Privatização
Envolvimento crescente com “empreendedorismo” e “negócios” não desvia a Fapesp de sua vocação?
Nas iniciativas da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), como nas ações da USP, o duplo viés inovação&empreendedorismo tem conduzido a equívocos institucionais. A Fapesp surgiu para financiar a pesquisa acadêmica, mas passou a subsidiar desde start-ups até um gigante empresarial como o grupo Cosan, sempre a pretexto de apoiar a inovação. Por outro lado, exemplos recentes indicam que talvez a fundação venha se descuidando de certos limites éticos que deveriam ser preservados. Ou seria correto tratar de “oportunidades trazidas pela Covid-19” a certos empreendimentos empresariais?
No dia 7/4, realizou-se o webinário intitulado “Empreendedorismo científico e inovação em resposta à Covid-19”, dentro de um programa denominado Fapesp Covid-19 Research Webnars. A abertura da atividade esteve a cargo do diretor científico da instituição, Luiz Eugênio Mello, ex- diretor de Tecnologia e Inovação da Vale. “Inovar é um desafio para todas as organizações no mundo em constante mudança, exigindo preparo para novos contextos”, diz o texto sobre o evento na página da Fapesp. “A Covid-19 trouxe uma nova realidade com novas demandas urgentes para a sociedade. Neste webinário, diferentes organizações empreendedoras vão discutir em que consiste estar preparado para atender esses desafios”.
A primeira apresentação, “Inovação e empreendedorismo científico – conexão com as start-ups”, coube a Rodrigo Bornhausen Demarch, diretor de Inovação do Hospital Israelita Albert Einstein e CEO da Zetta Health Analytics. A segunda e a terceira apresentações foram intituladas respectivamente “Oportunidades trazidas pela Covid-19 ao negócio da Timpel”, a cargo de Rafael Holzhacker, presidente da Timpel Precision Ventilation, e “Oportunidades trazidas pela Covid-19 ao negócio da Biolinker”, a cargo de Mona das Neves Oliveira, diretora científica dessa empresa.
Ainda que a intenção não tenha sido essa — afinal de contas os palestrantes mostraram importantes produtos desenvolvidos por essas empresas contra a Covid-19, às vezes com financiamento da Fapesp ou em colaboração com a USP — os títulos das apresentações revelam insensibilidade da agência de fomento ao associar a palavra “oportunidades” a uma pandemia mortal.
“Aproveito para deixar uma nota de certo repúdio individual”, comentou a professora Beatriz Raposo, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP). “Como pode a Fapesp (que respeito muito) deixar passar uma chamada assim? Quer dizer que um negócio com base em achados científicos da universidade pública vive de oportunidades? Assim, como se sai para pescar?”
Fapesp recruta “assessores de negócios” para avaliar projetos do PIPE
Em outra frente, a Coordenação dos Programas de Inovação da Fapesp acaba de divulgar o documento intitulado “Tutoriais Assessoria de Negócios”, uma apresentação destinada a pesquisadores acadêmicos eventualmente interessados em atuar como assessores ad hoc na avaliação de projetos inscritos no Programa Inovativo em Pequenas Empresas (PIPE), ou ainda como mentores dos projetos aprovados. Os tutoriais instruem os pesquisadores, “potenciais assessores”, a preencherem as planilhas digitais de cadastramento no Sistema de Apoio à Gestão do Fomento (SAGe).
O SAGe permite ao pesquisador acesso online, “utilizado para recebimento de propostas de financiamento a projetos de pesquisa científica e tecnológica e para administração de projetos aprovados em suas linhas de apoio”. Seus objetivos, segundo a Fapesp: “facilitar o fornecimento de informações por parte dos pesquisadores, agilizar procedimentos e possibilitar maior visibilidade das ações da Fapesp, entre outros”.
Interessada em atrair força de trabalho qualificada a custo zero, a Fapesp não poupa esforços: “Conforme comentado na reunião de convite às escolas de negócio e administração, recomendamos incluir as atividades de assessoria de negócios e mentoria no Lattes para dar visibilidade. Vale lembrar de que as informações das propostas são confidenciais, podem ser citada [sic] apenas a quantidade de pareceres realizados”. As lâminas seguintes dão exemplos gráficos de onde inserir no Lattes as informações sobre assessoria e mentoria.
“Agradecemos a disposição e engajamento nesta evolução na avaliação de propostas nos Programas PIPE da Fapesp”, diz a Coordenação dos Programas de Inovação ao encerrar a apresentação, procurando assim estimular o voluntariado. “Todos os cadastrados até a primeira semana de Maio/2021 serão convidados para workshop sobre o processo de avaliação do PIPE”.
Como se pode constatar pela simples leitura dos títulos de cada tutorial, eles consagram o perfil de pesquisador desejado pelo ideário neoliberal, com ampla interface entre a academia e o mundo empresarial: “Cadastramento como Assessor de Negócios”, “Mentoria PIPE Empreendedor” e “Sugestão para inserção no Lattes”. Porém, com a vantagem adicional de que se trata de trabalho voluntário.
“O primeiro passo a ser dado é identificar-se como assessor de negócios, colocando ‘Negócios’ nas palavras-chave”, explica o tutorial. “Em seguida, inserir os segmentos de mercado/indústria de sua especialidade segundo a lista anexa nas palavras-chave. Ao inserir estas informações, na indicação de assessoria, o nome do pesquisador aparecerá na lista de busca por assessores de negócios no segmento desejado”.
“Pequena empresa” pode ter até 250 trabalhadores empregados
Criado em 1997, o PIPE prevê benefício total de até R$ 1,2 milhão por projeto contemplado. Desde fins de 2020 o programa recebe propostas em fluxo contínuo, sem necessidade de chamadas (eram quatro por ano). O conceito de “pequena empresa” adotado pela Fapesp é um tanto elástico: “O PIPE apoia a execução de pesquisa científico-tecnológica em pequenas empresas com até 250 empregados [sic], sediadas no Estado de São Paulo. Os projetos deverão ser desenvolvidos por pesquisadores com vínculo empregatício com a empresa ou a elas associados para sua realização”.
Um dos subprogramas é o “PIPE Empreendedor – Programa de Treinamento em Empreendedorismo de Alta Tecnologia”, cujo objetivo é “conferir mais robustez e sustentabilidade comercial” às propostas aprovadas no âmbito do PIPE e que envolvam “empresas que se encontram na Fase 1”, de análise da viabilidade da pesquisa para inovação. “Lançado em 2016 pela Fapesp, em parceria com a George Washington University, o PIPE Empreendedor segue a linha do Programa I-Corps, criado pela National Science Foundation (NSF) dos Estados Unidos em parceria com o professor Steve Blank”, diz o site da fundação. A ideia é “acelerar os benefícios econômicos e sociais dos projetos PIPE, aumentando seu potencial de comercialização”.
O subprograma “PIPE Empreendedor” leva a Fapesp a enveredar por caminhos que já nada têm a ver com o financiamento da pesquisa científica. Os títulos de alguns textos subsidiários lembram uma certa literatura de autoajuda empresarial: “Conhecer, de fato, quem são seus clientes. Clientes serão sempre pessoas”; “Desenvolver uma proposta de valor persuasiva. Não venda, seja comprado”; “Não é sobre um ótimo programa, é sobre melhores empreendedores. Clara demonstração de alinhamento científico, tecnológico e comercial”.
Ao assumir a presidência da Fapesp, em outubro de 2018, o ex-reitor M.A. Zago anunciou que acentuaria o foco nas “parcerias” que a agência já vinha fazendo com empresas. Destacou que nos últimos anos fortaleceram-se “programas de perfil mais fortemente tecnológico e de inovação, correspondendo a uma aspiração de diferentes parceiros do sistema de ciência e tecnologia de São Paulo, sem que o apoio à pesquisa mais tradicional sofra qualquer efeito negativo”, e informou que o plano de metas orçamentárias da Fapesp previa “aumento dos dispêndios de pesquisa em colaboração com empresas de 10% para 13% do total” até 2023.
Menos de um ano depois, em artigo publicado na Folha de S. Paulo, após fazer referência à cooperação de universidades e institutos de pesquisa com o “setor produtivo e empresarial”, bem como ao “número crescente de startups”, Zago revelou que o PIPE apoiava naquele momento nada menos do que “80 empresas tecnológicas” ligadas ao agronegócio, setor da predileção do presidente da Fapesp.
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