Governo eleito de extrema-direita tende a mirar “inimigo simbólico” e a criminalizar movimentos sociais, aponta debate de 6/11

Foto: Daniel Garcia

Vitória de Bolsonaro beneficiou-se, segundo debatedores, do aumento da desigualdade gerado pelo neoliberalismo, da ocorrência de “guerras culturais” e do papel de Temer ao implantar “PEC da Morte” e reforma trabalhista

A Adusp realizou em 6/11, no auditório 24 do prédio da Filosofia e Ciências Sociais da FFLCH, o debate “Balanço e perspectivas pós-eleições”, quarto (e último) de um ciclo de discussões sobre a conjuntura nacional, organizado pela associação e iniciado em 12/9. O debate reuniu os professores Henrique Carneiro (FFLCH), Leda Paulani (FEA), Pablo Ortellado (EACH) e Lisete Arelaro (FE) e foi coordenado pelo professor Rodrigo Ricupero, presidente da Adusp.

Não previsto inicialmente, o debate de 6/11 foi o único realizado pela Adusp após a eleição. O ciclo de debates, lembrou o professor Ricupero, decorreu de “um anseio nosso, que surgiu na greve da categoria no meio do ano, de tentar fazer uma reflexão política mais aprofundada, que pudesse ajudar nossa associação a pensar as suas ações”. O presidente da Adusp destacou que a entidade procurou contemplar os diferentes pontos de vista existentes na categoria. “Esse debate, além do interesse geral, tem essa característica também de ser um espaço em que a Associação dos Docentes vai procurar refletir, avaliar essa realidade para poder agir e tomar ações que se façam necessárias”.

Na exposição inicial, o professor Henrique Carneiro avaliou que há “enorme incógnita, enorme incerteza quanto à natureza do governo que foi eleito e que está agora começando a articular sua composição ministerial”. Mencionou entrevista concedida pela historiadora francesa Maud Chirio à Folha de S. Paulo, segundo a qual no dia 3 de janeiro o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) serão considerados organizações terroristas e a partir do mês de fevereiro o PT estará com seu registro cassado.


“Essa afirmação foi bastante catastrofista, digamos assim, eu não compartilho da mesma perspectiva, mas é interessante — diante dessa possibilidade de um extremo endurecimento político que está colocado no horizonte, mesmo que não num tão curto prazo — discutir a natureza do que é a extrema-direita contemporânea, da qual o bolsonarismo, nas suas diferentes facções, é um dos fenômenos mais novos e singulares”.

Ele apontou semelhanças e diferenças entre o que chamou de “fascismo clássico ou nazifascismo” e a vertente neofascista representada pela presidente eleito Jair Bolsonaro e por seus seguidores. Ele observou que o uso da palavra fascismo pode incorrer num “reducionismo meio generalizante de transformar isso numa espécie de insulto contra todas as formas de expressão da direita política”. O fascismo diferencia-se, a seu ver, de outras formas repressivas do capitalismo, tais como bonapartismo, bismarckismo, cesarismo e até “populismo autoritário”.

“O que haveria de específico no fascismo clássico, aquilo que se chamou de nazifascismo?”, indagou, observando que embora os casos mais conhecidos, nas décadas de 1920 a 1940, sejam a Alemanha de Hitler e a Itália de Mussolini, regimes semelhantes coexistiram em outros países da Europa, alguns dos quais aliaram-se ao Eixo, como a Hungria e a Romênia, e no Japão. Citou também o franquismo (que conseguiu permanecer e atenuou-se no final da década de 1970) e o salazarismo como expressões desse fenômeno.

A seu ver, o traço comum a esses regimes foi o militarismo e a vocação imperialista, no período posterior à Primeira Guerra Mundial. “A sua identidade fundamental era a agressão militar, tanto numa esfera colonial como no âmbito das próprias fronteiras. Não se entenderia jamais Mussolini sem a ocupação austríaca de Trieste e de Trento, que eram regiões italianas que precisaram ser retomadas na Primeira Guerra Mundial, para se tornarem parte da Itália. Depois eles continuaram reivindicando regiões da Iugoslávia. O fascismo italiano vai fazer a guerra de 1935 na Etiópia e portanto tinha essa perspectiva de, com um império tardio, buscar fatias no âmbito colonial. Durante os anos trinta, Hitler foi aluno de Mussolini”. No entanto, o assassinato do chanceler Dollfuss em 1934 e o processo de anexação da Áustria pela Alemanha, “primeira expansão belicosa do nazismo”, geraram atritos entre Hitler e Mussolini. 

O docente da FFLCH apontou, ainda, dessemelhanças entre os dois principais regimes fascistas. Na Itália, a implantação da ditadura pelos fascistas demorou dois anos após a chegada de Mussolini ao governo, período em que houve eleições nas quais, citou como exemplo, o líder comunista Antonio Gramsci chega a eleger-se deputado (mais tarde, seria encarcerado). Ao contrário, na Alemanha o processo tardou poucos meses: uma vez empossado primeiro-ministro, Hitler rapidamente impôs o regime nazista.

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Ainda segundo Carneiro, “o fascismo clássico tinha estofo ideológico bem definido”, de que seriam exemplos o futurismo italiano de Marinetti e, na Alemanha, a obra de Rosenberg. Outra característica é o estatismo. Ao passo que, no “neofascismo tropical”, ainda indefinido, “a grande característica que é marcante no modelo que vai se tornar predominante na gestão do Estado brasileiro, é a substituição de um certo pacto social inaugurado pela Nova República, e que teve, tanto no PSDB como no PT, uma característica que eu chamaria de conciliação. Ou até uma vocação ultraconciliatória. Uma tentativa de apagar a ideia dos inimigos históricos e de fazer do pacto de união nacional uma apelo para o bem e fim da Nação. O bolsonarismo é o oposto disso”.

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Henrique Carneiro

Portanto, a seu ver, é a ultraconflitividade que deverá marcar o novo governo. “Não apenas antes da eleição mas provavelmente depois, ele vai manter a tensão do inimigo interno, ou externo, como até falou o Marcos Pontes, o ministro astronauta, como o grande elemento de tensionamento político da sua base social. Provavelmente não vai ser em torno da reforma da Previdência, ou de aplicações de ajuste fiscal, que ele vai apresentar sua vitrine de governança. Ele vai definir um inimigo. Não vai ser nova política econômica nem nova política interna”. Assim, haverá, como tipicamente no fascismo, um “engajamento de tipo simbólico” e não “políticas racionais, sistemáticas e coerentes”.

Teorias que de certa forma prevaleceram no imaginário político brasileiro (“homem cordial”, teorias da mestiçagem e da vocação pacífica do brasileiro, vistas em intelectuais como Cassiano Ricardo, Gilberto Freyre e outros) cederão lugar a um “belicismo contínuo e sistemático, voltado contra um inimigo simbólico, que pode ser no terreno dos valores, como 'ameaças homossexuais' ou de doutrinação nas escolas, mas muito mais em torno do ataque à esquerda, provavelmente haja medidas efetivas de criminalização dos movimentos sociais. E a tentativa de manter o tensionamento com esses elementos simbólicos vai substituir qualquer tipo de coerência de uma política racional no âmbito econômico, sequer de qualquer reforma institucional”.

Neoliberalismo amplia desigualdade e gera voto antissistema

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Leda Paulani

Leda Paulani, professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP, centrou sua análise no período posterior à Segunda Guerra Mundial e ao chamado acordo de Bretton Woods, conhecido como “os trinta anos gloriosos” da economia capitalista. Por uma série de fatores, esse sistema começou a apresentar problemas no final das décadas de 1960 e 70 e os Estados Unidos desvincularam sua moeda do chamado padrão dólar-ouro, “destruindo o sistema de Bretton Woods”, definiu ela. Nas décadas seguintes, fatores como a crise do petróleo, em 1973, afetaram economias que dependiam da sua importação, como Alemanha e Japão, e elementos como o sistema de regras e a organização do Estado começam a ser questionados pela riqueza financeira.

Concomitantemente à crítica ao papel do Estado, acusado de ser ineficiente, perdulário e de ocupar o lugar que caberia ao mercado, deu-se a implementação de políticas neoliberais em muitas partes do mundo a partir da década de 1980. A cartilha neoliberal do chamado Consenso de Washington foi levada a muitas regiões do mundo, inclusive à América Latina, e mesmo governos de origem na esquerda acabaram adotando elementos do receituário neoliberal. A promessa era de que a liberdade do capital promoveria mais produtividade e, consequentemente, mais riqueza distribuída a toda a população.

O que aconteceu, no entanto, foi o crescimento da desigualdade “dentro dos países e entre os países”, apontou a professora. “A classe trabalhadora, que tinha ascendido com o período de Bretton Woods, perde material e socialmente”. Para Leda, esse contexto começa a gerar o voto antissistema, “que explica o Brexit, a vitória do Trump nos Estados Unidos e a ascensão de partidos e governos de extrema-direita em toda a Europa”. A professora chamou a atenção para o fato de que esse voto antissistema levou na verdade ao aprofundamento do sistema: “Esse neofascismo não é estatista, é o fascismo ultraliberal. No caso do Brasil isso é muito claro. O Paulo Guedes é representante do ultraliberalismo, que chamo de liberalismo descabelado e o Haddad chamou na campanha de desalmado”.

Para Leda, autores em diversos países têm publicado análises demonstrando que “a vitória do neoliberalismo não foi econômica, mas de fato ideológica: os valores do neoliberalismo, como a meritocracia, o individualismo, a valorização do self made man, se impregnaram de maneira geral, e junto a isso houve a perda de valores como a solidariedade, a cooperação e a comunidade”. De certa forma, definiu, “esse voto antissistema é no fundo um voto ‘contra tudo o que me atrapalha’, que é a própria política”.

A docente da FEA citou a filósofa norte-americana Nancy Fraser, que defendeu num artigo que a direita soube “capturar” pautas que eram da esquerda, relacionadas por exemplo à homossexualidade ou ao racismo. “A gente bate palmas quando uma grande corporação coloca como um de seus principais diretores um negro ou uma mulher gay. A gente deveria é lutar contra o sistema do the winner takes it all, em que o ganhador fica com tudo e ‘o resto que se dane’.”

“Discurso antipetista expandido para partidos em geral”

Foto: Daniel Garcia
Pablo Ortellado

Pablo Ortellado chamou a atenção para o papel das chamadas “guerras culturais” na ascensão da candidatura de Bolsonaro, que teve grande ênfase nas redes sociais, uma vez que, até por conta do período em que ficou em recuperação médica, o presidente eleito fez pouca campanha na rua. O grupo de pesquisa da EACH que acompanhou a movimentação da campanha de Bolsonaro nas redes esperava que houvesse muito conteúdo relacionado ao antipetismo e críticas à segurança pública —“mas o que a gente encontrou é muito diferente”, apontou.

“Praticamente todo o conjunto de sites e páginas interligadas que estavam no movimento anticorrupção e na campanha contra a Dilma a partir do final de 2014 estava dedicado a fazer campanha do Bolsonaro”, disse. A campanha centrou-se fundamentalmente em dois eixos: um que poderia ser chamado de antissistema e um segundo que seria o da “defesa da família”. No primeiro, a crítica é generalizada ao sistema político, muito mais do que especificamente ao PT, mostrando inclusive nomes como FHC e José Serra em diferentes momentos de sua trajetória.

“Também foi um discurso antipetista, mas expandido para os partidos políticos em geral e o comunismo. O comunismo, por sinal, nunca aparece como ideologia que promove a igualdade social, mas como sinônimo de corrupção”, considera. No segundo eixo, talvez o mais importante, ressalta Ortellado, movimentos como o feminismo e dos direitos LGBT “são apresentados sempre de maneira ‘enlouquecida’, contracultural e agressiva e como tentativa de corromper a família tradicional”.

Para o professor, a campanha de Bolsonaro conseguiu —com participação importante das igrejas católica e evangélicas —articular os movimentos anticorrupção com os de defesa do conservadorismo, que se opunham à “imposição de valores progressistas” em setores como a mídia, as artes, as escolas e a universidade. “Essa liga antielitista permitiu impulsionar a candidatura”, avalia.

Ortellado destacou a importância das manifestações de junho de 2013, que tiveram como eixo principal a denúncia do conluio entre a política e a economia. As manifestações, considera, deixaram vários desdobramentos no eixo social, enquanto o eixo político “ficou órfão” durante um ano e meio, até que surgiram os movimentos anticorrupção no final de 2014. “O que aconteceu foi que a direita soube explorar esse legado e casar o antielitismo político com o econômico. Junho de 2013 foi uma oportunidade perdida”, disse o docente da EACH.

“Voto antissistema aconteceu, e sob esse aspecto Haddad era continuidade”

Foto: Daniel Garcia
Lisete Arelaro

A professora Lisete Arelaro disse concordar com Carneiro que o governo Bolsonaro “vai funcionar numa situação do inimigo simbólico, virtual”. Também manifestou não concordar totalmente com a avaliação catastrófica da historiadora francesa Maud Chirio, mas manifestou preocupação em relação ao MST e ao MTST. “Estamos discutindo inimigos simbólicos, em primeiro lugar são eles, depois somos nós, da esquerda”.

“Para discutir Bolsonaro temos que discutir o que estamos vivendo”, disse a docente da FE. “Não tenho uma explicação satisfatória, tenho uma hipótese, com a decisão peremptória do impeachment da Dilma. Eles pressionaram, ela estava cedendo, já tinha um programa de privatização. E de repente ela chegava até o final, acabava o [mandato do] PT de uma forma melancólica. Não sei por que não optaram por essa alternativa. Ficou evidente que o grupo que apoiava o Aécio Neves tinha um programa de direita para extrema-direita preparado, não deu certo naquele momento. Teria sido mais conveniente”.

Lisete assinalou o papel desempenhado por Michel Temer. “Ninguém nem lembra mais dele, o tal dos 2% de preferência popular”, porém ele entrou no governo “para fazer coisas terríveis”, como a “PEC do Fim do Mundo” (depois Emenda Constitucional 95). “Quem lê, é alfabetizado, dizia: não, não é possível que haja consenso sobre isso”, congelar por vinte anos os gastos sociais. A docente da FE destacou que a mídia trabalhou o “imaginário social” de modo a diluir a gravidade das medidas tomadas, e citou especificamente o principal telejornal da Rede Globo. “Ouvir o que era o Jornal Nacional assim que o Temer assumiu. Realmente estava lá, estava tudo bem, as pessoas que estavam desempregadas estavam ‘procurando emprego’. De que país estão falando? Aprovaram com mais de 300 votos a emenda”.

Ela também manifestou seu inconformismo com a reforma trabalhista, dada a gravidade do que representa: “É incompreensível que numa tarde de votação tenhamos perdido 100 artigos da CLT, adotado o não trabalho como uma forma criativa moderna da relação entre patrão e empregado, e admitido na segunda década do século 21 que mulheres grávidas podem trabalhar em lugares insalubres. No entanto foi aprovado”.

Na avaliação de Lisete, parcela importante da categoria docente omitiu-se em relação às reformas que o governo fez aprovar. “A Universidade de São Paulo, parte dos meus colegas, não sabia o que estava sendo votado, a ‘PEC do Fim do Mundo’. Era incrível: isso não era importante para nós. Como é que pode um professor universitário não acompanhar o que estava acontecendo?” Atualmente, ironizou, Temer está garantindo com o futuro presidente “negociações para não ser preso”.

Sobre as eleições, a docente da FE avalia que “o voto antissistema aconteceu, e sob esse aspecto eles conseguiram ser antissistema, o Haddad era continuidade, e ele [Bolsonaro] era o novo”. Retomando a proposição de “inimigo simbólico”, ela acredita que não se resume a isso o programa de Bolsonaro. “Não dá para falar que ele só conhece o Paulo Guedes, é subestimar a direita. Há um projeto econômico. A importância do Brasil é indiscutível, nós ainda temos 36 estatais, nenhum outro país tem”. A perda de recursos financeiros do Brasil com a desnacionalização do Pré-Sal é inacreditável, e a mídia não contesta, acrescentou Lisete — que também questionou a cessão, para os Estados Unidos, da base espacial de Alcântara. “Qual é o protesto que nós fizemos? A ditadura considerava Alcântara segurança nacional. Ele [Temer] teve que dar satisfação para alguém?”

Ela também manifestou preocupação com o movimento “Escola sem Partido” e a “tentativa de controle dos conteúdos nas universidades e nas escolas”, apontando a necessidade de se organizar uma resistência contra esse tipo de ataque. “Nós estamos com o medo instalado nas escolas. Já temos colegas mudando a forma de ser e falar, não dormindo à noite”.

EXPRESSO ADUSP


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