Ditadura militar
Herzog para sempre, ditadura nunca mais!

foto: Daniel Garcia
“Nós tínhamos apostado na luta democrática. Quando o Vlado é assassinado, aquilo desmonta a gente. O melhor de nós, um cara referencial, o que mais se expôs. E [sua morte] acabou despertando a sociedade para ver que a Ditadura não tinha limites”. O marcante depoimento do cineasta João Batista de Andrade, colega de Vladimir Herzog (“Vlado”) na TV Cultura e seu amigo pessoal, abriu a homenagem realizada pela Adusp no auditório da História, em 16/11.
Daniel Garcia |
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João Batista de Andrade |
Pensada para relembrar o quadragésimo aniversário do assassinato do então diretor de jornalismo da TV Cultura e professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP), ocorrido em outubro de 1975, a homenagem contou ainda com participação de Ivo Herzog, diretor executivo do Instituto Vladimir Herzog; do professor Dennis Oliveira, chefe do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA; e do professor César Minto, presidente da Adusp. O professor Marco Brinati, da Escola Politécnica (EP), coordenou a mesa.
Andrade admitiu que ainda lhe é penoso tocar no assunto: “É muito difícil falar do Vlado, porque eu sinto uma emoção muito grande”. Embora fosse ligado ao “Partidão” — Partido Comunista Brasileiro (PCB), que optou por enfrentar a Ditadura Militar por meio da “luta democrática” e não da guerrilha — o cineasta teve amigos que tombaram na luta armada contra o regime. No entanto, foi a morte de Herzog a que mais comoveu a ele e a outras pessoas do seu círculo de amizades, “porque Vlado representava uma generosidade imensa”, disse.
O cinema aproximou-os, recordou Andrade, porque “Vlado inicialmente tendia a ser cineasta” e ambos tinham amigos cineastas em comum, como Jean-Claude Bernardet, Maurice Capovilla, Luis Sérgio Person. No entanto, “Vlado optou pelo jornalismo porque teria um acesso maior à sociedade”, avalia ele, que foi convidado para trabalhar no telejornal “Hora da Notícia”, da TV Cultura, para fazer especiais.
“Vlado acreditava que os intelectuais teriam um papel importante na superação da Ditadura no Brasil. Isso me pegava inteiramente. Era uma pessoa-chave para a gente”, explicou, referindo-se a um numeroso grupo de pessoas ligadas ao PCB, que acreditavam na possibilidade de “mobilizar a sociedade, para que da própria sociedade viesse um movimento para superar a Ditadura”. Em 2005, Andrade dirigiu o documentário Vlado, 30 anos depois.
Concentração
Por produzir um “jornalismo crítico, independente, autônomo” na TV Cultura é que Herzog foi punido, disse o jornalista e professor Dennis Oliveira. Ele destacou que, decorridos trinta anos do final da Ditadura Militar, ainda persistem no país entraves à plena democratização.
“Vivemos uma sociedade em que a Polícia Militar mata duas pessoas por dia e temos regiões que vivem em estado de sítio permanente, com torturas em delegacias, execuções, invasões de domicílio”, assinalou o professor da ECA, que também é pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre o Negro Brasileiro (Neinb), observando serem essas típicas ações ditatoriais. “A periferia não vivencia a democracia”.
Oliveira apontou que, no Brasil, a “concentração brutal” dos meios de comunicação de massa, surgida precisamente durante a Ditadura — e que se mantém apesar de a legislação proibir a existência de oligopólio e monopólios no setor — impede a plena realização do jornalismo. Notou que a TV Cultura passa hoje por “dificuldades imensas”.
No seu entender, é fundamental para uma sociedade conhecer sua própria história. Celebrar a memória de Herzog, enfatizou, permite refletir sobre questões nevrálgicas do passado ainda existentes no presente. “Esta luta de Vladimir Herzog continua. A luta democrática necessita do nosso engajamento”, afirmou ele.
Atiradores
Ivo Herzog, filho de Vladimir, agradeceu à Adusp pela homenagem e disse ter orgulho de haver estudado na USP, como seus pais. “Viver a USP, viver o campus universitário, é de uma riqueza incrível”, comentou. Ele chamou a atenção dos jovens presentes para o fato de que, se hoje as universidades públicas atendem a número maior de estudantes, isso se deve à luta das gerações anteriores. Também citou estatística segundo a qual entre 70% e 80% das pessoas assassinadas pela PM são jovens.
Ivo criticou a cobertura que a mídia vem dando ao desastre ambiental de Mariana (MG). A seu ver, houve “muito espaço para a França” (o massacre perpetrado pelo Estado Islâmico em Paris), mas “pouco espaço para o que aconteceu há dez dias em Minas Gerais”. O principal acionista da Vale do Rio Doce — que divide com a empresa australiana BHP o controle da mineradora Samarco — é o banco Bradesco, coincidentemente também o principal acionista do jornal O Estado de S. Paulo, observou.
No Brasil, “a democracia foi conquistada pacificamente”, enfatizou o presidente do Instituto Vladimir Herzog. Imediatamente antes do ato ecumênico celebrado na Catedral da Sé, em 1975, generais ameaçaram dom Paulo Evaristo Arns, insinuando que ele poderia se tornar responsável por um “banho de sangue”. A Praça da Sé estaria cercada por atiradores de elite, prontos para disparar à menor provocação. Assim, para Ivo, a chegada à Catedral e a saída dos manifestantes, em paz, é que, em última análise, abriram caminho ao fim da Ditadura.
Impunes
“Ainda hoje, as atrocidades cometidas por agentes da Ditadura Militar continuam impunes”, disse o professor César Minto. “No episódio que resultou na morte de Vlado, o general que comandava o II Exército foi apenas exonerado. Anos depois, morreu sem responder por seus crimes. E os torturadores que agiram sob as suas ordens no DOI-CODI continuam soltos e impunes”.
Assim, a Lei da Anistia de 1979 precisa ser revista, “de modo a permitir que os agentes públicos implicados com o Terrorismo de Estado venham a ser processados por seus crimes”. O presidente da Adusp registrou que há indícios de permanência do regime militar, como o extermínio de jovens negros e pobres praticado pela PM.
Relembrar a trajetória de Vlado permite combater o esquecimento que favorece os defensores da Ditadura. “Por isso nos interessa falar do Vlado jornalista, que honrou como poucos essa profissão. Por isso nos interessa também falar do Vlado professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, um vínculo que essa universidade esqueceu deliberadamente e por muitos anos”.
Na USP, o episódio gerou mudanças: a indignação provocada pela morte do jovem professor “conduziu à transformação da antiga Associação dos Auxiliares de Ensino na Associação dos Docentes, a nossa Adusp” (vide íntegra).
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