Um importante grupo de entidades sindicais do setor de ciência e tecnologia, entre as quais Andes-Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN), Sindicato dos Trabalhadores em Pesquisa, Ciência e Tecnologia-SP (SinTPq),  Sindicato Nacional dos Trabalhadores de Pesquisa e Desenvolvimento Agropecuário (Sinpaf-DN), Sindicato Unificado dos Petroleiros do Estado de São Paulo (Sindipetro-SP) e Associação de Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo (APqC), elaborou a “Carta a Candidatos, Candidatas e Candidates em Defesa da Ciência e Tecnologia Pública”, aberta à adesão de postulantes a cargos executivos e legislativos nas eleições gerais de 2/10.

A carta é expressão do Movimento pela Ciência e Tecnologia Pública (MCTP), criado por aquelas e outras entidades e por grupos de pesquisa, em 2015, com a finalidade de defender a produção de conhecimento público. “Instituições de ensino superior e de pesquisa (universidades públicas, institutos federais, CEFET, institutos estaduais de pesquisa e empresas públicas de pesquisa), comprometidas com a produção de conhecimento público, voltado à inclusão e de interesse social, são fundamentais para o desenvolvimento, no sentido de atender às necessidades históricas do conjunto da sociedade, em especial da classe trabalhadora brasileira”, declara o documento. 

O MCTP, informa a carta, esteve sempre voltado a “lutar contra a privatização de universidades públicas, institutos federais e CEFET” e de “institutos e empresas públicas de pesquisa”, bem como a “lutar contra a privatização do conhecimento gerado a partir de financiamento público; lutar pela quebra de patentes para que a sociedade tenha acesso ao conhecimento gerado; lutar pela democracia e liberdade de expressão nas instituições públicas de ensino superior e de pesquisa”.

Neste sentido, prossegue, “queremos, com esta Carta, que candidatos, candidatas e candidates às Assembleias Legislativas dos Estados, à Câmara dos Deputados, ao Senado, aos Governos Estaduais e à Presidência da República nas eleições de 2022 se comprometam com nossas lutas e reivindicações”. 

Assim, as candidaturas são instadas a se comprometerem com a reversão do processo de privatização das universidades públicas; a reversão do processo de privatização dos institutos e empresas públicas de pesquisa; a revogação das legislações voltadas à privatização do conhecimento; a quebra de patentes, para que a sociedade tenha acesso ao conhecimento gerado; e democracia e liberdade de expressão nas instituições públicas de ensino superior [IES], nas empresas e institutos de pesquisa. (Adesões devem ser comunicadas pelo e-mail ctpublica@gmail.com.)

“Embora os discursos oficiais tratem como consequência natural das crises econômicas, estamos, na realidade, vivenciando uma política intencional de sucateamento das universidades públicas brasileiras”, diz a carta ao detalhar a justificativa do primeiro compromisso. Cita como exemplo o corte de R$ 3,2 bilhões no orçamento deste ano do Ministério da Educação (MEC), dos quais R$ 2,2 bilhões eram recursos destinados a universidades e institutos federais.

“Mesmo com o desbloqueio de R$ 1,6 bilhão, logo em seguida, esse procedimento de represar a chegada de recursos acaba por dificultar o planejamento e a execução das ações das IES que, em muitos casos, significam o cancelamento de atividades de ensino, pesquisa e extensão. E cabe ressaltar que os cortes orçamentários de 2022 se somam a uma série de ataques e retiradas de recursos de anos anteriores”.

A cobrança de mensalidades nas IES públicas é outro aspecto privatizante mencionado pela carta, uma vez que em 2017 o Supremo Tribunal Federal (STF), rendendo-se a interesses mercantis, julgou constitucional o oferecimento, por universidades públicas, de cursos pagos de pós-graduação lato sensu. “Com a luta de trabalhadores, trabalhadoras e estudantes, conseguimos barrar temporariamente a tramitação da PEC 206/2019, que abre a possibilidade de cobrança de mensalidade nos cursos de graduação”.

Refere-se, igualmente, à tentativa de acelerar as contrarreformas da educação superior pública a partir dos interesses do capital. “Um dos ataques principais, neste momento, tem sido o andamento da proposta de Reuni Digital, que pretende destruir o projeto de universidade pública no Brasil com a articulação de um modelo de ensino híbrido/digital, sistemas de controle do ensino, da administração e financiamento ligados às plataformas das multinacionais do campo (Google e Microsoft). Por isso, compreendemos, como ação fundamental, barrar o Reuni Digital, bem como outras ações que se articulam a essas propostas nos estados e municípios”.

O documento do MCTP alude ainda ao arrocho salarial, o qual “tem sido usado estrategicamente para que docentes, pesquisadoras e pesquisadores das IES adiram ao ‘empreendedorismo acadêmico’, buscando parcerias com o setor privado”, e à falta de contratação de servidoras e servidores técnico-administrativos e docentes, que além de afetar as condições de trabalho interfere na qualidade das atividades desenvolvidas.

Corte de R$ 2,9 bi no MCTI ameaça sobrevivência de 16 institutos de pesquisa

Quanto ao segundo compromisso proposto, a carta menciona o corte de R$ 2,9 bilhões em recursos do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCTI), ocorrido no início de 2022, e que “compromete, além de outros programas de investimento em ciência e tecnologia, a sobrevivência dos 16 institutos de pesquisa ligados diretamente ao ministério”. A Fiocruz, ligada ao Ministério da Saúde, sofreu um corte de R$ 11 milhões em seu orçamento, ao passo que a Embrapa, ligada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e que já vinha sofrendo nos últimos anos sucessivos cortes e contingenciamentos, perdeu R$ 43,8 milhões. 

Nos estados, destaca o documento do MCTP, tais medidas de desmonte também estão aceleradas, sendo que em São Paulo, que possui cerca de 60 unidades públicas de pesquisa, “a não contratação de novos pesquisadores tem sido um indicativo da privatização das instituições”. Os institutos de pesquisa ligados à Secretaria da Saúde, por exemplo, perderam 145 pesquisadores desde 2014. “Há também cerca de 2,5 mil cargos vagos das carreiras de apoio à pesquisa (76% do quadro de funcionários), não preenchidos pela ausência de concursos”. 

O Instituto Butantã, lembra a carta, chegou a ser oferecido pelo então governador João Doria, “no Fórum Econômico Mundial em Davos, em janeiro de 2019, a investidores internacionais, os quais lucrariam se o tornassem o maior produtor mundial de vacinas”.

Prossegue detalhando a trágica situação decorrente do desmonte praticado pelos governos do PSDB em São Paulo: “Já nos seis institutos de pesquisa ligados à Secretaria de Agricultura e Abastecimento há, atualmente, 496 pesquisadores na ativa e 716 cargos vagos. O último concurso para admissão de pesquisadores foi realizado em 2003. Além disso, a Assembleia Legislativa, por meio da lei 16.338/2016, autorizou a alienação de 12 imóveis pertencentes a essa Secretaria”.

Por fim, assinala o documento do MCTP quanto a esse tópico, é “fundamental reverter a extinção de institutos de pesquisa, ocorrida em 2020 pela lei 17.293/2020, restabelecendo os Institutos Florestal, de Botânica, Geológico e Sucen [Superintendência de Controle de Endemias], em benefício da sociedade”.

No tocante ao terceiro compromisso, revogação das legislações voltadas à privatização do conhecimento, a carta observa que tal privatização pode ser constatada “no processo de proteção e comercialização das pesquisas acadêmicas, por meio do uso do sistema de patentes, o qual tem sido cada vez mais incentivado nos últimos anos”, fato atestado por dados recentes do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi), segundo os quais as cinco instituições nacionais com maior número de depósitos de patentes de invenção são todas universidades públicas. 

“A Unicamp, que em 2019 era a líder entre elas, possuía naquele ano 1.087 pedidos depositados no Inpi e 131 contratos com empresas para a exploração de patentes. Chama a atenção que, além das patentes universitárias serem um mecanismo de apropriação privada do conhecimento produzido, o retorno financeiro para as universidades por meio desses contratos de licenciamento também é bastante pífio, haja vista que a Unicamp recebeu R$ 1.607.772 de royalties naquele ano”.

Outro mecanismo voltado à apropriação privada do conhecimento, aponta a carta, é o Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação (lei 13.243/2016), pois permite que “acadêmicos empreendedores” se transmutem em empresários, “de modo a se apropriarem de uma maior parcela do cerca de 1% do PIB brasileiro que é, anualmente, investido em P&D”. 

O Marco Legal, explica o MCTP, permite a criação de Instituições Científicas, Tecnológicas e de Inovações (ICT) com estatuto jurídico de “organizações sociais” (OS) para o desenvolvimento de atividades de pesquisa, as quais poderão a) receber recursos públicos de todos os entes federados e de “fundações de apoio” para a cobertura de suas despesas e b) receber recursos de pessoal (pesquisadores) pagos com recursos públicos. “Na prática, os ICT tendem a substituir as instituições públicas de pesquisa”. Por isso, considera, é fundamental a revogação das legislações e medidas que fazem avançar os processos de privatização da ciência e tecnologia no Brasil.

“Uso célere e eficaz” da quebra de patentes deve ser retomado 

No tocante à quebra de patentes (quarto compromisso), a carta recorda que, em 2013, estudo de autoria da Organização Mundial do Comércio (OMC), Organização Mundial da Saúde (OMS) e Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) citou o Brasil como exemplo de “uso célere e eficaz” da quebra de patentes e registrou que o poder de barganha criado pela possibilidade legal de quebra de patentes pode beneficiar países em desenvolvimento. 

“Ao quebrar a patente do medicamento Efavirenz, para tratamento da AIDS, o Brasil poupou cerca de US$ 1,2 bilhão com a compra desse produto. O medicamento original custava US$ 15,90 e, o genérico, US$ 0,43”, exemplifica. Como destacado por OMC, OMS e OMPI, a simples ameaça de quebrar patentes já permite ao governo brasileiro induzir a baixa de preços de remédios. “A revisão das legislações sobre patentes é uma forma de garantir a soberania e autonomia do Brasil sem a dependência de fornecedores estrangeiros”.

No que diz respeito à defesa da democracia e da liberdade de expressão, a carta faz referência a ataques desfechados contra a ciência e tecnologia pública, como o caso do professor Pedro Helal, da Universidade Federal de Pelotas (não citado nominalmente, porém), que em fevereiro de 2021 foi alvo de processo na Controladoria Geral da União (CGU), “acusado de ter proferido manifestação desrespeitosa e de desapreço, direcionada ao presidente da República, quando se pronunciava como reitor durante transmissão ao vivo nos canais oficiais da instituição”. 

No mesmo período, o MEC enviou ofício circular às universidades federais do País no qual recomendava que as instituições prevenissem e punissem atos políticos realizados em suas dependências, mas a repercussão negativa obrigou a pasta a cancelá-lo poucos dias depois. “Essas medidas contrariam decisão do STF, proferida em 2020, a qual diz que restringir o ‘direito de livremente expressar pensamentos e divulgar ideias’, incluindo as de cunho político-partidário, ainda que durante período eleitoral e com o uso de espaço público das universidades, configura-se inconstitucional”.

Independentemente da questão jurídica, enfatiza a carta, “garantir a liberdade de expressão, o embate de ideias e a discordância construtiva é indispensável para a produção de conhecimento que seja socialmente referenciado, voltada aos interesses da sociedade”.

Por fim, o documento exorta as candidaturas a “explorar a fronteira do conhecimento tecnocientífico de outra forma, de uma maneira que alavanque a sociedade que queremos construir, fundada nos interesses da sociedade e não apenas do mercado”, o que implica ir além do crescimento econômico e viabilizar o desenvolvimento socioeconômico, “baseado na distribuição de renda, na diminuição das desigualdades sociais e regionais, na geração de postos de trabalho, na soberania alimentar e na preservação ambiental, com participação nas decisões pelos diferentes segmentos da sociedade”.

A presente conjuntura, conclui o MCTP, torna premente a mudança de modelos. “No momento atual, é ainda mais fundamental explorarmos essa fronteira do conhecimento baseada nesse modelo que queremos, dada a grave crise social brasileira produzida pelo desgoverno federal atual. O desemprego entre jovens de 18 a 24 anos aumentou para 27,1%. As pessoas perderam cerca de 30% do rendimento de seus salários mensais. Os trabalhadores autônomos perderam cerca de 40% de suas rendas mensais, segundo dados do IBGE”.

A mudança da matriz produtiva necessária para modificar esse cenário atual “implica demandas originais e complexas”, arremata. “Seu cumprimento impõe às nossas instituições de ensino e pesquisa o desafio de empregar seu potencial para, em conjunto com outros setores de luta, gerar bases científicas e tecnológicas necessárias para a construção das soluções que nossa população merece e necessita”.

Além das já citadas, são signatárias da carta as seguintes entidades: Associação Cannabica Mãesconhas do Brasil, Associação Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias (Esocite BR), Associação de Docentes da Unicamp (ADunicamp), Associação de Docentes da USP (Adusp), Associação das Geógrafas e Geógrafos Brasileiros (AGB), Seção Campinas, Associação dos Professores da PUC-Campinas (Apropucc), Coletivo de Estudantes Indígenas da Unicamp, Grupo de Pesquisa Discursos da Ciência e da Tecnologia na Educação (DiCiTE-UFSC), Fórum de Associações Científicas de Ciências da Religião, Teologia e Ensino Religioso (Facreter), Grupo de Estudos em Tecnologia Social, Indicadores e Sustentabilidade (Getis-Unifesp de São José dos Campos), Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais da UFPB, Grupo de Pesquisa Ciência, Tecnologia e Sociedade da UFPR, Residência CTS Habitat, Agroecologia, Economia Solidária e Saúde (FAU-UnB), Sindicato dos Arquitetos no Estado de São Paulo (SASP), Sinpaf Seção Campinas e Jaguariúna.

EXPRESSO ADUSP


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