Defesa da Universidade
Na universidade, culto ao “empreendedorismo” e à “inovação” esconde interesses privados
É cada vez mais comum, para os membros da comunidade USP, deparar-se com mensagens em sua caixa de e-mail institucional cujos títulos contenham as palavras “empreendedorismo”, “inovação” e, principalmente, “Santander”. No mês de maio, por exemplo, a Agência USP de Inovação (Auspin), autora destes e-mails, convidou todos para as diversas palestras sobre internet of things, design thinking, blockchain e fintechs que compunham a “Semana IBM”.
Eventos como esses são sediados na Arena Santander, espaço inaugurado em março de 2017 pelo então reitor M. A. Zago, seu vice e atual reitor Vahan Agopyan, o presidente do Santander no Brasil Sérgio Rial e o secretário especial do banco na área de Micro e Pequenas Empresas, José Ricardo Martins de Veiga. A Arena Santander tem oferecido, regularmente, palestras com títulos pitorescos, tais como “Empreendedorismo pelas lentes de Hollywood” (14/6), “Como lidar com a procrastinação” (19/6), “O que você pode fazer pela auto-estima?” (26/6) e até “Empreendedorismo nas faculdades brasileiras: algumas ideias da Suiça” (28/6). Segundo o Jornal da USP, a curadoria dos eventos ficou a cargo da Auspin, coordenada pelo professor Antonio Carlos Marques.
A relação entre a USP e o banco espanhol está longe de ser uma novidade. Iniciou-se em 2001 e já foi abordada em detalhes pela Revista Adusp, em sua edição 62, páginas 22-29. Os reitores da USP sempre foram protagonistas neste inusitado relacionamento entre universidade pública e banco privado: em 2009 a reitora Suely Vilela foi garota-propaganda de um comercial do banco logo retirado do ar e em 2016 o reitor Zago presidiu a Rede Universitária Ibero-americana de Incubação de Empresas (RedEmprendia), um dos braços da “Divisão Global Santander Universidades”.
Em 2018, o reitor Vahan Agopyan participou do IV Encontro Internacional de Reitores Universia, na Espanha, onde participou do painel “Fomento e ativação do empreendedorismo universitário”. O evento foi organizado pela Rede Universia, outra iniciativa do Santander Universidades. Na conclusão do encontro de reitores, foi divulgado um texto-síntese dos debates, intitulado “Declaração de Salamanca”. Um trecho do documento possibilita um vislumbre do conteúdo do evento:
“Os debates que surgiram em Salamanca 2018 apontam para algumas ações e programas que são especialmente relevantes para as universidades, como: flexibilizar e aplicar métodos educacionais inovadores e repensar os processos organizacionais, administrativos e de sustentabilidade; alianças, cursos e certificações com empresas de diferentes setores; modelos novos e alternativos de certificação e integração com plataformas globais; ofertas de formação híbrida e programas de treinamento e reciclagem no local de trabalho, no âmbito de uma formação adaptada às necessidades do aluno e que se prolongue por toda vida; novos diplomas, especialmente os relacionados à ciência da computação, inteligência artificial, ciência de dados e tecnologia; e uma maior ênfase na educação humanista, bem como nas competências transversais dos alunos” (grifos nossos).
É fácil confundir a Rede Universia e a RedEmprendia, mas a diferenciação entre as duas é importante. A Rede Universia é mais ampla e mais antiga, criada em 2000 para servir como uma rede internacional de universidades e que já conta com mais de 1.300 instituições de ensino. Uma de suas autodeclaradas missões é “atuar como agente de mudança, ajudando as universidades a desenvolver projetos compartilhados e gerar novas oportunidades para a comunidade universitária, atendendo à demanda do meio empresarial e institucional e com critérios de eficiência econômica e rentabilidade”. Segundo o site da Universia, 364 instituições de ensino brasileiras fazem parte da rede.
Já a RedEmprendia é mais recente, foi criada em 2009, e conta com apenas quatro universidades brasileiras: USP, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS) e Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Sua missão é mais específica que a da Universia. Em uma lista de cinco objetivos, a RedEmprendia coloca como primeiro o seguinte: “Envolver todos os países da Ibero-América e as suas universidades pela aposta numa ‘Universidade Empreendedora’ com vista a criar uma forte cultura de inovação e empreendedorismo nas comunidades universitárias, procurando que isto também seja transferido para a sociedade e que seja institucionalizada como uma nova e imprescindível missão, como é o caso da docência e da investigação”.
A relação do banco com as universidades, então, aparenta ter diversas “segundas” intenções. Uma delas, talvez a mais óbvia, é utilizar instituições de ensino respeitadas, como a USP, como instrumentos publicitários. Em 2016, por exemplo, o investimento do Santander Universidades com todas suas parcerias internacionais foi de € 57 milhões (cerca de R$ 707 milhões), uma quantia razoável, mas muito pequena quando comparada ao lucro do banco, que naquele mesmo ano, apenas no Brasil, foi de R$ 7,3 bilhões. Assim, com uma pequena fração de seu capital o banco consegue ser divulgado para futuros clientes universitários de diversos países, além de construir sua marca com um simpático viés social.
Fapesp, PIPE e recursos obtidos “no mercado”
Outro motivo subjacente pelo qual o banco explora a expressão “empreendedorismo” é, talvez, incentivar que estudantes e pesquisadores da universidade direcionem suas atividades acadêmicas para a criação de pequenas e médias empresas, possivelmente com empréstimos do próprio banco. Tal intenção transparece numa das palestras oferecidas em junho, “Projeto PIPE – Seja um empreendedor ao final da pós-graduação” (28/6). O programa denominado Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (PIPE), mantido pela Fapesp, “apoia a execução de pesquisa científica e/ou tecnológica em pequenas empresas no Estado de São Paulo”, e tem entre seus objetivos “possibilitar que as empresas se associem a pesquisadores do ambiente acadêmico em projetos de pesquisa visando à inovação tecnológica”.
Na fase 1, de pesquisa sobre a viabilidade ténica das propostas, a Fapesp financia os projetos inscritos no PIPE em até R$ 200 mil. Na fase 2, de “desenvolvimento da proposta de pesquisa propriamente dita”, cada projeto pode receber até R$ 1 milhão da Fapesp. Na fase 3, porém, quando se espera “que a pequena empresa realize o desenvolvimento comercial e industrial dos produtos ou processos, com base nos resultados das Fases 1 e 2”, os recursos “devem ser obtidos pela empresa junto ao mercado ou outras agências de financiamento a empresas”. Por “mercado”, leia-se: bancos, entre eles o Santander.
A idealização projetada por esta “cultura empreendedora” é cada vez mais construída pela mídia brasileira e por empresas privadas como uma solução para a estagnação econômica e como uma alternativa, aos estudantes, de se incluir no mercado sem um emprego assalariado. Porém, nada mais longe da verdade: segundo estudo realizado pela empresa Startup Farm, 74% das startups brasileiras entram em processo de falência antes de cinco anos. O provável futuro para os pesquisadores que adotam o “empreendedorismo” incentivado pelo Santander é, então, um endividamento com o banco.
Há também outra intenção por trás das iniciativas do Santander, esclarecida através da apresentação do diretor geral do Santander Universidades, Steven Assis, no Sétimo Fórum de Reitores, organizado em junho de 2018 pelo Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (CRUB). Assis participou da mesa “Perspectivas para o cenário financeiro universitário pós-eleições 2018” onde, em contraste com o que se deveria esperar desse tópico em um evento como este, expôs as iniciativas do Santander em uma apresentação de slides.
Após explicar os “pilares” do Santander Universidade, “Formação, Emprego e Empreendedorismo”, Assis apresentou aos reitores produtos do banco como o Santander App (“Toda a nossa oferta reunida no principal canal do universitário”), Programa Universitário Empresas (“Vagas de estágio em empresas clientes do Santander”) e, por fim, suas “ofertas financeiras”. Entre estas “ofertas” do banco estão listadas as contas correntes para universitários e também para professores (“Todo professor universitário é no mínimo Van Gogh”, diz a apresentação referindo-se ao pacote de serviço para clientes com renda entre R$ 4 mil e R$ 10 mil), assim como financiamento para alunos de pós-graduação ou de cursos de Medicina. Mas, para além das ofertas para pessoas físicas, são as “ofertas financeiras” para pessoas jurídicas que chamam a atenção. Nestes slides, o banco anuncia seu serviço de “gestão integrada de negócios” para as universidades particulares.
Assim, mais do que captar os recursos daqueles que pretendem se tornar empresários, o Santander Universidades tem em vista o capital de universidades privadas já consolidadas. A publicidade quase gratuita fornecida por instituições como a USP serve não apenas para dar um verniz de um banco preocupado com a educação social, mas também para atrair grandes clientes do mercado educacional.
A participação do Santander estende-se às outras universidades públicas estaduais, às vezes de modo constrangedor. Na mesa de abertura do Seminário Nacional “Educar em Direitos Humanos na Universidade: compromisso com a diversidade e igualdade”, que a Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) realizará nos dias 19 e 20/7 em São Paulo, ao lado da pró-reitora de Extensão, Cleópatra Planeta, e de outros convidados de origem acadêmica, está prevista a presença de um “Representante do Banco Santander” (sic).
O Santander, entretanto, não é a única empresa focada em se revestir de agente social por intermédio do culto ao empreendedorismo na universidade. Em junho de 2018, as poderosas multinacionais Monsanto e Procter & Gamble patrocinaram o evento “Elas pela USP”, com apoio da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão e do Escritório USP Mulheres e colaboração do Núcleo de Empreendedorismo da USP e da Rede Mulher Empreendedora. Uma das palestras do evento foi intitulada “Medidas empresariais para a igualdade de gênero”, ministrada pela Monsanto, empresa da área de agricultura e biotecnologia responsável pela comercialização de sementes geneticamente modificadas e agrotóxicos, assim como protagonista de incontáveis controvérsias. Apenas para citar um exemplo, em 2014 mulheres indígenas da Guatemala protagonizaram protestos contra a empresa, lutando para garantir a plantação de espécies de milho utilizadas por nativos durante gerações, ameaçada pelas patentes e pelas sementes transgênicas da empresa.
Santander e Monsanto são apenas duas das muitas empresas que têm encontrado na universidade um generoso espaço para publicidade, em detrimento do pensamento crítico. Este ambiente cada vez mais mercantilista e hipócrita foi criado com o consentimento de todas as últimas gestões reitorais e está criando mais e mais raízes, encaminhando-se para a naturalização do uso privado do patrimônio público.
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