Na avaliação do docente Tercio Redondo (FFLCH), o “Plano São Paulo” para a Covid-19 é “um fiasco completo”, porque já ocorreram mais de 20 mil mortes no Estado desde que foi implantado — e ao basear-se nele o “Plano USP” coloca em risco a vida dos mais vulneráveis, como os funcionários técnico-administrativos que dependem de transporte coletivo

Existe preocupação no corpo docente com o retorno da USP às atividades presenciais anunciado pela Reitoria, sem que existam evidências de que a epidemia de Covid-19 esteja sob controle e portanto sem que estejam dadas as condições para uma volta segura aos locais de trabalho nos campi. A subordinação do chamado “Plano USP” ao “Plano São Paulo” do governo estadual é alvo de críticas, pois — sabendo-se que o Estado responde por cerca de 25% das mortes por Covid-19 no país — o retorno às atividades presenciais é temerário e coloca em risco vidas humanas, sobretudo de funcionários no primeiro momento.
 
O assunto veio à tona, por exemplo, na reunião de 20/8 da Congregação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), na voz do professor Tercio Loureiro Redondo. “Nós, como instituição, como faculdade, temos uma responsabilidade diante da sociedade paulista e brasileira. Agora, essa nossa responsabilidade se pauta por alguns princípios: de respeito à vida, de respeito à saúde, de compromisso social e de rigor científico nas decisões que tomamos”, disse ele na ocasião, passando a fazer um contraponto à live realizada na véspera, em que o reitor, o vice-reitor e outros dirigentes lançaram o “Plano USP” de retorno às atividades presenciais.
 
“Ontem, assisti a uma celebração promovida pela Reitoria da Universidade de São Paulo. A Reitoria foi confrontada com vários questionamentos sérios sobre o plano que apresentou, não respondeu a nenhum deles. Fizeram uma seleção das perguntas, uma edição das perguntas, de modo que a Reitoria, mais uma vez, fugiu a um debate sério e consistente com a comunidade universitária”, descreveu.
 
“Por que ela não respondeu? Porque a Reitoria baseia o plano numa premissa — que é um outro plano: o chamado ‘Plano São Paulo’, do governo do Estado. Esse plano tem sido duramente criticado, inclusive por colegas nossos, da USP e também da nossa faculdade, gente que estuda o assunto em profundidade”, registrou.
 
No entender do docente da FFLCH, “o Plano São Paulo é um fiasco completo, e é com base nesse plano, que tem sido alardeado pela grande mídia — que fecha os olhos e tapa os ouvidos para as críticas que são feitas a ele — que a Reitoria houve por bem apresentar o seu”. Essa avaliação decorre dos números que apresentou: “A partir da pandemia no Brasil, em meados de março, até 1º de junho, haviam morrido 7.500 pessoas no Estado de São Paulo. Desde o início do Plano São Paulo, do dia 1º de junho até a data de hoje, morreram mais 20 mil pessoas. Nos mesmos dois meses e meio, morreram 20 mil pessoas”.
 
Ainda segundo Tercio, o “Plano USP” não é exatamente um plano, mas “uma espécie de carta de intenções, muito mal redigida, com base em coisas sem explicação”. Deu como exemplo o distanciamento social preconizado nele, de um metro e meio. “Fiz uma pequena consulta pela Internet à John’s Hopkins, que diz o seguinte: o distanciamento mínimo preconizado é de 6 pés, ou seja, pouco mais de 1,80 metro. A Reitoria fala de metro e meio e não cita a fonte que a autoriza a estabelecer esse critério”.
 
Depois de relatar à Congregação que várias perguntas com relação a essa questão e outras foram apresentadas mas não respondidas, lembrou que o Plano USP expõe os mais vulneráveis. “Vou ler para vocês aquilo que consta no plano. Peço licença para ler um pequeno parágrafo: ‘Nas fases B, C e D os servidores portadores de doenças crônicas, gestantes, pais, mães com crianças com menos de 10 anos ou que moram com idosos terão de retornar a seus postos para as atividades presenciais?’ É uma pergunta que o plano se faz. A resposta: ‘O retorno neste momento é facultativo, mas, a juízo do dirigente, os servidores poderão ser convocados’, não importando o grau de sua vulnerabilidade”.
 
Para o docente, a Reitoria pratica “uma espécie de terceirização de responsabilidades”, analogamente ao que faz com relação à progressão horizontal”, a saber: “os chefes de departamento que se virem com essa questão e apresentem o ranqueamento de seus colegas, os dirigentes que digam quem são os funcionários e em que condições eles devem voltar às atividades presenciais”. Assim, a Reitoria “joga nas costas de dirigentes de unidades e de chefes de departamento as responsabilidades que ela não quer assumir de todo”.
 
Questionou, então: “A que atende essa proposta, esse número mágico de 30% de funcionários, voltando a trabalhar de maneira presencial? Expostos ao contágio, como já foi referido aqui, no transporte urbano hiperlotado da cidade de São Paulo. A que propósito atende?” Após fazer referência a artigo de autoria dos professores Carlos Vogt e Alcir Pécora, da Unicamp, no qual “mostram o caráter político-partidário do PL529, que também nos atinge”.
 
Dando continuidade ao raciocínio, Tercio sugeriu que a sintonia entre “Plano USP” e “Plano São Paulo” não é acidental: “É a mesma questão: o governo do Estado quer empurrar as nossas crianças para a escola pública, de qualquer jeito, está forçando a barra com isso, e é claro que a USP é uma ótima vitrine para mostrar que o retorno às atividades presenciais é uma coisa perfeitamente aceitável, embora no Brasil, hoje, continuem morrendo cotidianamente mil pessoas por conta da Covid. E no Estado de São Paulo, que tem um quinto dos casos de Covid, morre um quarto da população brasileira. Morre aqui, no Estado de São Paulo”. 
 
Portanto, concluiu, a situação não está melhor, continua gravíssima: “Falam que atingimos um platô, e esse platô se naturaliza, como se morrerem 420 pessoas, como morreram em determinado dia da semana passada, fosse a coisa mais normal do mundo”. De modo que, na sua opinião, na FFLCH “temos de assumir as nossas responsabilidades em face de nossas tradições, de nossos princípios mais caros e simplesmente dizer não, com altivez, a um plano que não se sustenta, que parte de premissas falsas”.
 
Ele reconheceu que atividades absolutamente essenciais, “como a do médico que vai atender pacientes no HU [Hospital Universitário] ou em qualquer outra parte”, precisam ser levadas a cabo. “São as pessoas que estão lá na linha de frente, dando a cara a bater, e vão. Agora, obrigar um funcionário a vir trabalhar em ambientes confinados, com janelas que não se abrem, já que nós temos uns vitrozinhos aqui na faculdade, e dizer que ele está muito seguro porque mantém a distância de um metro e meio do colega, isso a gente não pode aceitar”.
 
Por fim, ainda em referência à live da Reitoria de 19/8, o docente se disse “absolutamente indignado” com o tom festivo do evento, até porque não houve referência às várias perdas sofridas pela USP até aqui: “Não houve uma palavra de empatia com relação aos nossos mortos aqui na Universidade de São Paulo, uma única palavra pelos funcionários que já morreram em virtude da pandemia. Era só celebração, como se as coisas estivessem se desenvolvendo magnificamente”.

“Quem se beneficia criando uma ilusão de retomada, de normalidade?”

Outro docente da FFLCH que expressou fortes críticas aos planos de  retorno foi o professor Adrián Pablo Fanjul, chefe do Departamento de Letras Modernas, em mensagem que enviou aos colegas da unidade nesta terça-feira (25/8). “O Jornal da USP de hoje traz duas matérias que, lidas com atenção, mostram que não é hora de flexibilizar nada que possa funcionar de modo remoto. Isso não bastasse a estabilidade da elevada média móvel semanal de óbitos e de novos casos no Estado, desconsiderada na apresentação do ‘Plano USP’. As matérias são sobre assuntos de relação aparentemente indireta, um deles muito pontual, mas que reforçam a conclusão de que quanto menos contágio, melhor”.
 
A primeira reportagem que citou, “Estudo relaciona vírus da Covid-19 no coração a síndrome rara que afeta crianças”, trata da Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica (SIM-P) que acomete crianças que contrairam Covid-19. “A leitura interessada em ‘fazer funcionar a economia’ encontrará rapidamente que a maioria se recupera. Porém, é bom ler a matéria até o final: ‘Os estudos até o momento mostram que com a internação e o tratamento, a grande maioria das crianças com SIM-P tem uma evolução favorável e se recupera. Entretanto, os achados deste trabalho alertam para a possibilidade de sequelas cardíacas nessas crianças, que serão acompanhadas’.”
 
A outra matéria diz respeito à adoção tardia de dispositivos legais sobre uso de máscaras (“Governo minimiza uso de máscaras e Estados aproveitam para flexibilizar isolamento”). “Quem propicia o retorno nos dirá que, na USP, a máscara será obrigatória”, disse Adrián, para advertir em seguida que determinadas condições podem reduzir o potencial de proteção das máscaras, conforme se lê na seguinte passagem da matéria:
 
“Frequentemente, os Estados adotaram medidas de incentivo ao uso [das máscaras] em conjunto com a flexibilização de medidas de isolamento físico. Essa combinação ocorreu em contexto de elevado nível de risco, de acordo com os critérios de classificação do Instituto de Saúde Global de Harvard. Como resultado, as máscaras foram reduzidas [sic] em seu potencial de proteção, deixaram de salvar vidas e geraram impacto limitado no controle das taxas de infecções e óbitos no Brasil”.
 
Assim, indaga Adrián, para que colocar em risco o que, a seu ver, está funcionando bem de modo remoto? “A que interesses serve? Quem se beneficia criando uma ilusão de retomada, de normalidade? Por que a USP — ‘vitrine privilegiada’ como bem apontou Tercio na Congregação — teria que reforçar essa sensação de normalidade? Que relação tem essa pretensão com a de que as escolas voltem presencialmente em outubro, e com as eleições de novembro? Somente quem acredita que o governo estadual não tem relação com a Reitoria pode ser tão ingênuo de não se fazer essas perguntas”.

“Flexibilizações” baseiam-se em argumento falacioso

O professor Esmerindo Bernardes, do Instituto de Física de São Carlos (IFSC), acaba de produzir o estudo “Curvas Descrevendo Casos de Covid-19 no Brasil”, que ele descreve como “um exercício de ‘reconversão’ de um físico teórico, durante esta pandemia, que não é especialista em Estatística e muito menos em Imunologia” (Introdução, página 4). “Realizar testes em massa, regularmente, e seguir as recomendações internacionais de segurança podem garantir estimativas confiáveis e, o mais importante, podem diminuir casos de infecções e salvar vidas. Vidas são importantes”, diz ele.
 
No decorrer do trabalho, com base nos seus achados, Esmerindo tece críticas às “flexibilizações” do distanciamento social adotadas por vários governantes: “Depois de algum tempo acompanhando os desdobramentos das consequências da Covid-19 percebo que políticas de relaxamento de certas regras (ou medidas) de combate a esta pandemia, sob o singelo capuz ‘flexibilização’, foram formuladas com base numa interpretação equivocada (intencionalmente?) das taxas de crescimento”, comenta ele na página 7, onde também se encontra a Figura 2 na qual ele baseia essa percepção.
 
“Explico. Observe a linha horizontal cortando a rapidez V (primeira taxa de crescimento) em dois momentos distintos, pontos A e C mostrados na Figura 2. O ponto médio B indica o momento do máximo valor da rapidez (ponto de inflexão). O momento A é onde as regras de combate à pandemia são amplamente divulgadas como necessárias. No momento C tais regras são ‘flexibilizadas’, sob o argumento que a rapidez V está diminuindo porque a aceleração A está negativa. Apesar de assentado em observações verdadeiras, este argumento pode ser falacioso. Vejamos”.
 
A rapidez, explica o docente do IFSC, é um número (positivo), que varia em função dos dias acumulados, formando uma função simétrica em relação ao seu valor máximo (ponto de inflexão). “Assim, a rapidez no momento A tem o mesmo valor que no momento C. Portanto a rapidez não pode ser usada como justificativa principal para o relaxamento das regras de combate. Neste modelo, o que diferencia os momentos A e C é a aceleração, a qual pode mudar facilmente em função do relaxamento”. Tal dependência da aceleração ao relaxamento, acrescenta, é visível em muitos casos, como China, Coreia do Sul, Vietnã, Austrália, Espanha, França e Itália.
 
Em muitos destes casos, o relaxamento nas medidas de proteção se deu em fases muito mais avançadas (muito próximo de uma estabilização) que a fase em que se encontra a quase totalidade dos casos brasileiros. “Este pode ser o momento equivocado para adotar  qualquer medida de relaxamento”, adverte. “Aparentemente não estamos aprendendo com o erro dos outros: o de acreditar que exista uma fase segura para relaxar as medidas de combate. Vale lembrar que uma consequência importante da reincidência de infecções é o risco de mais mortes”.
 
Mais adiante, ao comentar a situação geral do Brasil (páginas 10 e 11), ele faz novas ressalvas: “As taxas de crescimento, rapidez V(n) e aceleração A(n), derivadas das curvas mais recentes Z176 (diária) e Z26 (semanal), estão mostradas nas Figuras 17 (diariamente) e 18 (semanalmente). Note que estas curvas estão incompletas (no lado direito) e informam que o ponto de inflexão foi atingido recentemente (dia 145, semana 21,6). Os detalhes nestas figuras mostram os pontos de inflexão (ip) correspondentes às últimas curvas. Note também que estes pontos de inflexão mudam, sempre procurando as datas mais recentes, uma indicação de descoberta de novos casos e/ou de novas ondas. Parece que estamos atolados no ponto de inflexão, alongando o prazo de espera para se obter a estabilização. Este efeito é resultado das flexibilizações precoces nas medidas de contenção, como o isolamento social” (destaques nossos).
 
“De qualquer forma”, prossegue Esmerindo, “a situação é muito preocupante, pois a rapidez ainda está em torno de seu ponto máximo, ocasionando a maior taxa de crescimento possível. É o momento de reforçar as medidas de contenção, para evitar o surgimento de novas ondas de contaminação” (destaques nossos).
 
Sobre o caso específico de São Paulo, ele afirma, na página 11: “As curvas descrevendo os casos de Covid-19 no estado de São Paulo estão mostradas nas Figuras 19 (acumulados diariamente) e 20 (acumulados semanalmente). As taxas de crescimento, rapidez V(n) e aceleração A(n), derivadas das curvas mais recentes, estão mostradas nas Figuras 21 (diariamente) e 22 (semanalmente). Há nenhuma indicação de estabilidade. O ponto de inflexão foi atingido no dia 156 (semana 22,3). Embora a aceleração esteja negativa, a rapidez ainda está em torno de seu valor máximo. O aumento expressivo no desvio médio quadrático (rms) e o comportamento instável dos pontos de inflexão (ip) indicam a presença de casos novos (casos criados exclusivamente pelos relaxamentos nas medidas de prevenção) que não deveriam fazer parte desta onda” (destaques nossos).
 

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