“O deslocamento forçado de trabalhadoras/es para o campus é irracional do ponto de vista da gestão do trabalho: significa tirá-los do home office para executar as mesmas tarefas no local de trabalho”, e a Reitoria “rompe o princípio de isonomia e de cuidado com a vida da comunidade uspiana” ao diferenciar negativamente o funcionalismo da universidade, protesta a Congregação da Faculdade de Educação. Na avaliação do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da ECA, o plano do GT PRAA “demonstra discriminação e desumanidade ao alterar as condições clínicas de risco para retorno ao trabalho presencial”

Não bastassem as ostensivas manifestações de apoio que vem recebendo, a decisão do funcionalismo da USP de deflagrar nesta segunda-feira (9/11) uma greve sanitária em defesa da vida, por tempo indeterminado, é indiretamente endossada por colegiados das unidades de ensino que se opõem frontalmente ao “sétimo documento” do “Plano USP”, formulado pelo Grupo de Trabalho para a Elaboração do Plano de Readequação do Ano Acadêmico de 2020 (GT PRAA), coordenado pelo vice-reitor Antonio Hernandes.

É o caso das congregações da Faculdade de Saúde Pública (FSP) e da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), já relatados pelo Informativo Adusp (confira aqui). É o caso, ainda, da Congregação da Faculdade de Educação (FE), que em reunião realizada em 29/10 decidiu “tornar pública sua contrariedade” em relação àquele documento, bem como solicitar “que sejam abertos espaços plurais de diálogo, com as decisões sobre o retorno ao trabalho presencial sendo tomadas no âmbito das unidades, onde as especificidades se apresentam, de modo a produzir acordos e medidas que, a um só tempo, preservem a vida e a saúde de todas e todos e garantam a continuidade das atividades desta Universidade”.  

A Congregação da FE elenca robustas razões: 1) “O Plano de Retorno Gradual das Atividades Presenciais é na realidade um novo plano de retorno visto que modifica as principais premissas de versões anteriores do documento, que orientaram a reorganização do trabalho”; 2) “Tais premissas foram modificadas sem que tenham sido apresentadas quaisquer evidências de que as práticas em desenvolvimento nas unidades não estivessem funcionando adequadamente”; 3) “A aludida atualização do documento estabelece o retorno compulsório da maior parte dos/as funcionários/as, em regime de escala, sem que sejam consideradas as especificidades do trabalho realizado nas diferentes unidades e tampouco os ajustes que se fizeram necessários para a boa condução do trabalho remoto ao longo do ano de 2020”; 4) “As mudanças indicadas não estão embasadas em evidências científicas, de modo a garantir a saúde e a segurança sanitária daquelas/es obrigadas a retornar, alterando ainda a classificação que define o ‘grupo de risco””; 5) “O novo regime de escala desconsidera, ainda, que o atendimento ao público tem sido feito de forma virtual e que o deslocamento forçado de trabalhadoras/es para o campus é, nesse sentido, irracional do ponto de vista da gestão do trabalho: significa tirá-los do home office para executar as mesmas tarefas no local de trabalho”.  

O documento denuncia, igualmente, a atitude elitista da Reitoria em relação ao funcionalismo técnico-administrativo da instituição: “Ao manter docentes e estudantes em atividades remotas, submetendo somente parte das trabalhadoras/es à reorganização, a comissão responsável pelo plano rompe o princípio de isonomia e de cuidado com a vida da comunidade uspiana, explicitando o valor diferencial que atribui às vidas deste segmento da comunidade (bem como às vidas das terceirizadas e terceirizados, que também terão aumentados seus riscos de exposição à doença). Tal diferenciação, tanto mais porque injustificada, é inaceitável”.

Na mesma linha se manifestou o Conselho do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão (CTR) da Escola de Comunicações e Artes (ECA), em reunião realizada no dia 3/11, na qual expressou publicamente seu desacordo quanto às premissas de compulsoriedade de retorno presencial para os servidores técnico-administrativos”, por entender que tais premissas “não levam em consideração o trabalho em domicílio que esses servidores já realizam, e que nunca deixaram de realizar, durante a pandemia da Covid-19, além de desconsiderarem as instâncias de decisão dos departamentos e unidades, as quais conhecem suas necessidades e sabem melhor avaliar o andamento na condução de suas atividades acadêmicas e técnicas”. E acrescenta: “Neste momento, este Conselho não vê necessidade de colocar a saúde de seus funcionários em risco, diante da ainda preocupante situação de saúde pública em que nos situamos”.

Entende o Conselho do CTR “que o documento apresentado não leva em consideração a paridade democrática entre todos que compõem a universidade”, fazendo recair a compulsoriedade de retorno exclusivamente sobre os servidores técnico-administrativos. “E ainda demonstra discriminação e desumanidade ao alterar as condições clínicas de risco para retorno ao trabalho presencial”.

Na avaliação do colegiado, a USP deve levar em consideração o respeito, a proteção e a preservação dos direitos à saúde e à vida de todos os membros que compõem a sua formação. “Concordamos que a volta das atividades presenciais deva ser prevista, mas não vemos necessidade, dentro da eficaz rotina atual do Departamento, de expormos nossos funcionários ao risco de contágio no transporte público e de seus familiares por extensão. Retornar à universidade sem um rígido e claro processo de higienização, sem as condições sanitárias necessárias e ainda em meio a índices elevados de contaminação e mortes, é, no mínimo, temerário. Diante do exposto, gostaríamos de propor repensar o documento acima citado com a participação dos departamentos e das unidades da USP”.

GPTC, da Faculdade de Direito, apoia greve e critica “retorno apressado”

Diante dos evidentes riscos de contágio criados pelo “Plano USP” de retorno, a palavra de ordem “em defesa da vida das trabalhadoras e dos trabalhadores da USP” vem sendo assumida e destacada em diferentes pronunciamentos favoráveis à greve liderada pelo Sindicato dos Trabalhadores (Sintusp).

Assim, por exemplo, a Frente Paulista em Defesa do Serviço Público, que congrega dezenas de entidades sindicais e acaba de travar importante batalha contra o projeto de lei (PL) 529/2020 do governador João Doria (PSDB) — cuja versão inicial extinguia dez órgãos públicos e confiscava recursos da USP, Unesp, Unicamp e Fapesp — emitiu nesta terça-feira (10/11) nota dirigida à Reitoria e ao Conselho  Universitário da USP, na qual manifesta solidariedade às/aos servidoras/es e exorta a Reitoria a “respeitar a decisão de assembleia que deliberou a entrada em greve sanitária” e a “abrir um canal efetivo de diálogo com a entidade que constitui sua legítima representação, o Sintusp”.

Também o Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (GPTC), integrado ao Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da USP “e cujos estudos se voltam à compreensão dos problemas vivenciados pela classe trabalhadora ao longo de sua história”, saiu a público para “manifestar seu total apoio à greve sanitária deflagrada pelos(as) servidores(as) da Universidade de São Paulo” e por meio da qual “se comprometem a manter o teletrabalho, bem como as atividades presenciais essenciais”.

O GPTC informa que, do ponto de vista institucional da unidade à qual pertence, o entendimento é oposto ao seu: “No âmbito da Faculdade de Direito, em direção oposta ao defendido na Faculdade de Saúde Pública e na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, o Plano da Reitoria da USP para impor aos servidores e servidoras uma volta compulsória ao trabalho presencial, a partir de 6 de novembro de 2020, foi ratificado pelo Conselho Técnico-Administrativo (CPA) da Faculdade mediante a apresentação de dois argumentos: a) a necessidade de acesso, pelos alunos, aos livros da biblioteca; e b) a necessidade de realização de uma preparação prévia ao início das aulas de reposição presenciais, marcadas para 4 de janeiro de 2021, sendo que essas aulas, por diversos motivos, teriam que, obrigatoriamente, ser realizadas antes do início do ano letivo, previsto para março de 2021”.

Tais alegações são rechaçadas pelo GPTC: “Quanto ao primeiro argumento, com o devido respeito, consideramos que, por mais importante que seja, o empréstimo de livros aos alunos não representa uma atividade essencial, no sentido de sua ausência gerar risco de vida a alguém e também de não poder ser substituída por outra forma que satisfaça o interesse que atende. Assim, não se justifica expor vidas a risco para a realização de uma atividade que não é essencial”.

Além disso, no tocante à alegação de necessidade de preparação prévia, “os professores sobre os ombros dos quais se tenta justificar a necessidade de retomada das atividades presenciais em janeiro de 2021, vez que foram os que se recusaram a ministrar suas disciplinas de forma virtual em 2020, diante do dilema posto, em que se projeta, de um lado, a convicção de resistir à disseminação do ensino virtual, e, de outro, a acusação de constituírem o fundamento para que se coloquem vidas em risco, já anunciaram que darão as aulas de reposição virtualmente”.

Assim, conclui o documento do GPTC, não havia (e não há) razão para que se retomem, ainda em período crítico da pandemia, as atividades presenciais dos servidores e servidoras. “Oretorno apressado das atividades presenciais, imposto apenas aos servidores e servidoras, sem relação alguma com a melhora da prestação de serviços à comunidade, transparece, pois, meramente como uma forma de repercutir interesses políticos e econômicos no sentido de transmitir para a sociedade, mediante sacrifício alheio, a sensação de que as coisas estão voltando ao normal, quando, de fato, ainda não estão, tanto que apenas a alguns essa aceleração se impõe, não se respeitando sequer as limitações do grupo de maior risco”, denuncia.

“Vida de servidores não vale menos que a vida de docentes e estudantes”, diz DCE

O Diretório Central dos Estudantes da USP (DCE-Livre “Alexandre Vannucchi Leme”) também emitiu nota sobre a greve, a exemplo do que já havia feito a APG-Capital. O texto expõe a atitude cruel e leviana da Reitoria: “Em meio à pandemia de Covid-19, com cerca de 500 mortes diárias em nosso país, é irresponsável por parte da Reitoria da USP expor os servidores ao risco de contágio da doença. Sem que haja a vacina contra o vírus, não é aceitável obrigar que os funcionários tenham que se expor à aglomerações e a situações de risco, seja dentro da Universidade, seja no deslocamento. Nenhum funcionário deve colocar a sua vida e de sua família em risco em prol da satisfação da ‘opinião pública’”.

Além disso, assinala o DCE-Livre, “as aulas na USP retornarão presencialmente apenas no próximo ano, de modo que professores e estudantes somente voltarão em 2021 e não há necessidade concreta de retorno apenas de funcionários”, de tal modo que “a medida é discriminatória contra a categoria mais vulnerável”. Portanto, “nos colocamos ao lado dos trabalhadores contra o retorno das atividades presenciais de serviços não essenciais”, conclui a nota, após destacar: “A vida de servidores não vale menos do que a vida de docentes e estudantes”.

Outra manifestação partiu da central sindical Conlutas, à qual é filiado o Sintusp: “A própria Reitoria assumiu que o seu plano de retorno tem motivação meramente política, e não está pautado em nenhum critério científico, e nem mesmo nas necessidades do serviço! É um plano que vai expor a vida de milhares de pessoas, contribuir para o aumento geral de casos da doença e para o descontrole da pandemia, somente para o reitor [Vahan Agopyan] fazer bonito com o governador Doria. Ou, ainda pior: para ajudar os magnatas que vão realizar o evento luxuoso de exposição de barcos e lanchas [“São Paulo Boat Show”], que vai ter a participação prevista de 30 mil pessoas no campus! Um escândalo!”

Por tais razões, conclui o documento, a “Central Sindical e Popular CSP-Conlutas e seus sindicatos, movimentos e entidades filiadas abaixo assinadas se solidarizam integralmente com a greve sanitária dos trabalhadores da USP e repudiam as pressões do reitor pelo retorno ao trabalho porque atentam contra a saúde e a vida!”.

Grupo da FFLCH repudia documento do GT PRAA

Em nota divulgada nesta quarta-feira (11/11), o corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades (PPGHDL) e do Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos/USP (Diversitas), sediados na FFLCH, declarou repúdio ao conteúdo do “sétimo documento” do GT PRAA, que prescreve o “retorno compulsório para a maioria dos servidores universitários”.
 
“Semelhante prescrição — ainda que autoproclamada preservadora da saúde e da vida da ‘comunidade universitária’ — menciona o conceito de ‘bolha sanitária’, cujo ponto de culminância seria a ‘criação de grupos de servidores técnicos e administrativos’ destinados a voltar aos postos físicos de trabalho ‘no mesmo dia’. Em que pese todo desenho de escalas, dedicado a manter juntos os tais grupos ou ‘bolhas’, a medida desconsidera um conjunto mais ou menos amplo e heterogêneo de razões desabonadoras”, adverte a nota conjunta PPGHDL-Diversitas.
 
No entender do grupo, o conceito de “bolha sanitária”, base fundamental do documento do GT PRAA, “não pode ser tomado à letra, uma vez ser falsa a ideia de uma campânula estéril dentro da qual o corpo técnico e administrativo da USP poderia trabalhar em segurança”. Tanto assim, prossegue, que o mesmo documento faz referência à “eventualidade de contágio”, uma contingência “possivelmente fatal para servidores exibidores de quaisquer ‘condições clínicas’, grupo de risco ou não”. Nenhuma “entidade pública ou privada” pode atestar “condições clínicas” favoráveis ao enfrentamento do vírus, advertem os autores da nota.
 
“Considere-se, ainda, que os servidores técnicos e administrativos, até o dia de hoje em regime de teletrabalho, deverão afrouxar as medidas de distanciamento social a fim de se deslocar até a USP, aumentando exponencialmente suas oportunidades de contágio. Um aumento exponencial para que, uma vez na USP, desempenhem atividades análogas àquelas realizadas em casa”, advertem. “Cumpre sublinhar que, de acordo com a Organização PanAmericana da Saúde (OPAS) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), o novo coronavírus pode saltar de uma pessoa para outra desde o contato direto e o contato indireto, o que torna ‘contato’ o grande ponto de inflexão”.
 
A nota conjunta PPGHDL-Diversitas reconhece que a “exceção colada” ao funcionalismo da USP é, “incontestavelmente, informadora de raça e classe”, na medida em que mantém preservados os corpos docente e discente da universidade”, a despeito da alegada “estabilidade da situação epidemiológica”. Arremata jogando uma pá de cal sobre o retorno seletivo: “Se a USP não é segura para professores e estudantes, então, não é segura para quem quer que seja”.
 
 

EXPRESSO ADUSP


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