virtual com conteúdo relativo ao agronegócio. A “Agroteca” tem um curador, que é o professor Rafael Otto, do Departamento de Ciência do Solo da Esalq.
“O material poderá ser utilizado por professores e professores-autores do ensino fundamental e médio dos setores educacionais público e privado do Brasil. A produção desses conteúdos entrará na composição de materiais didáticos, aplicados em salas de aula e em atividades extracurriculares”, diz o site da Esalq. “Esse convênio de cooperação é importante a fim de melhorarmos a imagem do agro no Brasil. A base de todo esse conteúdo a ser produzido é a ciência, que sempre mostrará os rumos a serem seguidos por uma sociedade justa e sustentável”, declarou candidamente o então diretor da Esalq, Durval Dourado Neto.
A parceria entre Donme e Esalq envolveu ainda um terceiro protagonista: a Fundação de Estudos Agrários Luiz de Queiroz (Fealq), que é uma entidade privada, dita “de apoio” à Esalq e responsável pela gestão de cursos pagos oferecidos naquela unidade. De acordo com o site da Fealq, essa fundação privada “ficará responsável pela gestão financeira, divulgação e orientação jurídica do projeto”, ou seja: da Agroteca.
A Donme anuncia no seu site, por sua vez, que o convênio de cooperação com a Esalq tem a finalidade de “levar o verdadeiro papel do agro para o Brasil, contando com a sua história e contribuição para o panorama e desenvolvimento nacional, além da visão holística do agronegócio, atualmente, para o Brasil e para o mundo”. Ela se define, ali, como “uma organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, que busca a melhoria da qualidade da educação brasileira por meio do ensino pautado em evidências científicas, conectado com a vivência prática e focado nos resultados da aprendizagem, para que as futuras gerações desenvolvam plenamente seu potencial e tenham oportunidade de uma vida produtiva e próspera”.
Em artigo publicado em 2023 no Poder 360, intitulado “Livros didáticos devem ser técnicos, não opinativos”, Letícia elenca as principais críticas de seu grupo ao que consideram ser um conteúdo enviesado e errôneo da maior parte dos materiais didáticos que abordam questões referentes ao agronegócio. Curiosamente, ela se baseou num estudo encomendado a outra fundação privada dita “de apoio” à USP, a Fundação Instituto de Administração (FIA). No entanto, a FIA é ligada à área de administração de empresas, não tendo expertise nem em educação nem em agricultura, agronegócio ou áreas afins, como meio ambiente.
O estudo da FIA, alega Letícia no artigo, “atestou como o agronegócio é majoritariamente associado nas salas de aula à destruição ambiental, exploração social, doenças, conflitos” e outros problemas. “A absoluta maioria (96%) das menções autorais e opinativas [sic], sem justificativa científica. O estudo reuniu 12 analistas de conteúdo e especialistas do agronegócio, durante mais de 3.000 horas, para avaliar mais de 9.000 páginas de 10 das principais editoras que fornecem livros para o PNLD [Programa Nacional do Livro Didático] utilizados nas redes pública e privada do país”, detalha a presidente do “De Olho”. Ainda segundo ela, foram identificadas “746 passagens negativas (ou ‘fortemente negativas’) sobre o setor rural nos livros da amostra, 60% a mais que menções neutras ou positivas”.
Na recente matéria publicada por Valor, a presidente da Donme volta a citar o estudo de 2023, mas acrescenta alguns dados, como o número de livros do PNLD analisados (94) e o número de citações positivas relativamente ao agronegócio (472). “Além disso, apenas 3% das informações têm fontes científicas. Quase tudo é autoral. Percebemos o quão longe os materiais estão do setor produtivo”, protestou, como se materiais didáticos tivessem obrigação de “proximidade” com algum setor da economia.
Além de Letícia, a Donme conta na sua composição com outros nomes conhecidos do setor, como os de Roberto Rodrigues, ex-ministro da Agricultura, e do cientista político Christian Lohbauer, vice-presidente da associação. De acordo com reportagem da organização não governamental Repórter Brasil publicada por Carta Capital, Lohbauer é ex-presidente da Croplife Brasil, empresa que representa multinacionais produtoras de agrotóxicos, sementes e outros insumos agrícolas, e foi um dos fundadores do Partido Novo.
Pesquisadores traçam paralelos entre Donme e “Escola Sem Partido”
No artigo científico “De Olho no Material Escolar: o Agro quer ser Pop nas escolas combinando força e consenso”, publicado em agosto de 2024 na revista Pegada, os pesquisadores Warllen Torres Nannini e Marcus Fernandes Marcusso analisam os fundamentos da atuação desse grupo de lobby e traçam um interessante paralelo com o movimento “Escola Sem Partido”.
Eles destacam que, inicialmente, a organização era formada apenas “por mulheres ligadas ao agronegócio, que se autointitulam mães do Agro”, e que teria surgido espontaneamente, “perante a insatisfação de diversos pais de alunos com o material escolar ministrado pelo sistema Anglo”, o que resultou na publicação de uma carta endereçada ao Colégio Anglo localizado em Barretos (SP).
A carta criticava a suposta presença de uma abordagem “negativa” e “preconceituosa” do agronegócio no material didático do Anglo. As apostilas fornecidas aos alunos estariam, assim, “impregnadas de posições ideológicas que reduzem o agronegócio ao papel de vilão nacional, pois, segundo os pais dos discentes, o setor é um importante pilar econômico e social da região de Barretos”.
Na perspectiva das “mães do Agro”, o material didático deveria, inversamente, “desenvolver nos alunos um sentimento de orgulho em relação ao agronegócio, como setor moderno, símbolo de progresso e desenvolvimento econômico e socioambiental”. No entanto, apontam os autores do artigo, citando tese de Frederico Fermiano, “a carta não destaca os impactos socioambientais negativos provenientes da monocultura da cana-de-açúcar, tais como desmatamento, emissão de diversos gases poluentes na atmosfera devido à queima da lavoura no período da colheita, redução dos recursos hídricos pelo consumo exorbitante de água na irrigação, além das condições de trabalho análogas à escravidão”.
Um vez constituída, a associação Donme “iniciou um movimento que tem como alvo o Ministério da Educação, editoras de materiais didáticos e diversas instituições de ensino espalhadas pelo Brasil”, as quais “são pressionadas pela campanha ‘De Olho no Material Escolar’, que reivindica a revisão dos conteúdos de ensino, das orientações curriculares e uma nova postura dos professores no que concerne às temáticas relacionadas ao modelo de produção do agronegócio”, prossegue o artigo, examinando aspectos práticos da atuação do grupo.
“As lideranças desse lobby alegam que o sistema de ensino e diversos materiais didáticos são instrumentos que disseminam pela sociedade uma visão de mundo equivocada sobre o agronegócio, desferindo críticas indevidas ao setor. Assim, o programa ‘De Olho no Material Escolar’ sugere que as mães fiscalizem e monitorem os materiais didáticos utilizados nas escolas [em] que seus filhos estão matriculados, sobretudo, que elas observem a maneira como o agronegócio é retratado neles. Dessa forma, recomendam que os alunos façam fotos, vídeos ou registros dos professores (debatendo conteúdos relacionados ao agronegócio em sala de aula), assim como dos materiais didáticos utilizados, buscando comprovar qualquer crítica ao agronegócio presente nos materiais escolares”.
Citam outra autora, Tássia Cordeiro, para quem a ação original da campanha chama a atenção por sua capacidade de mobilização e pela distinção de suas práticas. “Esta nova frente de atuação parece ter como elemento predominante a coerção/intimidação, portando, almeja uma produção forjada de consensos, campo de ação que se assemelha às táticas de atuação do ‘Escola sem Partido’, grupo que objetiva coibir a abordagem de determinados temas em sala de aula devido ao teor político, ideológico e religioso de tais assuntos, ou seja, inibir as discussões políticas que criticam o capitalismo, proibir o debate das questões de gênero e de orientação sexual no âmbito da educação pública”.
Porém, o Donme, pondera ela, “[…] parece ser mais refinado do que o ‘Escola Sem Partido’ por procurar conformar de forma mais elaborada o consenso, convencendo a sociedade de que há uma inadequação dos materiais escolares”, e para tal “opta por métodos que envolvem a provocação da sociedade política e a aliança com órgãos do Estado, bem como reuniões com editoras de livros didáticos e redes privadas de ensino”.
Por outro lado, adverte essa autora, “essa roupagem sofisticada parece esconder o mesmo arsenal e objetivos do Escola sem Partido, com o diferencial de se utilizar discursivamente mais do consenso, como tática de disfarce do seu teor coercitivo, ideológico e conservador, mas também como forma de conquistar adesão. Combinam-se, assim, de forma contraditória e complexa, elementos de coerção e consenso, indispensáveis para a hegemonia”.
Naninni e Marcusso avaliam que os idealizadores da Donme “buscam blindar a imagem do agronegócio perante a sociedade e, ao mesmo tempo, impedir que nas instituições de ensino de todo o Brasil seja promovido o debate sobre os impactos socioambientais provenientes do modelo de produção do agronegócio”, o que levaria a uma abordagem superficial e irreal de temas como desmatamento, queimadas, concentração de terras, conflitos e assassinatos causados por disputas territoriais e trabalho escravo, bem como o uso abusivo de agrotóxicos, descrito por alguns autores ligados ao agronegócio como “medicamentos para as plantas, com argumentações que buscam refutar ou minimizar seus potenciais perigos”.
Além disso, afirmam, ao mesmo tempo em que “promove perseguições aos professores e pesquisadores que discutem as contradições e mazelas que permeiam o setor”, paralelamente o Donme “fortalece um projeto societário que não contempla o desenvolvimento socioambiental sustentável, mas que favorece apenas uma seleta fração de classe do patronato agroindustrial”.
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