A Universidade de São Paulo decidiu adotar uma espécie de cegueira institucional em relação ao projeto de lei (PL) 529/2020 do governador João Doria (PSDB), limitando-se a propor a supressão do artigo 14, que prevê o confisco das reservas financeiras das universidades públicas estaduais e da Fapesp (e outras autarquias e fundações) ao final de cada exercício fiscal, já a partir do corrente ano. Outros aspectos igualmente perversos do projeto, a começar pela extinção de dez importantes órgãos públicos, são simplesmente ignorados nas declarações públicas dos dirigentes e figuras públicas da USP sobre o PL, bem como nas manifestações da grande maioria de seus colegiados.
 
É como se a USP nada tivesse a dizer sobre o desmonte do aparelho estatal e a venda de patrimônio público; sobre a importância da Fundação para o Remédio Popular (FURP) e da Superintendência de Controle de Endemias (Sucen) para a saúde das populações paulista e brasileira; sobre a relevância das pesquisas do Instituto Florestal (IF) e de sua atuação como guardião de importantes áreas da Mata Atlântica; sobre como ficará a política habitacional paulista caso a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) venha realmente a ser extinta; ou ainda sobre os impactos socialmente regressivos da reforma do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) e o brutal aumento das alíquotas de contribuição ao Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual (Iamspe).
 
Isso para ficar em apenas alguns exemplos entre os numerosos alvos e aspectos do extenso e devastador PL 529/2020.
 
A decisão majoritária da reunião do Conselho Universitário (Co) de 15/9, de aprovar uma moção que rejeita unicamente o artigo 14, é emblemática dessa disposição de não melindrar o governo estadual, e de procurar delimitar o litígio com o Palácio dos Bandeirantes mantendo-o na circunscrição das universidades e da Fapesp. Como agravante, a moção — elaborada pela professora Maria Arminda Arruda, diretora da FFLCH, a partir da compilação de notas emitidas pelas congregações — afirma que o projeto baseia-se “em diagnóstico correto, referente às dificuldades orçamentárias enfrentadas pelo Estado de São Paulo no contexto da pandemia”.
 
Manifestações da representação dos servidores e da representação discente, no sentido de que a USP se pronunciasse contra a totalidade do PL 529/2020, foram rejeitadas pelo Co. “Nos parece que esse texto [a moção], a exemplo do que já foi feito na primeira nota do Cruesp, não corresponde à necessidade de derrotar o conjunto do PL”, disse na reunião de 15/9 o  conselheiro Reinaldo Santos de Souza, representante dos servidores. “Ou seja, ele se coloca apenas contra a parte do PL que afeta as universidades”, o que, disse Souza, já afasta de imediato as universidades dos setores sociais que lutam contra o projeto.
 
“Do ponto de vista mais político, e da responsabilidade histórica da universidade, é ainda mais problemático, porque temos que considerar o contexto. Ou seja: as universidades estão ideologicamente sob ataque, o governo Bolsonaro tem uma política de Estado anticiência e antiuniversidades. E os serviços públicos estão sob ataque, há uma cruzada contra os servidores públicos”.
 
Souza rejeitou a visão de que o projeto parte de um diagnóstico correto, “o que não é totalmente verdadeiro”, explicou, porque omite as desonerações fiscais. Propôs, assim, que o Co referendasse a manifestação da Faculdade de Educação (FE), ou que se posicionasse de maneira categórica contra o projeto. Mencionou ainda que o Cruesp recusou-se a assinar uma nota conjunta com o Fórum das Seis a propósito do assunto.
 
Outra representante dos servidores, a conselheira Bárbara Della Torre, reforçou as considerações do colega, ao passo que a conselheira Letícia Oliveira, representante discente, advertiu que a recusa da USP a avaliar a totalidade dos efeitos do PL 529/2020 poderia enquadrar a instituição na metáfora da “torre de marfim”.
 
A argumentação, porém, não demoveu a maioria do Co, que não se mostrou disposto sequer a debater as questões em jogo. O único conselheiro que se dispôs a rebater as razões de Souza foi o professor Floriano Marques, presidente da Comissão de Legislação e Recursos (CLR), para quem “focar o tema na defesa das universidades e dos centros de pesquisa é o que nos une”.

FCF cita FURP e condena extinção de órgãos públicos, mas é exceção

Uma das poucas congregações das unidades da USP a levar na devida consideração outros aspectos perversos do PL 529/2020 que não o confisco das reservas financeiras ao final de cada exercício fiscal foi a da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF). “Merece, também, repúdio a proposta constante nesse projeto de lei, de extinção de autarquias e fundações públicas que vêm prestando importantes e fundamentais serviços à população”, assinalou a Congregação da FCF na sua manifestação, após destacar a gravidade do ataque às universidades e à Fapesp.
 
Citando expressamente a Fundação para o Remédio Popular (FURP), a Fundação Oncocentro (FOSP) e a Superintendência de Controle de Endemias (Sucen), a Congregação da FCF lembrou que estas instituições “formam um arcabouço na área de saúde que oferece sustentação e proteção à sociedade, em especial aos indivíduos de maior vulnerabilidade social”. Portanto, prossegue a nota, constituem um patrimônio público na área da saúde e estão seriamente ameaçadas de extinção. “Ou seja, o PL529/2020 em sua totalidade desobriga o Estado de São Paulo do seu papel social de oferecer segurança e suporte nas áreas de saúde à sociedade”.
 
Outras congregações que, além da FE e FCF, condenaram in totum o PL 529/2020 — e não apenas o artigo 14 — foram as da Escola de Enfermagem (EE) e do Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU). A FE foi além da manifestação inicial e organizou um grande ato público virtual sob o mote “Diga Não ao PL 529/2020”.
 
Já a Congregação da Faculdade da Saúde Pública (FSP), em reunião extraordinária realizada no dia 3/9/2020, manifestou “veemente protesto” ao PL 529/2020, porém limitou-se a chamar atenção “sobretudo para o artigo 14 do projeto, onde está prevista a transferência do recurso financeiro remanescente das autarquias e das fundações paulistas ao Tesouro Estadual ao final de cada exercício”.
 
De acordo com a nota, a proposta do governo estadual “solapa a autonomia financeira, administrativa e acadêmica das universidades públicas estaduais paulistas e da Fapesp na medida em que inviabiliza planejamentos plurianuais essenciais para a consecução das atividades de ensino, pesquisa e extensão”. As reservas financeiras possuem importante papel não apenas na gestão das universidades e no cumprimento de compromissos assumidos, mas também na manutenção da excelência destas instituições. “O confisco de tais recursos (mais de 1 bilhão de reais já no exercício de 2020) terá impactos devastadores nos diversos campos de atuação destas instituições, incluindo inúmeras pesquisas atualmente em curso, inclusive relacionadas à pandemia da Covid-19, de interesse estratégico à saúde pública brasileira”, diz a Congregação da FSP.
 
Ainda segundo o documento, o PL 529/2020 “representa verdadeiro desmonte das instituições públicas paulistas de ensino e pesquisa”, viola o artigo 207 da Constituição Federal e os artigos 253 e 254 da Constituição do Estado de São Paulo, que garantem a autonomia universitária e orientam para a ampliação do número de vagas oferecidas pelas Universidades Públicas paulistas”, sendo “inaceitável esse tipo de ataque às universidades e à principal agência de fomento a pesquisa – Fapesp, sobretudo no momento em que elas vêm desempenhando papel imprescindível na produção de conhecimentos essenciais para salvaguardar a vida de milhões de pessoas ameaçadas pela pandemia Covid-19”.
 
A desastrosa proposição do governador “não apenas desconhece, mas nega de forma contundente o papel fundamental da ciência para enfrentamento dos atuais desafios, bem como para o futuro desenvolvimento social e econômico do País”, acrescenta a Congregação da FSP. “A necessidade de austeridade nos gastos públicos não justifica um projeto de lei que fere os princípios da autonomia universitária e retira toda a possibilidade de planejamento e gestão de tais instituições”.
 
A mesma linha de foco exclusivo no artigo 14 do projeto de lei foi adotada, por exemplo, nas moções de repúdio aprovadas pelas congregações da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) e da Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB) e nas manifestações do Instituto de Química de São Carlos (IQSC) e do Instituto de Psicologia (IP).

Vereadores de Ribeirão Preto repudiam artigo 14 e poupam restante do PL

O Jornal da USP relatou que o pró-reitor de Pós-Graduação, Carlos Gilberto Carlotti Júnior, e o diretor da Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto (EEFERP), Cristiano Roque Antunes Barreira, reuniram-se com vereadores de Ribeirão Preto no início de setembro “para levar aos membros do legislativo a preocupação da comunidade universitária com a possível aprovação do Projeto de Lei 529/2020, especialmente do artigo 14 do capítulo cinco”. O resultado desses encontros, porém, foi a aprovação pela Câmara Municipal de uma “moção de repúdio ao artigo 14” do projeto, o que evidencia qual foi o enfoque dos representantes da universidade.
 
Manifestações individuais de destacados docentes com passagem pela cúpula da USP seguem a mesma trilha. É o caso dos pronunciamentos de dois ex-pró-reitores de Pesquisa: o professor José Eduardo Krieger e a professora Mayana Zatz. Na sua “Carta ao Governador”, Krieger chega a dizer: “Senhor Governador, é imperativo o reexame de sua proposta contida no PL 529/2020”, deixando claro que o restante do projeto não interessa.
 
Porém, Mayana é contundente ao explicar, em vídeo que circula nas redes sociais, que coordena um projeto de pesquisa — sobre mecanismos que conferem resistência à Covid-19 em pessoas assintomáticas, nonagenários e centenários — eventualmente ameaçado pelo projeto de Doria: “A possibilidade de haver um sequestro de cerca de R$ 1 bilhão da Fapesp e das universidades é altamente preocupante”, protesta ela na gravação.
 
“O secretário Mauro Ricardo está mal informado quando diz que esses recursos serão usados para pagar aposentadorias das universidades. Se o PL 529 for aprovado, pesquisas terão que ser interrompidas, de modo irreversível. Alunos terão suas bolsas cortadas, e  mais jovens deixarão o país em busca de melhores oportunidades. Senhores parlamentares: não deixem isso acontecer. O futuro da ciência e tecnologia de São Paulo e do Brasil está em suas mãos”.
 
 

EXPRESSO ADUSP


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