Justiça determina que USP indenize em R$ 500 mil os pais de Filipe Varea Leme, aluno da Geografia morto em acidente na Poli

Sentença do juiz Emílio Migliano Neto, da 7ª Vara da Fazenda Pública do TJ-SP, aponta que a negligência, o dano e o nexo de causalidade da ocorrência fazem com que seja “de rigor o reconhecimento da responsabilidade subjetiva culposa da USP”. Juiz menciona ainda a dor do pai e da mãe que encaminham o filho para a universidade, “e ele sai dali morto, dentro de um caixão do IML”

Facebook/CEGE 

Filipe Varea Leme

 

O juiz Emílio Migliano Neto, da 7ª Vara da Fazenda Pública do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), condenou a USP ao pagamento de R$ 500 mil de indenização por danos morais a Fabio Leme e Ester Varea Leme, pai e mãe do estudante Filipe Varea Leme. Filipe morreu num acidente de trabalho em 30/4/2019, quando atuava em desvio de função de seu estágio na Escola Politécnica da USP.
 
A sentença, promulgada na última segunda-feira (31/1), determina que o valor deve ser acrescido de juros de mora de 1% ao mês desde a data da ocorrência e que a USP arque com as custas e despesas processuais e os honorários advocatícios.
 
Filipe tinha 21 anos, estava no último ano do curso de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e fazia estágio como monitor no Serviço Técnico de Informática da Poli.
 
No dia do acidente, ele e um colega receberam ordem para transportar um armário carregado de livros para o andar térreo. Filipe utilizou um carrinho de carga e apoiou-o no queixo dentro de um elevador destinado a pessoas portadoras de deficiência. Na descida, a base do carrinho, que havia ficado para fora do elevador, inclinou-se contra o estudante, pressionando o seu pescoço e provocando a lesão fatal.
 
“Assim, o acidente que vitimou fatalmente o único filho dos autores decorreu diretamente da negligência dos funcionários da requerida USP, pois ainda que o transporte de móveis não fosse atribuição própria ao cargo de monitor, isso não afasta a responsabilidade pelo evento danoso, muito pelo contrário”, escreve o juiz na sentença.
 
“Certo é que a partir do momento em que um aluno monitor, em evidente desvio de atribuição do cargo, com as plenas ciência e anuência de sua supervisora, sem qualquer equipamento de segurança, instrução, treinamento ou supervisão, passou a realizar o transporte de armário, houve assunção de responsabilidade por qualquer evento danoso daí decorrente”, prossegue (grifo no original).
 
“A negligência da autarquia requerida restou cabalmente demonstrada, ainda, no momento do embarque do armário no elevador, conforme é possível verificar em imagens das câmeras que mostram um vigia terceirizado no local, que não fez qualquer óbice à utilização inadequada do elevador, revelando que a prática inadequada e perigosa era comumente aceita por todos os funcionários do prédio”, constata o magistrado.
 
De acordo com Migliano Neto, “competia à Universidade de São Paulo tomar medidas adequadas para a prevenção de acidentes no âmbito do seu campus, bem como o ônus de fiscalizar os empregados da efetiva utilização dos mecanismos protetores, daí configurado o nexo de causalidade entre a conduta da requerida e o dano sofrido pelos autores com a morte de seu único filho”.
 
Ficaram caracterizados, aponta o magistrado, “o dano, o nexo de causalidade, e a culpa da requerida pelo evento danoso”, do que decorre “o reconhecimento da responsabilidade subjetiva culposa da USP”.
 
“Via de consequência, de rigor a condenação da requerida à indenização dos danos morais, uma vez que o sofrimento dos autores é presumível ante o vínculo familiar em decorrência da perda do único filho e o fato de que um evento dessa natureza é inesperado para os pais que encaminham o filho para a universidade, e ele sai dali morto, dentro de um caixão do IML”, escreve Migliano Neto.

Pela primeira vez o Estado admite sua culpa, considera advogado da família

Durante o processo, a USP alegou em sua defesa que não houve determinação por parte da supervisora para a realização da tarefa, mas “mero voluntarismo” de Filipe e do colega em executá-la. A argumentação foi rechaçada pelo juiz, que afirma ter ficado “amplamente demonstrado” que os jovens “realizavam o transporte de livros e armários utilizando o elevador de forma inadequada a pedido único e exclusivo da superior hierárquica”. A sentença é de primeira instância e cabe recurso.
 
A decisão que condenou a USP a indenizar os pais de Filipe “traz algum conforto e alguma atenuação da dor da família”, considera o advogado dos Varea Leme, Rogério Licastro de Mello.
 
“Pela primeira vez o Estado, por meio do Poder Judiciário, deu uma resposta à família no sentido de reconhecer a sua responsabilidade na figura da USP. É como se houvesse aqui, pela primeira vez nessa trajetória de dor da família, uma admissão de culpa”, diz.
 
Na avaliação do advogado, “o que mais traz a diminuição da dor é a admissão da culpa do Estado”. “Até a decisão judicial ser proferida, a USP dizia que a culpa era do Filipe, e isso só fez ampliar a dor dos pais. Agora temos uma resposta”, afirma.
 
Em nota, a USP afirma que “acolhe alunas e alunos em seus cursos de graduação, todos os anos, para melhorar a vida de cada um deles e delas” e que “é uma instituição comprometida com a missão de expandir os horizontes e melhorar o futuro de cada estudante”.
 
“Quando uma tragédia como essa nos golpeia, sentimos dor e pesar. Estamos empenhados em manter o apoio à família do aluno Filipe, cuja morte nos deixou e ainda nos deixa inconformados. A USP se solidariza com o sofrimento da família”, conclui a nota.
 
Em outubro de 2020, a Justiça homologou acordo de não persecução penal proposto pelo Ministério Público de São Paulo (MP-SP), no qual a supervisora, servidora da Poli, admite que, “agindo culposamente na modalidade negligência, deu causa ao óbito de Filipe Varea Leme”. A servidora se comprometeu a prestar oito meses de serviço comunitário e a cumprir outras condições para que o MP não oferecesse denúncia para dar início a ação penal contra ela.

“Para essa perda não existe reparação”, diz a mãe de Filipe

“Não existe algo que eu possa dizer que me trouxe uma tranquilidade. Nada me traz essa tranquilidade, porque para essa perda não existe reparação”, disse ao Informativo Adusp a mãe de Filipe, Ester Varea Leme. “A única coisa que vai me acalentar é quando eu vir que algumas atitudes foram mudadas, que não houve mais acidentes na universidade, que o quadro de servidores está mais consciente.”
 
Na avaliação da família, a decisão em primeira instância é positiva — “nesse caso a Justiça nos ouviu”, ressalta Ester —, embora a provável continuidade do processo, uma vez que a USP deve recorrer, traga consigo também a perspectiva de mais sofrimento.
 
“Isso dói todo dia, a todo momento. É sempre dor, é sempre dolorido. São muitos sentimentos que transbordam. Graças a Deus temos suportes para nos fazer aguentar tudo isso”, afirma. “Creio que quanto mais cedo a USP encerrasse esse assunto, seria melhor até para ela. A instituição já deveria ter reconhecido que essa é uma causa justa.”
 
Um fator que pode pesar nas futuras atitudes da universidade em relação ao caso é a mudança na gestão da USP: Vahan Agopyan, reitor à época do acidente fatal e de seus desdobramentos — como a recusa da direção da Poli a investigar o fato —, é docente e ex-diretor daquela unidade, o que sempre acarreta algum conflito de interesses, ao passo que a atual vice-reitora, Maria Arminda do Nascimento Arruda, era então diretora da FFLCH e teve uma atuação “bastante incisiva”, lembra Fabio Leme, pai de Filipe. 
 
“Muitas das provas que estão nos autos foram exigidas por ela. Ficou claro que não existia um plano de trabalho [na Poli] para o Filipe, nada disso. As pessoas são contratadas e jogadas lá para fazer qualquer coisa. Com esses documentos a gente pôde ver o quanto a instituição está apodrecendo por dentro”, diz.
 
O pai do estudante já aguardava uma decisão favorável da Justiça, uma vez que na própria audiência em que foram ouvidas as partes, em outubro do ano passado, o juiz havia deixado claro que não havia dúvida sobre os acontecimentos e que o prazo protocolar para a manifestação da USP viria apenas a protelar a decisão.
 
“A sentença foi contundente porque atribuiu 100% da culpa à instituição. Acredito que é difícil acontecer de um órgão do Estado atribuir 100% da culpa a outro órgão do Estado”, considera.
 
Na avaliação de Fabio Leme, o delegado responsável pela investigação conseguiu colher a história com clareza, “e as pessoas confessaram a negligência no calor do momento”. “Tudo o que a USP tentou desmentir depois foi feito sem base, foram coisas construídas em cima de mentiras. Estamos muito bem apoiados em fatos, não em conjecturas”, diz.
 
Para a família, os valores financeiros envolvidos no processo não são relevantes. Além de esperar que a USP reconheça institucionalmente a sua responsabilidade, Fabio e Ester Leme desejam que a universidade promova mudanças para que tragédias como essa não se repitam.
 
“Só espero que cada pessoa que queira estudar tenha os aparatos para ter sucesso, não a perda da vida, como foi a perda do meu filho, a pior catástrofe da nossa vida”, diz a mãe de Filipe. “Eu gostaria muito que a gente pudesse fechar esse livro, porque é muito, muito desgastante, e isso não é bom para ninguém. Você só perde com isso.”
 

EXPRESSO ADUSP


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