Defesa da Universidade
Elaboração do “Estatuto de Condutas” reflete mecanismos autoritários da USP — ignora questões de gênero e deve ser rejeitado, propõem professoras
A rejeição ao “Estatuto de Conformidade de Condutas”, encaminhado no ano passado pela Reitoria para avaliação das unidades, foi unânime entre as debatedoras da mesa “Gênero e Código de Condutas”, organizada pelo projeto Diversidade na ECA na última quinta-feira (22/4), sob coordenação da professora Cláudia Lago, docente da Escola de Comunicações e Artes da USP.
A vice-presidenta da Adusp, professora Michele Schultz Ramos, docente da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP e integrante da Rede Não Cala!, defendeu que é preciso rejeitar integralmente o estatuto e também o processo que levou à sua apresentação. “Temos que forçar a Reitoria a admitir o grande erro de apresentar esse documento”, disse a professora.
A minuta do estatuto foi enviada em 30/11/2020 aos membros do Conselho Universitário (Co), instados a se manifestar sobre o texto até 15/1/2021. Diante das inúmeras críticas ao conteúdo da minuta e ao tempo exíguo para análise, em dezembro o reitor Vahan Agopyan divulgou circular estendendo até o dia 10/5 o prazo para recebimento de manifestações. O plano da Reitoria é que uma nova versão, com sugestões acolhidas por uma comissão de sistematização, seja encaminhada para consulta pública aberta à comunidade. Agopyan pretende que o documento retorne então ao Co e seja aprovado ainda neste ano.
Todo esse processo está viciado desde a origem, afirmou a professora Fabiana Severi, docente da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) e integrante da Rede Não Cala!. “Além dos problemas estruturais do documento, incompatível com exemplos de universidades ou outras instituições públicas, a questão formal de procedimento é importante. O Co criou uma comissão para fazer o documento, respeitando o princípio da colegialidade, ainda que restrita e sem a nossa participação. Se essa comissão não atua e vira uma só pessoa, não podemos aceitar o trabalho. Não é uma crítica à pessoa ou ao professor, mas todo o processo formal foi desconsiderado”, ressaltou. “Esse documento não tem legitimidade formal para caminhar.”
Fabiana se refere ao fato de que a comissão criada pelo Co para elaborar uma proposta acabou se desfazendo, e a minuta do novo Estatuto de Condutas encaminhada ao Co derivou do trabalho individual do professor Floriano de Azevedo Marques Neto, diretor da Faculdade de Direito (FD), indicado para coordenar a comissão. O próprio Marques Neto confirmou ao Informativo Adusp que o texto é de sua “inteira e exclusiva responsabilidade”.
“Reitoria apagou a proposta e questão de gênero não foi discutida”, diz Elizabete Franco
A trajetória acidentada do estatuto foi recuperada pela mediadora do debate, a professora Elizabete Franco Cruz, docente da EACH e integrante da coordenação da Rede Não Cala!. O grupo foi criado em 2015, no contexto da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembleia Legislativa de São Paulo que investigou as violações de direitos humanos nas universidades paulistas, conhecida como “CPI dos Trotes”, presidida pelo então deputado Adriano Diogo (PT).
“A CPI mostrou o quanto precisávamos ter respostas institucionais”, disse a professora. “Quando interpelávamos a universidade para que houvesse algum tipo de ação em relação a essas violências, ouvíamos que as normativas não contemplavam o tema”, lembrou. A discussão das normas e regimentos passou a ser um dos três eixos do trabalho da rede, ao lado de educação e acolhimento.
Utilizando um recurso do Regimento Geral da USP que permite recolher assinaturas de conselheira(o)s e solicitar a inclusão de pautas nas reuniões do Co, a Rede Não Cala! protocolou uma solicitação no final de 2016 na qual reivindicava a criação de um grupo de trabalho específico para contemplar a discriminação de gênero e outras violências nos documentos administrativos e disciplinares. Cabia à universidade, de acordo com a Rede, dar uma resposta compatível com o seu lugar de destaque no cenário nacional e internacional e com o compromisso assumido com a Organização das Nações Unidas (ONU) quando da criação do Escritório USP Mulheres.
O tema foi pautado para a reunião do Co em 7/3/2017, que ficou marcada pela violência extrema da Polícia Militar ao atacar uma manifestação pacífica que protestava contra os “Parâmetros de Sustentabilidade Econômico-Financeira” da USP, cujo texto-base foi aprovado na ocasião.
A discussão acabou ficando para a reunião do dia 11/4 daquele ano, mas foi proposta pelo então reitor M. A. Zago sem que nenhuma representante da rede pudesse se manifestar. O encaminhamento dado por Zago gerou a comissão coordenada por Marques Neto. Uma equipe assessora foi criada para trabalhar com o Escritório USP Mulheres e subsidiar o trabalho da comissão.
“A Reitoria apagou a proposta e a questão de gênero não foi discutida”, disse Elizabete Franco. “A Rede, que fez a proposta, não foi chamada, os membros da comissão não participaram. Como se pode querer discutir diretrizes para a universidade de modo tão vertical e autoritário? Mais do que o documento em si, o processo que o constitui é revelador de um mecanismo autoritário da USP.”
Trabalho da equipe assessora foi desconsiderado
A professora Fabiana Severi se disse incomodada com a forma pela qual a atual versão do documento foi apresentada às unidades e por “perceber que o trabalho que fizemos tinha sido ignorado”. A docente integrou a equipe assessora, ao lado das professoras Deisy Ventura, Eva Alterman Blay, Sonia Seger Pereira Mercedes, Soraia Chung Saura e Prislaine Krodi dos Santos e da socióloga Wânia Pasinato.
O grupo organizou uma agenda de trabalho por meio do Escritório USP Mulheres e de comissões de gênero e de direitos humanos de diversas unidades da USP na capital e no interior. Desse trabalho resultaram documentos de revisão do Código de Ética da USP e de diretrizes para que gestores da USP pudessem incorporar as perspectivas de gênero e de direitos humanos no enfrentamento das violências e discriminações contra as mulheres no ambiente universitário. Os documentos foram encaminhados em julho de 2018 para o professor Marques Neto, por carta da equipe assessora. No entanto, nunca houve retorno, relatou Fabiana.
O trabalho incluiu, por exemplo, a experiência da Comissão para Apurar Violência contra Mulheres e Gêneros (CAV Mulheres) da USP de Ribeirão Preto, da qual a professora era vice-presidente. Alunas de mestrado e doutorado também fizeram estudos e revisão bibliográfica de material nacional e internacional sobre questões de violência de gênero no meio universitário.
Um dos esforços principais foi em relação à revisão do Código de Ética da USP, com a perspectiva de se obter uma espécie de consenso político do que pode ser considerado infração e do que vai ser repudiado ou não. “Fomos mudando palavras, termos e justificativas e fazendo uma análise crítica sobre termos genéricos que eram problemáticos, como ‘bons costumes’, ‘preceitos morais’, ‘boa ordem’. A mudança no regime disciplinar tem que ser integrada, considerando quais são os princípios que queremos preconizar na atuação profissional e fora desses termos vagos e apontando aquilo que seria infração, de forma compatível com uma ordem de direitos humanos, para o qual é importante buscar responsabilização.”
A título de exemplo, Fabiana leu um trecho da proposta de revisão do Código de Ética, pautada na ideia de pactuação de valores por toda a comunidade. O primeiro artigo diz o seguinte: “O presente Código de Ética destina-se a nortear as relações humanas no âmbito da Universidade de São Paulo, tendo como postulados o direito à pesquisa, o pluralismo, a tolerância, a autonomia em relação aos poderes políticos, o respeito à integridade acadêmica da instituição, à integridade física, intelectual e moral dos seus membros e colaboradores, bem como o dever de promover princípios de liberdade, justiça, dignidade, Direitos Humanos, solidariedade e a defesa da USP como universidade pública”.
“A escrita do estatuto não tem um escopo de discussão minimamente preventiva. É compatível com um código que fala em ‘moral e bons costumes’, mas incompatível com o mundo de hoje. Destoa daquilo que a gente entende atualmente em direito administrativo como um instrumento compatível com uma ordem democrática e de direitos humanos. Nós podemos mais, a Reitoria pode mais”, afirmou.
Receber e ler um documento com o tom e a abordagem da revisão do Código de Ética seria muito diferente de receber a proposta com tom punitivista enviada, “sobretudo neste momento [da pandemia], o que só aumenta o nosso desconforto, insegurança e sofrimento”, completou.
Documento relativiza violência, considera vice-presidenta da Adusp
O tom punitivista do estatuto foi ressaltado pela professora Michele Schultz, que apontou vários problemas no conteúdo do documento proposto. “É muito grave incorporar questões trabalhistas, como punição a quem exercer o direito de greve”, afirmou. O texto também tem termos ambíguos, como “condutas potencialmente desconformes”, e abre possibilidade de sanções para quem “enlodar” a reputação da universidade. “O que isso quer dizer exatamente?”, perguntou. Essas imprecisões podem transformar o estatuto “num instrumento de perseguição ao cair nas mãos de alguém autoritário, e isso não é difícil na universidade”, ressaltou.
Na avaliação da professora, o documento também é contraditório ao se referir a quem são a(o)s integrantes da comunidade universitária e à responsabilização por atos que ocorram fora dos muros da universidade, o que pode excluir violências praticadas nas festas realizadas em outros ambientes, por exemplo.
A minuta se notabiliza ainda pela ausência da perspectiva de gênero. Cita o assédio sexual, mas há vários outros elementos discriminatórios não tipificados, apontou Michele. “O documento também relativiza a violência, o que é um problema seríssimo. Fala em ‘constranger mediante ameaça física ou psicológica’. Ao dizer que constrangimento não é violência, está-se relativizando a violência, o que é muito grave”, afirmou.
A vice-presidenta da Adusp lembrou que a própria administração da universidade protagoniza violências nos processos de avaliação do período probatório levados a cabo pela Comissão Especial de Regimes de Trabalho (CERT), que vem rebaixando regimes de trabalho de docentes mesmo durante a pandemia. A Adusp tem denunciado também que o processo de avaliação desconsidera a licença-maternidade no caso das docentes com filhos.
A forma como o processo de elaboração do estatuto foi conduzido se relaciona ao funcionamento das estruturas de poder da USP, considera Michele. “A USP ainda é extremamente elitizada e pouco representativa, e caímos de novo na falta de democracia institucional”, disse. É preciso reconhecer que existe violência na universidade e que a democratização de todos os processos é essencial, completou.
“Nós não nos vemos nesse documento”, disse a professora Elizabete Franco, defendendo que as unidades o recusem. “Temos tentado falar que não nos vemos em algumas decisões e ações da universidade. Apresentamos propostas e temos muitas contribuições e, quando dizemos que a universidade não está conseguindo nos ouvir, não é só nesse documento. É importante a gente pensar nisso. Queremos um horizonte de democracia, e pensar esse estatuto não está descolado do nosso cenário”, concluiu.
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