Nem mesmo o presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) deixa de reconhecer que é crítica a situação da principal agência federal de fomento à pesquisa do país. Num momento em que os investimentos em ciência e tecnologia são cada vez mais fundamentais para enfrentar desafios como os da pandemia da Covid-19, o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) confirma sua vocação para o desastre e corta recursos do setor e da educação. Só o CNPq deve perder R$ 144 milhões neste ano na comparação com 2020.

“Isso é uma tragédia, será um dos menores orçamentos da história do CNPq. Estamos trabalhando para recuperar essa perda através da liberação do FNDCT [Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico]. Com os recursos do fundo teríamos como preencher algumas lacunas e avançar”, disse o presidente da agência, Evaldo Vilela, no Fórum das Sociedades Científicas Afiliadas à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), realizado em formato virtual no dia 30/4.

Conforme relato sobre o fórum publicado pelo Jornal da Ciência, Vilela afirmou que o CNPq terá cerca de R$ 1,25 bilhão para seu funcionamento em 2021, dos quais R$ 943,9 milhões são para o pagamento de bolsas e R$ 26,5 milhões para fomento. “Esses recursos estão muito baixos. Os valores para as bolsas sofreram um corte de 10%. Isso mantendo as atuais, sem expandirmos. Precisamos de R$ 150 milhões para fomento e não só R$ 26,5 milhões”, ressaltou.

O resultado do último edital de bolsas de doutorado e pós-doutorado, a Chamada CNPq 16/2020, é um reflexo da situação. Das 3.080 solicitações aprovadas com mérito, apenas 396 (13%) vão receber as bolsas. De acordo com a agência, outras concessões podem ser feitas, especialmente para o exterior, dependendo da obtenção de créditos suplementares e do cenário da pandemia.

Aos representantes das sociedades científicas, Vilela afirmou que o lançamento de novos editais está condicionado à liberação dos recursos do FNDCT, principal instrumento de fomento à ciência e tecnologia no país. Garantiu, no entanto, que em junho será lançado um Edital Universal, com valor total de R$ 250 milhões. “Precisamos de uma Chamada Universal robusta. E vou lançá-la para ressaltar que precisamos de dinheiro”, disse.

O que deveria ser um momento de celebração pelos 70 anos de existência do CNPq se converte num cenário de preocupação com o futuro da agência, numa realidade qualificada de “dramática” por Vilela. Além dos cortes no orçamento, o órgão perde recursos humanos. “Hoje temos 363 servidores, sendo que 43 estão cedidos e nove licenciados. E 48 deles já estão em tempo de se aposentar. Nos próximos cinco anos, serão 98. Contamos com 450 colaboradores terceirizados. É uma situação dramática, os servidores estão desmotivados. Diante desse cenário, pedimos e acreditamos que no ano que vem teremos um concurso público, para estimular nossa equipe”, disse no fórum da SBPC.

Marcos Pontes, o ex-astronauta, chama orçamento de “estrago”

Os cortes no CNPq não são uma exceção e integram a agenda de devastação proposta pelo governo. Entre os vetos de Bolsonaro na Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2021, sancionada em abril, estão os de R$ 371,6 milhões para o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), ao qual a agência é vinculada, e de R$ 1,18 bilhão para o Ministério da Educação (MEC). Além disso, as pastas tiveram recursos para este ano “contingenciados” — ou seja, bloqueados — da ordem de R$ 372,3 milhões e R$ 2,7 bilhões, respectivamente.

O ex-astronauta Marcos Pontes, titular do MCTI, usou a palavra “estrago” para se referir à situação da pasta. “Estamos trabalhando com o orçamento do ano que vem, vendo o que a gente vai fazer a respeito do orçamento neste ano, um estrago, vamos chamar assim, e realmente foi muito comprimido esse orçamento”, disse o ex-astronauta numa live em seu perfil no Instagram.

A assessoria parlamentar da SBPC analisou a LOA 2021 e também qualificou a situação como crítica. No CNPq, os recursos para bolsas de estudos caíram 12,22%, virtualmente impossibilitando a expansão dos programas de formação em 2021, na avaliação da entidade. Além disso, dos recursos aprovados para as bolsas, 61,95% dependem de créditos futuros, o que pode comprometer inclusive o pagamento dos benefícios já alocados.

Na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), subordinada ao MEC, a concessão de bolsas da educação básica perdeu 29,40% dos recursos, ficando com R$ 280,8 milhões, dos quais 17,97% dependem de créditos futuros. Os recursos para bolsas de ensino superior tiveram um acréscimo de apenas 2,09%, mas um terço dos recursos também depende de créditos futuros.

O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) igualmente sofreu cortes na LOA. O fomento às ações de graduação e pós foi reduzido em 22,59% em relação a 2020, assim como a concessão de bolsa-permanência (-22,59%). O programa de apoio à infraestrutura para educação básica perdeu 10,39%, e o de apoio ao desenvolvimento da educação básica tem valor 44,31% menor do que no ano passado. Em ambos os casos, não há previsão de créditos futuros.

FNDCT terá apenas R$ 534 milhões dos R$ 5,6 bilhões disponíveis

“Sem o FNDCT não temos como fazer nada. A luta continua. Se não conseguirmos a liberação desses recursos será difícil”, ressaltou Vilela no evento da SBPC. Porém, as esperanças que o presidente do CNPq deposita na liberação de recursos do fundo repousam num emaranhado político cuja solução não parece nada fácil. Utilizando um estratagema para ignorar decisões do Congresso Nacional, Bolsonaro manteve o bloqueio das verbas.

O imbróglio remonta ao ano passado. Em agosto, o Congresso aprovou o Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 135/2020, do senador Izalci Lucas (PSDB-DF), que transformava o FNDCT num fundo financeiro cumulativo. Isso permite que os valores sejam alocados em fundos de investimento, gerando rendimentos que podem ser usados para financiar atividades do setor. O texto também permite que os saldos anuais não utilizados sejam dirigidos para reinvestimento, sem retornar para a conta única do Tesouro.

Em janeiro deste ano, Bolsonaro sancionou o projeto, transformando-a na Lei Complementar 177/2021, mas vetou dois artigos. O primeiro determinava a liberação de R$ 4,2 bilhões bloqueados em 2020 e o segundo proibia novos contingenciamentos dos recursos. O argumento do governo era de que haveria um aumento não previsto das despesas, o que poderia levar ao descumprimento da famigerada Emenda Constitucional (EC) 95/2016, que congela o teto dos gastos públicos.

Em 17/3, após mobilização da comunidade científica, o Congresso manteve o primeiro veto e derrubou o segundo, proibindo novos bloqueios de recursos. No entanto, o governo postergou a promulgação da derrubada do veto, deixando-a para depois da aprovação da LOA.

De fato, os parlamentares aprovaram a LOA 2021 no dia 25/3, e somente no dia seguinte Bolsonaro promulgou a derrubada do veto. A aprovação do orçamento no Congresso, portanto, foi feita sem a validação do veto derrubado na LC 177, jogando a entrada em vigor da medida para o ano que vem. A sanção de Bolsonaro à LOA, em 22/4, consagrou a manobra.

Como resultado, dos quase R$ 5,6 bilhões disponíveis, o fundo poderá contar neste ano com apenas R$ 534 milhões, menos de 10% do total. O restante ficará à disposição do governo para pagamento da dívida pública e manutenção de superávit fiscal.

Entidades retomam mobilização para liberar recursos

“É absolutamente inacreditável o que está acontecendo com o FNDCT”, declarou à revista Pesquisa Fapesp Luiz Eugênio Mello, diretor científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). “O governo está se valendo de todos os subterfúgios possíveis para impedir a liberação dos recursos do fundo, mesmo o Congresso já tendo se manifestado muito claramente sobre isso.”

“Esse recurso é fundamental para a ciência, tecnologia e inovação brasileira, para a Finep [Financiadora de Estudos e Projetos] poder funcionar, para a infraestrutura das universidades e instituições de pesquisa, para a subvenção econômica a empresas inovadoras, para apoiar ações importantes do CNPq, em particular o Edital Universal, os INCTs [Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia], o desenvolvimento de vacinas nacionais, entre outros”, afirmou no evento da SBPC o presidente da entidade, Ildeu Moreira. “As instituições estão sendo sufocadas e esses recursos do FNDCT são uma esperança diante de um orçamento desastroso.”

Entidades científicas reiniciaram as articulações para tentar reverter o quadro. Entre as alternativas aventadas estão o ingresso de ações no Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou Supremo Tribunal Federal (STF) para incluir as mudanças previstas na LC 177 já no orçamento de 2021.

Outra possibilidade é a aprovação de um projeto no Congresso para tentar adequar o orçamento à legislação. O senador Rogério Carvalho (PT-SE) apresentou logo depois da sanção da LOA o PLP 58/2021 com essa finalidade. “Não há necessidade de ato legal adicional para o governo disponibilizar os recursos ao FNDCT por meio de um crédito ao orçamento de 2021. No entanto, caso o governo federal não tome as providências imediatamente, o presente projeto altera a LC 177/2021 para prever que o Poder Executivo abrirá crédito adicional ou encaminhará ao Poder Legislativo projeto de lei para abertura de crédito adicional em até 30 (trinta) dias após a sanção da lei orçamentária de 2021, com a finalidade de atender ao disposto no § 3º do art. 11 da Lei nº 11.540, de 12 de novembro de 2007, retirando os recursos do FNDCT da reserva de contingência”, diz a justificativa do texto.

O senador aponta ainda que, com a crise sanitária e econômica que o país vive, “o FNDCT é um instrumento essencial de combate à crise e retomada do desenvolvimento, com indução do desenvolvimento científico e tecnológico e da inovação”.

EXPRESSO ADUSP


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