Educação
Em audiência pública no STF, docente da FE sustenta que “militares não são educadores”. Debate dará subsídio para decisão sobre legalidade ou não das escolas públicas militarizadas
A professora Denise Carreira, docente da Faculdade de Educação (FE) da USP, foi uma das 36 representantes de instituições públicas, incluindo o Congresso Nacional e assembleias legislativas, além de outras organizações e entidades, que participaram de audiência pública convocada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nesta terça-feira (22/10), em Brasília, para discutir o programa das escolas “cívico-militares” no Estado de São Paulo. Também docente da FE, o professor Fernando Cássio representou na audiência a Rede Escola Pública e Universidade (REPU).
Em sua intervenção, Denise Carreira invocou a trajetória da unidade na formação de profissionais, na pesquisa e na extensão para expressar posicionamento “veementemente contrário a programas destinados à militarização de escolas públicas do Estado de São Paulo e em outros Estados e municípios do país”.
“Militares não são profissionais da educação e nem educadores”, afirmou. “São necessárias 3.200 horas para formar um profissional de educação em nosso país. Um país sério, efetivamente comprometido com a educação de qualidade, não pode banalizar o exercício da profissão de educadoras e educadores.”
A professora ressaltou que a existência de policiais militares exercendo a função de profissionais da educação “fere fortemente as exigências da legislação educacional e configura grave desvio das funções militares”.
O modelo de militarização de escolas públicas é questionado em duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs), de números 7.662 e 7.675, propostas respectivamente pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e pelo Partido dos Trabalhadores (PT), que tramitam no STF.
As ações sustentam que o programa é inconstitucional e cria um modelo de ensino sem respaldo da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (lei 9.394/1996), ao prever a presença de policiais militares em atividades escolares.
Ambas são relatadas pelo ministro Gilmar Mendes, que convocou a audiência para colher “subsídios e argumentos especializados” para decidir sobre o tema. Mendes selecionou as organizações que se manifestaram dentre as cerca de 80 que se inscreveram. De acordo com o ministro, a seleção levou em conta a pluralidade de opiniões, com paridade de pontos de vista, a representatividade e a diversidade. Aquelas que não foram selecionadas para participar da audiência poderão enviar suas contribuições por escrito.
“Tenho certeza de que o conhecimento e a experiência daqueles que fizeram uso da palavra sofisticaram o debate proposto, descortinando peculiaridades fáticas e técnicas sobre o assunto que, não fosse a expertise dos envolvidos, dificilmente seriam captadas por esta Casa”, disse o ministro ao final das exposições, que ocorreram em dois turnos: manhã e tarde.
Estados não podem legislar sobre diretrizes da educação, argumentam vozes contrárias à militarização
Em São Paulo, o desembargador Figueiredo Gonçalves, do Órgão Especial do Tribunal de Justiça (TJ-SP), determinou em liminar a suspensão da vigência da Lei Complementar (LC) 1.398/2024, que criou o programa, até que o STF se manifeste.
Na avaliação do magistrado, “ao dispor sobre organização escolar, estabelecendo programa que impõe modelo pedagógico de Escola Cívico-Militar, a Lei Estadual 1.398/2024 parece legislar sobre diretrizes da educação escolar”. “Isso poderia invadir competência da União, a quem compete, privativamente, nos termos do artigo 22, inciso XXIV da Constituição Federal, legislar sobre ‘diretrizes e bases da educação nacional’. Assim, o Supremo Tribunal Federal já decidiu: ‘É inconstitucional ato normativo estadual no qual se disciplinam aspectos pertinentes à legislação sobre diretrizes e bases da educação nacional por usurpação de competência legislativa privativa da União’”, aponta, citando acórdão referente à ADI 5.091, de 2019.
Na audiência desta terça-feira, várias das intervenções de representantes que se manifestaram contra o programa lembraram que, além da falta de respaldo constitucional e da LDB, as escolas públicas militarizadas violam outros aspectos “do direito à educação e demais direitos humanos”, como disse a professora Denise, uma das participantes do turno da manhã.
A pesquisa acadêmica tem amplamente abordado, ressaltou, “a perseguição a profissionais de educação, a estudantes que questionem a ordem militar, entre eles jovens negros, LGBTQIA+ e garotas, até a censura e a inclusão da autocensura no trabalho docente quanto a conteúdos críticos da realidade e da história brasileira, como as profundas desigualdades sociais, a ditadura militar, a igualdade de gênero, a diversidade sexual, o enfrentamento do racismo e até mesmo as mudanças climáticas”.
“Estamos diante de dois caminhos: um ancorado em um discurso falacioso com intenção manipuladora da população, que prega a militarização das escolas e da vida civil como solução e forma de contenção dos conflitos sociais decorrentes das nossas profundas desigualdades e da intensa precarização imposta à rede estadual de ensino de São Paulo, com 62% dos profissionais com contratos precários, fragilização das condições de trabalho e imposição de um processo de vigilância e controle por meio de plataformas digitais”, afirmou.
“Outro caminho é a implementação de políticas educacionais com base no consistente planejamento de médio e longo prazo por meio dos planos de educação com financiamento adequado e gestão democrática que possibilitem, como os países que deram um salto em educação fizeram, valorizando efetivamente as profissionais de educação com melhores salários, condições de trabalho, planos de carreira, dedicação da jornada somente a uma escola, formação adequada e condições de vida para que exerçam da melhor forma a missão de educar crianças, adolescentes, jovens e adultos para o pleno desenvolvimento da pessoa humana e exercício da cidadania”, prosseguiu.
A docente da FE defendeu que o direito humano à segurança pública nas escolas “deve ser abordado numa perspectiva cidadã, baseada no estabelecimento de protocolos, na educação para direitos humanos e convivência democrática, no fortalecimento da rede de prestação dos serviços intersetoriais, na implementação de políticas capilares de assistência social e de saúde mental, no fortalecimento da relação com os territórios, na participação social qualificada, no investimento em políticas de cultura e contando sim com o apoio das forças de segurança pública numa perspectiva preventiva e quando acionadas pelas escolas”.
Denise Carreira lembrou que a Constituição Federal de 1988 “constitui o grande marco de transição da ditadura militar para a reconstrução de uma sociedade democrática ancorada no fortalecimento da vida civil e na promoção da cidadania” e sustentou que “a militarização de escolas públicas representa um grande retrocesso a esses limites expressos pela Constituição Federal”.
“Por mais que a lei de São Paulo cite os direitos humanos e o respeito à diversidade como princípios, a educação para a obediência das escolas públicas militarizadas é intrinsecamente incompatível com a formação de cidadãs e cidadãos autônomos, críticos e criativos que tanto a nossa sociedade e os desafios contemporâneos exigem”, finalizou.
Representando a REPU, Fernando Cássio afirmou que o programa instituído em São Paulo pretende criar uma sub-rede de ensino que exclui os(a) estudantes mais vulneráveis. Na avaliação do professor, não há diferença prática entre a militarização escolar e o processo de privatização que rompe com a universalidade do acesso e com a garantia de condições de permanência na escola pública.
Despesa com pagamento de militares não pode ser computada como gasto em educação
Gabriele Bezerra, do Núcleo Especializado da Infância e Juventude da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, lembrou que o período entre a apresentação e a aprovação do projeto na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) foi extremamente exíguo, o que não permitiu um debate público aprofundado. Além disso, estudantes e professores(as) que estavam na Alesp para se manifestar contra o texto foram agredidos com truculência “justamente pela Polícia Militar”.
“Ou seja, a forma como tramitou este PL reflete a falta de participação popular e gestão democrática, conceitos basilares da ruptura com as diretrizes militares vigentes pré-1988”, afirmou.
De acordo com a defensora pública, o inciso XXIV do artigo 22 da Constituição trata como competência privativa da União legislar sobre diretrizes e bases da educação. “Por si só já haveria um vício de inconstitucionalidade de forma insanável” na lei paulista, considera.
Gabriele Bezerra relatou que crianças e adolescentes que batem à porta da Defensoria Pública para a garantia de seus direitos fundamentais “se apresentam em condição de extrema vulnerabilidade social e econômica”. “É incompatível com a política educacional que vem sendo desenhada no Estado de São Paulo o alocamento de recursos para a contratação de militares da reserva. O Estado sequer consegue permitir o acesso universal à educação e cumprir seu próprio decreto regulamentador sobre esse tema”, afirmou.
A defensora enfatizou ainda que “gerir situações de conflito e indisciplina no ambiente escolar em nada se assemelha à polícia ostensiva ou manutenção da ordem pública, funções típicas da Polícia Militar previstas constitucionalmente”. “A escola é meio de transformação pessoal e social e por isso nunca vai ser espaço militar”, ressaltou.
Élida Graziane Pinto, procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo (MPC-SP), alertou para o risco de cômputo da despesa com os monitores cívico-militares como se fosse despesa com manutenção e desenvolvimento do ensino (MDE).
“Não é possível que aceitemos que uma lei complementar estadual invada competência que é privativa da União de fixar o que é ou não despesa para MDE”, apontou.
A procuradora lembrou ainda que o Estado de São Paulo já invadiu competência privativa da União ao considerar o pagamento de inativos como se fosse gasto educacional. “O STF já tem sólida jurisprudência em torno da impossibilidade de invasão dos recursos vinculados à educação por despesas de outras áreas.”
O Estado não cumpre adequadamente as metas e estratégias do Plano Nacional de Educação e tem várias deficiências em relação à valorização dos(as) profissionais do magistério, enquanto deseja pagar, a pretexto de gratificação honorária aos monitores militares, um valor superior ao piso dos(as) professores”(as), disse.
“É um contrassenso alocar recursos escassos, como são os recursos educacionais, com tantos gargalos no atendimento desses jovens que estão nas séries finais do ensino fundamental e no ensino médio, para supostamente trafegando o dinheiro da educação fazer um gasto em segurança pública”, considera.
A procuradora citou artigo publicado em coautoria com o professor Fabrício Motta, docente da Universidade Federal de Goiás (UFG), no qual detalha esses e outros pontos.
Para Tarcísio, escolas militarizadas devem produzir “novos Bolsonaros”
Carlos Giannazi (PSOL) foi um dos(as) deputados(as) estaduais paulistas que se manifestaram na audiência. O parlamentar relatou que o projeto de lei que deu origem ao programa “não passou pelas comissões permanentes da Alesp, por ter sido enviado em regime de urgência”.
Giannazi também lembrou que no dia da votação, em maio, “houve uma forte repressão, com alunos e professores do ensino médio que foram espancados pela Tropa de Choque da PM” na Alesp.
O deputado afirmou que a rede pública paulista é a maior da América Latina, com 5 mil escolas, 3,5 milhões de alunos matriculados e mais de 250 mil profissionais. “Essa rede está sendo destruída e sucateada, degradada sobretudo pela atual política educacional do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos), que é um governo de extrema-direita”, afirmou.
De acordo com Giannazi, “o projeto de militarização é apresentado dentro de um contexto de privatização, demissão em massa de professores, terrorismo nas perícias médicas para não efetivar professores que forma aprovados no último concurso público, fechamento de salas e de turnos e sobretudo a cereja do bolo, a PEC 9/2023, que vai reduz o orçamento da educação do Estado de São Paulo, retirando aproximadamente R$ 10 bilhões por ano da educação estadual”.
O deputado também mencionou declarações de Tarcísio de Freitas no lançamento da Frente Parlamentar em Defesa da Escolas Cívico-Militares no Congresso Nacional, em dezembro do ano passado. Na ocasião, o governador afirmou: “Vocês vão ter as ferramentas para se tornarem os líderes que nós precisamos. Eu olho aqui para os alunos das escolas cívico-militares e eventualmente a gente está diante de um novo Bolsonaro lá na frente, de um novo Coronel Zucco [deputado federal pelo PL-RS] lá na frente. Apesar da tentativa de desmonte das escolas cívico-militares, elas não sucumbirão, não serão desmontadas”.
De acordo com Giannazi, a escola pública militarizada “é uma escola doutrinadora, ideológica, com partido, que vai formar novos quadros para a extrema-direita, para que talvez muito em breve essas pessoas reproduzam o que aconteceu aqui em Brasília no dia 8 de janeiro [de 2023]”. “Talvez, se essa escola prosperar, vocês podem ter certeza que muito em breve nós teremos uma legião de pessoas formadas por esse modelo de escola entrando aqui neste espaço e quebrando tudo novamente, como aconteceu no 8 de janeiro”, concluiu.
Também contrária à adoção do modelo, a deputada Professora Bebel (PT) afirmou que “no processo de redemocratização deste país as leis foram escritas com o povo na rua” e que “afrontar as leis é afrontar o povo que ajudou a construir essas leis”.
A deputada também reforçou que não há legitimidade para esse modelo de escola tanto na Constituição Federal quanto na LDB, e chamou atenção para o fato de que o decreto original que cria o programa em nível federal foi assinado no governo Bolsonaro (PL).
O deputado Simão Pedro (PT) também se manifestou contra a militarização das escolas públicas. A favor do projeto, falaram os deputados estaduais Tenente Coimbra (PL) e Guto Zacarias (União).
O teor das falas favoráveis ao modelo, incluindo representantes dos governos do Paraná e do Mato Grosso, buscou justificar os supostos bons resultados das escolas que já o adotaram, mas tergiversando sobre temas como a legalidade dos programas, supostamente garantida pelas regulamentações estaduais ou municipais.
A Secretaria de Educação do governo Tarcísio de Freitas foi representada pelo secretário-executivo da pasta, Vinícius Mendonça Neiva. Também se manifestaram parlamentares federais, órgãos como a Advocacia-Geral da União (AGU) – para quem o programa paulista é inconstitucional – e a Procuradoria-Geral da República e entidades como Sindicato dos Professores do Ensino Oficial de São Paulo (Apeoesp) e o Instituto Vladimir Herzog (veja aqui a lista completa).
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