“Capitalismo de desastre” à brasileira

Dentro do Brasil, mas também na América Latina e em outras regiões do mundo, o campo democrático e progressista somou derrotas em 2016. A par de não haver contribuído para a superação da crise econômica, muito menos para frear a corrupção ou moralizar o Estado, o impeachment de Dilma Rousseff levou ao governo federal um bloco político ultraliberal, nucleado na compo­si­ção PMDB-PSDB e cujo programa é o documento “Ponte para o Futuro”, que propõe o desmantelamento da Constituição Federal (CF) de 1988 e da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Wilson Dias/Agência Brasil Daniel Garcia
Laymert Garcia dos Santos  Leda Paulani
Antoninho Perri/Portal Unicamp IELA
Denise Lobato Gentil Nildo Ouriques

Apesar de sua instabilidade, o governo Temer implantou ou formatou, em ritmo veloz, medidas como a “PEC do Fim do Mundo”, que desvincula as verbas da Saúde e Educação, e as contrarreformas do Ensino Médio (vide p. 7) e da Previdência Social (PEC 287), esta última particularmente cruel por suas implicações dramáticas para os estratos mais vulneráveis da população. Estados inadimplentes são deixados à beira do colapso. As privatizações foram retomadas. A resposta aos protestos de populares e servidores é um endurecimento ainda maior da repressão policial e toda sorte de ações de criminalização dos grupos de esquerda e dos movimentos sociais.

Disposto a oferecer subsídios para uma avaliação desse cenário político cada vez mais regressivo e turbulento, o Informativo Adusp buscou a opinião de alguns colegas: os professores Laymert Garcia, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH), Leda Paulani, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP (FEA), Nildo Ouriques, do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e Denise Gentil, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

“O bloco golpista hoje no poder (PMDB + PSDB + STF + MPF + Lava Jato + Mídia + Mercado Financeiro) tem como projeto político o que Naomi Klein chama de capitalismo de desastre, cujos dois pilares são o desmantelamento das instituições democráticas e a destruição da soberania”, diz Laymert Garcia. “O modus operandi desse projeto político é a caça ao homem. O homem é Lula, é o trabalhador, mas é também o popular e o brasileiro”.

O professor da Unicamp atribui ao oligopólio midiático liderado pelas Organizações Globo um papel determinante na presente conjuntura: “A narrativa dos golpistas só se mantém de pé porque conta com a cumplicidade e a colaboração permanente da mídia cartelizada e das ‘autoridades constituídas’ dos Três Poderes. Ela é miserável, eivada de contradições, fraudes, incongruências, incompetências e má-fé. Mas isso não tem importância alguma porque ela é imposta a uma população desentendida — porque acostumada à desinformação permanente — e abismada com a sua própria degradação. Aliás, a baixíssima qualidade dessa narrativa nem precisa ‘colar’ — basta a aquiescência do mercado e do 1% da elite, mais interessados nos juros altos e nas reformas aniquiladoras de direitos”.

Leda Paulani lembra que a ênfase dos governos do PT nos programas e políticas sociais ensejou uma disputa pelo fundo público que se acirrou com a crise econômica, além de “revolver as placas tectônicas da cultura senhorial brasileira, gerando enorme mal-estar entre as elites”. A professora da FEA pondera, no entanto, que o golpe foi temperado com ingredientes prosaicos: “O objetivo foi afastar do poder o quarto governo petista que o país teria. Portanto, obviamente, trata-se, do ponto de vista político strictu senso, de um projeto conservador e de direita. Mas não apenas. Depois da revelação das conversas de Romero Jucá com Sergio Machado não resta dúvida de que salvar a própria pele era um objetivo, se não o maior, tão importante quanto o objetivo propriamente político por parte dos golpistas”.

Nonsense

A recente aprovação, pelo Senado Federal, do nome indicado por Temer para ocupar cargo de ministro no Supremo Tribunal Federal (STF) só reforça o sentimento de Leda de que para os golpistas o que menos importa é o que acontecerá ao país, à população e às instituições: “Em determinados momentos desta nossa funesta conjuntura, como esse, com a nomeação de um sujeito com o histórico de Alexandre de Moraes para o STF, parece até um nonsense falar de ‘projeto político’ dos golpistas. Estancar a sangria provocada pelas operações de um juiz de Curitiba parece ser o alvo maior”.

Nildo Ouriques, por sua vez, classifica o golpismo como ofensiva burguesa. “A democracia é isso mesmo: golpes e contragolpes!”. O docente da UFSC prefere dizer que a burguesia decretou “guerra” ao povo brasileiro, levando ao fracasso as políticas públicas criadas pelos governos do PT. “A época do ‘Bolsa Família’ e do ‘Minha Casa, Minha Vida’ é peça de museu, quando não ideologia pura. A burguesia veio com tudo. Nós teremos que responder no mesmo tom”.

Na sua avaliação, o Brasil não vive uma crise fiscal, mas uma “crise financeira do Estado, resultado do megaendividamento público realizado pelo Plano Real (FHC, Lula, Dilma e Temer) que não pode ser solucionado nos marcos da política fiscal”. Ele reconhece, contudo, que há “obviamente um problema fiscal”, porque no Brasil os ricos não pagam impostos. “Isenções e renúncias fiscais criadas por Lula e Dilma e mantidas por Temer alcançaram mais de R$ 400 bilhões no ano passado. Ora, o déficit produzido por Temer é de R$ 170 bilhões. Mixaria, entende? Um keynesiano com duas moléculas de honestidade ficaria feliz com déficit tão pequeno. As classes dominantes magnificam o fenômeno para justificar ideologicamente a austeridade permanente contra o povo. É a guerra de classes contra nós”.

Exemplo disso é a PEC 287, definida por Denise Gentil, especialista em questões previdenciárias, como “mais aterrorizante que o pior de nossos pesadelos”, pelo grau de violência social que representa. “Vai atingir fortemente a renda dos mais pobres entre os mais pobres, como aqueles que recebem o BPC [Benefício de Prestação Continuada], os trabalhadores rurais, os cônjuges que recebem pensões, os que perdem a capacidade de trabalho por invalidez e os que trabalham em ambientes insalubres e sujeitos a doenças. É inacreditável o tamanho da arrogância dessa proposta, sua brutalidade”. No entender da profes­sora da UFRJ, há que combatê-la: “Há chances de derrotá-la? Eu não me faço essa pergunta. Simplesmente luto contra, até o fim”.

A propósito de narrativas enviesadas, a professora da UFRJ contesta o discurso martelado pela mídia, generosamente contemplada com verbas publicitárias federais: “O déficit da Previdência é um argumento tecnicamente incorreto se a CF for a referência para definir as fontes de receita e despesa do sistema previdenciário. Como é a CF que deve pautar o orçamento público, falar de déficit da Previdência vira uma construção ideológica, uma arma de luta política dos grupos hegemônicos que dominam o mercado financeiro e o Congresso Nacional. Não posso tomar outra posição senão a defesa do que diz a Constituição Federal e, como cidadã, exigir seu cumprimento”, diz.

“No artigo 195 da CF está claramente dito que a Seguridade Social é financiada por várias fontes de recursos, como a contribuição dos empregadores e trabalhadores (contribuição previdenciária ao INSS), a Cofins (inclusive sobre importações), a CSLL, o PIS/Pasep e a receita de concursos de prognósticos”.

Imobilismo

Voltando a Laymert: “Se pensarmos na perspectiva histórica, perceberemos que efetivamente é uma narrativa de criminosos, um coro de bandidos hard e soft que faz com a lei o que bem entende. Quem entendeu isso perfeitamente foram os brilhantes advogados de Lula, que estão escrevendo efetivamente a História deste período ao apontarem implacavelmente todas as safadezas do Judiciário, avalista do golpe. Boa parte da esquerda está confusa, também desentendida — faltam-lhe os meios para romper o imobilismo em que se encontra, inclusive a lucidez sobre o momento histórico”.

O caos e a convulsão social já se instalaram na sociedade brasileira, “só não vê quem não quer”, adverte o docente do IFCH. “No Estado de Exceção não há lei — há o Império do Crime. Já vimos esse filme na derrocada da República de Weimar, com as instituições desmoronando, a criminalidade campeando, o desemprego desesperando a população alemã, a economia ruindo e o Judiciário violando a Constituição e preparando o terreno para o fascismo. Todos esses requisitos já estão explodindo na nossa cara”.

Desse modo, assinala, o Brasil está deixando de ser uma nação. “Infelizmente a barbárie é crescente — a degola dos presos e os assassinatos no Espírito Santo são o emblema sinistro do que nos espera em termos de des-convívio social. A regressão, para nós inimaginável até então, parece não ter fim. A elite brasileira mostrou que não é elite, nem brasileira. Ela aposta no pior… esperando levar a melhor”.

Nildo, por sua vez, demonstra cauteloso otimismo: “A guerra de classes declarada pela burguesia e instrumentalizada por Temer terá resposta dos trabalhadores. Ocorre que a regressão intelectual e política dos sindicatos e seus ‘dirigentes’ nestes últimos treze anos é enorme. É preciso recuperar a consciência de classe e perceber que a supressão da Previdência, o fim da CLT, o congelamento dos gastos correntes (não financeiros) por vinte anos é a maior agressão aos trabalhadores após a Ditadura”. Assim, “será preciso um grande desastre — já temos 14 milhões de desempregados e 83% da PEA ganham até 3 salários mínimos — para a radicalidade aparecer novamente”. A conjuntura ácida cria, desse modo, “a oportunidade de um novo radicalismo político, sem as ilusões petistas da caridade cristã; este radicalismo somente será possível se tiver compromisso socialista”.

Na sua opinião, a situação do Brasil é a pior entre os países da região que viveram experiências de governos progressistas, em que pesem os reveses eleitorais do kirchnerismo e do chavismo. “Perder uma eleição não diz tudo. Na Venezuela os bolivarianos perderam as eleições e ainda mantêm alto nível de combatividade, consciência e organização. Na Argentina, a derrota de Cristina [Kirchner] não sedimentou [Maurício] Macri; ao contrário, nem o noticiário brasileiro (especialmente Globo) quer mencionar algo sobre o país vizinho, porque a economia despencou”.

No Equador, o candidato Lenín Moreno, apoiado pelo presidente Rafael Correa, “vai muito bem”, e na Bolívia “a situação de Evo Morales é confortável”, avalia Nildo. “O Brasil é o mais atrasado precisamente porque o lulismo produziu efeitos perversos em termos de consciência e organização que agora são ainda mais claros mesmo para os petistas devotos, animados com as pesquisas que indicam Lula em primeiro lugar para 2018. Está em curso a reconstrução da esquerda após as limitações (Equador) e mesmo fracassos (Brasil) da ‘esquerda responsável’ que tivemos até agora. Vivemos um novo tempo”. 

Uma solução para a crise financeira exigiria, no seu entender, “a eutanásia do rentismo”, isto é: auditoria da dívida pública e renúncia de parte substancial dela. “Há algo essencial aqui: esqueçam a burguesia industrial paulista! Ela está definhando de tal forma que a categoria da renda da terra passou a ser decisiva no desenvolvimento capitalista brasileiro. Agora o bordão televisivo da Globo indica o futuro: ‘o agro é tech, o agro é pop, o agro é tudo’. Assim, o assalto ao Estado via dívida pública é decisivo como estratégia de acumulação para todas as frações do capital. Todas!”.

Dialética

Tornar viável qualquer governo de esquerda implicaria, agora, para Nildo, “articular políticas públicas com reformas muito profundas”, a saber: agrária, urbana, auditoria da dívida etc. “É o tempo, portanto, da Revolução Brasileira! A dialética entre política pública, reforma e revolução foi atualizada, finalmente, pela classe dominante, quando decretou a guerra de classes contra nós. Agora, pela primeira vez após a Ditadura, abriu-se o espaço histórico para a emergência de um novo radicalismo de esquerda”.

Na visão de Leda, o rentismo é uma marca do capitalismo brasileiro. “Avant la lettre, com sua política de juros reais absurda­men­te elevados, seja em governos de direita ou de esquerda, o Brasil foi efetivando, a partir dos anos 1990, o caminho que parece hoje estar sendo trilhado por todo o sistema. Os golpistas não inventaram o rentismo, mas vão cevá-lo ainda mais. Numa conjuntura de crise, a disputa pelos fundos públicos se acirra e não é preciso ser muito esperto para saber o que um governo de direita, ultraliberal, escolherá ao ter de optar entre direitos sociais e garantia de renda à riqueza financeira”. As recentes quedas da taxa de juros patrocinadas pelo Banco Central nada significam em termos reais, pois “a queda abrupta das expectativas de inflação faz o juro real ser maior agora do que antes”.

Ainda quanto à prevalência do rentismo: a PEC 287, aponta Denise Gentil, permite que a Previdência Complementar não seja mais necessariamente gerida por entidades fechadas de natureza pública. Faculta o gerenciamento por entidades abertas de previdência privada, como bancos e seguradoras. “O lobby do sistema bancário foi o grande articulador da proposta e, mesmo sem ainda estar aprovada, já obteve uma enorme expansão de suas carteiras de Previdência complementar”, registra a professora da UFRJ.

O neoliberalismo está em crise no mundo “e muitas de suas prescrições estão sendo questionadas mesmo por instituições como FMI e BID”, observa Leda Paulani. Todavia, no Brasil, “de forma extemporânea, os golpistas resgataram o projeto completamente neoliberal, que estava em marcha nos governos de FHC, para concluí-lo”. É bem verdade que a política econômica dos governos petistas deu continuidade à de FHC, “em particular no que diz respeito à devoção ao chamado tripé macro­eco­nô­mico (superávits primá­rios, câmbio flutuante e metas de inflação) e à dupla juro extremamente elevado/real muito valorizado”. No entanto, o projeto neoliberal posto em marcha nos anos tucanos foi deixado “inconcluso” pelos governos Lula e Dilma, graças a diversos fatores: o peso dado às políticas sociais; o fato de terem “de certa forma brecado o processo de privatização”; a mudança no regime de concessão do petróleo; e, last but not least, a autônoma política externa, que deu “enorme força à criação do BRICS”.

Privatizar a Previdência Social sempre foi prioridade do programa neoliberal, no país e no exterior. Denise faz lembrar que há inúmeras razões pelas quais a CF de 1988 é alvo dos ataques do governo Temer e aliados.

“É importante ressaltar que a CF de 1988, no mesmo artigo 195, também diz que a Seguridade Social será financiada através recursos provenientes do orça­mento da União, além das con­tri­buições sociais que já mencio­nei. Ou seja: se um dia a Segu­ridade Social for deficitária — até 2015 não foi, mas poderá ser em 2016 — o governo deve entrar com recursos do orçamento fiscal para cobrir a garantia de direitos básicos da cidadania”, assevera a professora. “O sistema foi criado com uma estrutura de financiamento muito sólida. As investidas liberais-privatizantes não conseguiram, pelo menos até o momento, viabilizar econômica e politicamente sua alteração”.

Assim, quando se leva em conta essa estrutura de receita e dela se deduz tudo o que é gasto nos setores de saúde, assistência social e previdência social, há superávit — que chegou, em 2015, a R$ 11,3 bilhões. “O maior superávit ocorreu em 2007: R$ 127,9 bilhões, medido a preços de 2015. O governo tem se empenhado em destruir o resultado superavitário concedendo renúncias de receitas de contribuições sociais, deixando a sonegação avançar e praticando a desvinculação das receitas da Seguridade Social”, relata Denise. “Mas o que mais atinge a Previdência Social é a política macroeconômica deliberadamente recessiva praticada pelo governo, que em 2016 vai deixar um saldo de números que apontam para uma depressão — PIB: -4,5%, produção industrial: -6,6%, taxa de desemprego: 12% e renda real do trabalho: -3%”.

 

EXPRESSO ADUSP


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