Educação
A cilada das escolas cívico-militares
Nota emitida pelo GT-Educação da Adusp a respeito do programa que o governo Tarcísio-Ramuth tenta implantar na rede paulista de ensino público
As escolas cívico-militares são instituições regulares, mas com um modelo de gestão militar, que pode incluir a participação de ex-policiais e outros profissionais de áreas correlatas, como bombeiras(os) e seguranças. Elas são diferentes dos colégios militares, estes sob o controle direto, inclusive administrativo e pedagógico, de militares.
As escolas cívico-militares não constituem uma modalidade de ensino da Educação Básica, conforme tentam fazer crer os setores sociais que as defendem, buscando passar a ideia de que seriam mais uma opção disponível para escolha das pessoas interessadas, que acreditam em uma escola baseada na coerção e na disciplina rígida próprias dos ambientes castrenses, justamente o avesso do que demonstram as pesquisas sobre o processo educacional, cuja efetividade tem lastro na vivência ou simulação de situações factuais e, sobretudo, na argumentação fundamentada, na persuasão democrática.
Diferentemente do que as pessoas possam pensar, as escolas cívico-militares não são criações recentes. Entretanto, o governo Bolsonaro-Mourão tentou potencializá-las, por meio do Decreto 10.004/2019, sob a alegação de “melhorar a qualidade dos ensinos fundamental e médio no país”. Já no atual governo, houve um movimento para revogar o referido decreto, cuja vigência permitiu implantar o intento do governo anterior em um número relativamente pequeno de escolas.
Prefeitos de diferentes municípios, de vários matizes políticos, e governadores estaduais começaram então a elaborar seus próprios modelos de militarização das escolas, como foi o caso do “Programa Escola Cívico-Militar”, criado no estado de São Paulo pelo governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos) e Felício Ramuth (PSD), por meio da Lei Complementar 1.398/2024. Mas esta lei foi suspensa por decisão liminar do TJ-SP, que foi derrubada em outubro último pelo ministro Gilmar Mendes, por “invadir competência do STF”. Contudo, tendo em vista que a decisão do ministro não julgou o mérito da questão, esta segue em julgamento, para que se averigue a constitucionalidade do modelo de escolas cívico-militares.
Ocorre que, na medida em que o modelo é expandido, são criadas associações e empresas de ex-policiais com o objetivo de gerenciar grupos de escolas, em um claro movimento no sentido de privatização da educação escolar, sendo que parte da gestão de instituições públicas passa a ser terceirizada para entidades privadas que não têm nenhuma experiência educacional e a quem nem cabe tal incumbência. Aliás, é inadequada a separação entre gestão administrativa e gestão pedagógica, pois ambas devem fazer parte de um mesmo projeto educacional.
Assim, há inúmeros relatos de imposição de regras rígidas nas escolas militarizadas, como os regimes de controle de corpos e padrões cis-heteronormativos de gênero, em que se definem, por exemplo, os modelos de cabelos, a proibição de brincos e quais roupas usar. Em verdade, o uniforme obrigatório, a disciplina rígida, as loas diárias ao hino nacional e à bandeira, o manual de conduta são apenas os embustes mais visíveis, mas há inúmeras outras perversidades, inclusive relativas a conteúdos, que se coadunam sobretudo com os ideais dos setores sociais que vociferam o mote de teor fascista “Deus, Pátria e Família”.
Uma alegação constante na tentativa de justificar a militarização tem sido a redução da indisciplina e da violência no interior das escolas, que é de inegável apelo popular, mas ela nunca vem acompanhada de qualquer preocupação com o contexto a que estão submetidas as escolas públicas, ausência de estrutura adequada de pessoal docente e funcional, falta de bibliotecas e laboratórios equipados e mantidos, sem espaços propícios à prática de esportes e para atividades culturais. Tais impropriedades somadas ao modelo pretendido pelos defensores das escolas cívico-militares podem sim criar novos conflitos além de intensificar os já existentes, ao invés de resolvê-los.
Uma consulta sobre quais escolas públicas optaram pelo inadequado modelo mostra que não é verdade que os colégios cívico-militares estejam nas regiões mais vulneráveis. Há sim uma tentativa de selecionar ambientes e pessoas que mais se prestem à submissão aos interesses da elite que domina política e economicamente o país. Ou seja: a militarização das escolas não é sequer uma estratégia política que busque consolidar uma base eleitoral, mas sempre pode servir como propaganda reacionária, no mínimo em prol da manutenção do status quo conservador.
A real pretensão do governo paulista
Um dos objetivos mais importantes da escola pública de qualidade social é prover a construção ininterrupta de cidadania, é viabilizar a formação de pessoas dotadas de pensamento crítico, capazes de se posicionar com base na análise de seus próprios anseios individuais e dos problemas da sociedade – em síntese, o foco dessa escola é a emancipação humana, que potencializa o desenvolvimento individual e coletivo, tanto físico como espiritual, de teor libertário. A escola militarizada efetivamente não contribui para a consecução desse objetivo, pois, ao contrário disso, ela produz o adestramento do qual decorre a alienação e a submissão acrítica às normas vigentes – em resumo, o foco da escola cívico-militar é o avesso da democracia, é a reprodução da hierarquia alienante, da docilidade subserviente.
O texto do Executivo paulista que encaminhou a proposta à Assembleia Legislativa alega que a implantação seria feita “priorizando-se aquelas [escolas] situadas em regiões de maior incidência de criminalidade”. Em explicação oral, o governador disse que “as escolas cívico-militares são uma opção adicional no roteiro do ensino público para criar um ambiente com mais segurança, onde os pais vão ter um conforto e a gente possa desenvolver o civismo, cantar o hino nacional e fazer com que a disciplina ajude a ser um vetor da melhoria da qualidade de ensino”.
Ou seja: a fala de Tarcísio de Freitas revela em detalhes que a intenção do seu governo ao criar as escolas cívico-militares não é a educação, o ensino, a aprendizagem, o desenvolvimento saudável aos quais crianças e jovens têm direito, ao contrário, seu objetivo é ampliar a existência de pessoas dóceis às situações impostas e, ainda, propiciar aumento de ganho para militares em situação de reforma remunerada.
Em vista da compensação financeira oferecida e da escolha de militares para o desenvolvimento da proposta, parece que o que se espera das escolas militarizadas é que cumpram a função de suplementar os ganhos das pessoas envolvidas. Dessa forma, o governador receberia a eterna gratidão dessas pessoas, que além de concordarem com o projeto, teriam seus bolsos reforçados. Mas, seja como for, efetivamente pode-se dizer que não se trata de um projeto educacional.
O “Programa Escola Cívico-Militar” do estado de São Paulo é inadequado, não leva em consideração o saber construído pelos estudos em Educação – não só no Brasil, mas internacionalmente – e tampouco as pesquisas relacionadas ao ambiente escolar do estado e suas necessidades. Por essas razões, não ajudará na superação de nenhum problema do sistema educacional paulista, dentre os quais está o orçamento por estudante, cuja dotação basicamente tem permitido apenas remunerar docentes e demais trabalhadoras(es) em educação, manter escolas e comprar materiais pedagógicos. E ainda assim, em condições muito questionáveis.
Ademais, o “Programa Escola Cívico-Militar” faz parte do projeto do Executivo de diminuir os recursos para a educação previstos na Constituição do Estado de São Paulo, pretensão esta bem-sucedida com a permissão de destinar 5% da receita de impostos (dos 30% originais) a “despesas com educação ou em ações e serviços públicos de saúde ou em ambos” pela Emenda Constitucional 55, de 27/11/2024. O que se constitui em mais uma cilada do governo, pois uma vez flexibilizados os 5% do MDE paulista de sua Constituição, dificilmente serão recompostos posteriormente, correndo ainda o risco de ser submetido pelo governo a outras alegações além da saúde: segurança, trabalho, previdência etc.
Como o Fórum das Seis registrou em seu boletim de 28/11/2024, a medida “busca regulamentar manobras feitas por sucessivos governos nos últimos anos que, para cumprir os 30% constitucionais, incluíam no cômputo da educação o pagamento de pessoas aposentadas e pensionistas. O Tribunal de Contas do Estado vinha aprovando as contas do governo com alertas sobre a ilegalidade desta inclusão.”
Conclusão inescapável: a pretensão do governo Tarcísio-Ramuth com as escolas cívico-militares, até agora em parte atendida, é uma grande cilada oportunista, tal como foi a diminuição dos recursos da educação na Constituição paulista. É preciso transformar a nossa indignação contra a ousadia desse governo em iniciativas no sentido de construir e defender uma educação que garanta efetivas condições de desenvolvimento da singularidade de cada pessoa, e não a criação de uma homogeneidade artificial e opressora para toda a sociedade paulista e brasileira.
Não caiamos mais em ciladas. As escolas cívico-militares não podem ser implantadas!
3 de dezembro de 2024
GT-Educação da Adusp
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