IQ anula demissão de Ana Rosa Kucinski e pede desculpas à família da professora

Em 22 de abril de 1974, Ana Rosa foi sequestrada, junto com seu marido, o físico Wilson Silva, e nunca mais foi vista. Sabe-se hoje que ela foi torturada e morta pelas forças de repressão do regime militar”. “Ana Rosa foi docente deste instituto. A violência contra ela, que também foi uma violência contra este instituto e contra esta universidade, não deve jamais ser esquecida”.

Pronunciadas por seu diretor, professor Luis Henrique Catalani, na tarde de 22/4, estas palavras anunciaram uma histórica mudança de posição do Instituto de Química (IQ) no tocante às graves injustiças cometidas pela Universidade de São Paulo contra a memória de Ana Rosa Kucinski.

Daniel Garcia
Diretor do IQ e vice-reitor descerram memorial em homenagem a Ana Rosa

Diante de mais de uma centena de convidados presentes a um dos corredores externos do IQ, em cerimônia carregada de emoção na qual foi inaugurado um memorial em homenagem à professora, Catalani prosseguiu: “Com a ajuda e o inestimável apoio da Comissão da Verdade da USP, a decisão equivocada e ainda incompreensível da Congregação de outubro de 1975 dispensando Ana Rosa por abandono de cargo foi revista na última reunião da Congregação do IQ, de 17 de abril de 2014, que, por unanimidade, declarou nula a decisão de 1975”.

Apesar da incansável luta de seus familiares, ao longo de décadas, para que fosse revista a dispensa por “abandono de cargo”, decidida quando já se sabia que o desaparecimento da professora estava relacionado a uma provável captura por órgãos de repressão, em razão de sua militância política, a Congregação do IQ vinha-se negando a reconhecer o erro, mesmo depois que a Reitoria anulou formalmente a demissão, em 1995.

Exemplo de virtude

“Num dos períodos mais sombrios da história recente do Brasil, a USP foi vitimada pelo estado de exceção, perdendo docentes, funcionários e alunos, seja pelo banimento, forçando-os ao exílio, ou pela detenção. Muitos desses detidos foram assassinados, e seu destino tem sido tema de constantes questionamentos da sociedade”, explicou o diretor.

“Ainda por unanimidade, a Congregação delegou a mim o dever de enunciar um pedido de desculpas à família por este equívoco, o que já foi feito por escrito, e que reitero em público, dirigido à pessoa de seu irmão, professor Bernardo Kucinski”, continuou Catalani. “Se não pelo perdão, mas pelo reconhecimento de que o IQ de hoje enxerga em Ana Rosa um exemplo de virtude na luta pela liberdade”, encerrou.

“Quando um governo ditatorial exila, elimina, mata e faz desaparecer inúmeras pessoas que eram gotas de um espírito revolucionário em meio a um oceano marcado por políticas e espíritos conser­­­vadores, ele torna-se responsável pelo atraso da ciência e da própria organização, profundamente desigual, da sociedade”, disse em seguida a professora Janice Theodoro da Silva (FFLCH), presidente em exercício da Comissão da Verdade da USP.

“Foi diante desta situação, arriscada e difícil, que Ana Rosa se posicionou optando por buscar, em movimentos revolucionários, soluções para o impasse que vivia o Brasil da década de 70. O monumento que inauguramos hoje fará sobreviver o nome de Ana Rosa Kucinski Silva, e da família Kucinski com sua fé inabalável na busca por justiça e liberdade, necessária para que o conhecimento e a crítica floresçam, frutos necessários para a manutenção de uma Universidade”.

Daniel Garcia
Professor Bernardo Kucinski, irmão de Ana Rosa, ao lado do memorial

Coragem

Também convidado a se manifestar, o deputado Adriano Diogo (PT), presidente da Comissão Estadual da Verdade “Rubens Paiva”, lembrou que até hoje nenhum torturador foi punido. “A USP repõe uma parte da biografia de Ana Rosa. Seu corpo continua insepulto e o Estado brasileiro deve esta explicação”, afirmou.

“Nenhuma das pessoas que levavam os prontuários da USP à Oban foi punida”, disse o deputado, referindo-se à Operação Bandeirantes, centro de tortura mantido pelo Exército durante a Ditadura Militar, predecessor do DOI-CODI. “Grupos de extermínio existem até hoje nos batalhões da PM. Para que a Ditadura acabe definitivamente, os crimes dela têm de ser apurados”.

O vice-reitor Vahan Agopyan cumprimentou a Congregação pela decisão de rever o caso: “Este é um momento muito importante do IQ. A família merecia esta resposta. Temos de ter a coragem de descortinar o que ocorreu”, declarou em nome da Reitoria. Ele destacou o papel da Comissão da Verdade da USP e a importância de a sociedade manter viva sua memória: “É preciso haver a lembrança contínua das atrocidades cometidas, para que não voltem a ocorrer”.

“Não podemos esquecer de que quem redigiu o AI-5 foi nosso reitor afastado [Gama e Silva], e a primeira universidade a sofrer os efeitos do AI-5 foi a USP, com o afastamento do saudoso vice-reitor Hélio Lourenço”, recordou Vahan.

Atrocidades

Convidado a falar, o professor Ciro Correia, presidente da Adusp, observou que a inauguração do memorial, precedida da “emblemática decisão” da Congregação do IQ de anular a demissão da professora Ana Rosa, bem como os atos oficiais de homenagem do Estado brasileiro a Alexandre Vannucchi Leme, realizado em 15/3/13 no Instituto de Geociências, e a Alexander Ibsen Voeroes, realizado em 9/4/14 na Faculdade de Educação, “têm enorme importância numa sociedade que ainda não implementou efetivamente o resgate histórico de todas as atrocidades cometidas pelo Estado naquele período”.

Por esse motivo, assinalou, “colocamos estes eventos na perspectiva de que, a partir de agora, a universidade assuma efetivamente a responsabilidade de buscar esclarecer tantos outros casos de docentes, estudantes e funcionários, perseguidos, excluídos dos seus quadros, ou até mesmo assassinados no período, como aqueles indicados no Caderno Especial da Revista Adusp 53, de outubro de 2012, intitulado ‘Subsídios para uma comissão da Verdade da USP’”.

Ciro frisou que a demissão de Ana Rosa foi “decidida pelo colegiado [Congregação do IQ] em 1975 por solicitação da Reitoria”, chamando atenção para a colaboração da administração da USP, à época, com os órgãos de repressão a serviço da Ditadura Militar.

Informativo nº 380

 

EXPRESSO ADUSP


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