Ensino Público
“Novo Ensino Médio” amplia a desigualdade e precisa ser revogado, defendem participantes de audiência na Alesp
Presidenta da Adusp foi uma das debatedoras da reunião, que também discutiu medidas para combater a violência contra as escolas
A implantação do chamado “Novo Ensino Médio” precisa ser revogada imediatamente, defendeu em audiência pública na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) o professor Daniel Cara, docente da Faculdade de Educação da USP (Feusp) e dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. “É preciso engrenar um processo de revogação no Congresso Nacional, substituir por outro modelo e libertar o Brasil desse terrível legado de Temer e Bolsonaro”, afirmou.
A reforma foi proposta no governo Michel Temer (MDB) e o seu cronograma foi definido no mandato presidencial de Jair Bolsonaro (eleito pelo PSL e atualmente no PL), lembrou o professor. “Ver o governo do presidente Lula (PT) ser pautado pelo Temer e pelo Bolsonaro eu acho inaceitável”, disse, ressaltando ser um eleitor e defensor do governo Lula, além de integrar GTs do Ministério da Educação (MEC).
Cara foi o principal orador da audiência que debateu o projeto, realizada no último dia 19/4 e proposta pela Bancada Feminista do PSOL. Representantes de entidades estudantis, de docentes, de servidore(a)s e de ONGs ligadas à educação também se manifestaram. A presidenta da Adusp, professora Michele Schultz, representou o Fórum das Seis e o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN).
Na avaliação de Daniel Cara, a reforma “é um desastre para a sociedade brasileira e representa concretamente o fim da possibilidade do jovem de escolher o próprio destino”. Citou como exemplo o caso do estado do Piauí, no qual 164 dos 229 municípios possuem apenas uma escola, com oferta de somente um ou dois dos chamados “itinerários formativos” do novo ensino médio.
“Qual o resultado disso? O Piauí não vai ter mais médico vindo de escola pública porque o aluno não vai poder prestar o ENEM [Exame Nacional do Ensino Médio]”, afirmou. “O filho da classe trabalhadora tem que ter acesso a todos os cursos em todos os turnos”, considera, mas o projeto prejudica o(a)s jovens que cursam o ensino médio em escolas públicas – 87% dos 7,8 milhões de estudantes em todo o sistema.
Estudantes têm organizado manifestações contra reforma do ensino médio (Fernando Frazão/Agência Brasil)
Escolas convivem com docentes que têm as mesmas atribuições mas estão vinculado(a)s a diferentes regimes
“Fake news é dizer que essa reforma é inovadora e que garante direito de escolha. Ela vai fazer com que professor concursado para Química tenha que dar aula de como ser um milionário”, afirmou Daniel Cara.
“A reforma do ensino médio já está morta, está comprovado que ela não funciona. Não dá para continuar com essa humilhação para os professores e prejudicar o futuro dos jovens”, disse. A proposta defendida pela Campanha Nacional prevê trabalho por áreas, com acesso de todo(a)s o(a)s estudantes aos conteúdos, e possibilidade de aprofundamento em áreas específicas, à escolha do(a)s aluno(a)s.
“Não tenho dúvida de que a gente vai vencer nessa reforma do ensino médio e também vai vencer a violência contra as escolas porque acredito demais nas professoras e professores brasileiros e acredito ainda mais nas novas gerações, nos estudantes”, ressaltou.
João Zafalão, diretor do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), lembrou que, dos cerca de 2,2 milhões de professore(a)s do ensino fundamental e médio no país, aproximadamente 900 mil têm contratos precários de trabalho. Na mesma escola, relatou, é possível encontrar docentes da rede estadual, tanto efetivo(a)s quanto precarizado(a)s, e outro(a)s ligado(a)s às escolas técnicas estaduais (ETECs), à rede municipal ou a organizações sociais (OS).
“São vários profissionais com a mesma obrigação, mas com contratos e condições de trabalho diferenciadas na mesma escola. Esse processo brutal de precarização fez com que a escola pública sofresse uma avalanche com a reforma do ensino médio”, relatou.
A codeputada Sirlene Maciel, da Bancada Feminista, que é professora no Centro Paula Souza, perguntou: “Por que a comunidade escolar não discutiu a reforma do ensino médio? Por que não fomos consultados? Nós, professores e professoras, queremos ser ouvidos”.
O deputado estadual Guilherme Cortez (PSOL) registrou que a educação vem sofrendo ataques continuados “desde o golpe de 2016”, e que “a pandemia aumentou ainda mais a precariedade do ensino público contra o particular”.
“A única coisa que o Novo Ensino Médio faz é aprofundar a desigualdade histórica entre o estudante que tem o privilégio de estudar numa escola particular e o estudante da escola pública, que vai se sentir ainda mais defasado e perder matérias essenciais para a sua formação”, afirmou. “Vamos revogar essa reforma e sobre a reforma revogada vamos discutir como tornar nossa escola um ambiente ainda mais seguro, mais acessível e democrático.”
Lucas Gidra, diretor da União Municipal dos Estudantes Secundaristas de São Paulo (UMES), salientou que o Novo Ensino Médio “é um complemento ideológico do projeto ultraneoliberal que avançou no país, com as reformas trabalhista e da previdência e o teto de gastos”.
Além disso, a proposta não combate os principais problemas da educação, como a falta de professore(a)s e a falta de infraestrutura e de instalações como laboratórios e bibliotecas nas escolas.
“A reforma quer manter desigualdade educacional para manter a desigualdade social”, afirmou. “Não vamos parar a luta até revogar o ensino médio.”
“O ódio vende mais do que a solidariedade”, aponta a presidenta da Adusp
A audiência na Alesp debateu também os recentes casos de ataques contra escolas em várias regiões do país. A presidenta da Adusp, professora Michele Schultz, apontou que é importante não reduzir esses fatos “a uma questão de segurança pública, muito menos privada”.
“Temos que contextualizar o momento histórico em que estamos e a realidade que esses jovens vivem, principalmente na periferia. As escolas da periferia estão absolutamente desassistidas. Os banheiros não funcionam, as cozinhas não funcionam, as merendeiras, muitas vezes terceirizadas, são absolutamente precarizadas em seu trabalho”, descreveu.
Os espaços físicos das escolas são murados, cercados e gradeados, como se fossem verdadeiras prisões. “As escolas têm que estar integradas à comunidade e à cidade, num espaço de fato público, em que as crianças e jovens possam jogar bola no final de semana. Um espaço que possa ser cuidado pela sua comunidade”, destacou.
No entanto, há uma grande desvalorização material e imaterial das escolas: material no que diz respeito a financiamento e orçamento, e imaterial em relação aos aspectos subjetivos. “Temos que parar de dizer que as escolas são ruins. As escolas são formadas por pessoas, e as pessoas são muito boas, especialmente os trabalhadores e trabalhadoras da educação, que acabam executando o seu trabalho, com muita vontade de ver a coisa acontecer, tendo que lidar com recursos absolutamente insuficientes”, enfatizou.
Michele Schultz lembrou que a incitação à violência passa por vários lugares, inclusive pelos meios tecnológicos, nos quais cinco grandes empresas, as chamadas big techs, exercem a hegemonia e transformam o mundo digital em mais um espaço de dominação pelo capital.
“O ódio vende mais do que a solidariedade, e é por isso que a gente vê tanta dificuldade para regular esses meios. O que eles querem é de fato o lucro, não a solidariedade”, afirmou.
A professora reiterou que o Andes-SN defende a destinação anual de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) para a educação, assim como a revogação do Novo Ensino Médio.
Cooptação de jovens para atos violentos se dá em plataformas comerciais e de amplo acesso
Vário(a)s debatedore(a)s citaram a reiterada perseguição de movimentos de direita e extrema-direita a docentes e às escolas, incentivada inclusive por autoridades e por iniciativas como o chamado “Escola sem Partido”.
“Nos últimos anos tivemos até ministro da Educação pregando todo santo dia uma política de ódio, de desvalorização da educação pública, que professor da escola pública faz doutrinação, que o grêmio é uma invasão indevida dentro da escola”, lembrou o deputado Guilherme Cortez. “Agora estamos vendo a que ponto chega o estímulo ao ódio contra os nossos professores e as nossas escolas. Não podemos deixar de responsabilizar essas pessoas que ao longo dos últimos anos incitaram e estimularam esse discurso de violência contra a educação. São elas em primeira medida as mentoras intelectuais desses atentados.”
A jornalista Luka Franca, integrante da coordenação estadual do Movimento Negro Unificado (MNU), apontou que a violência contra as escolas expressa o ódio da extrema-direita aos espaços de formulação do pensamento crítico e ao mesmo tempo a um dos locais em que o trabalho da educação é majoritariamente realizado por mulheres.
Luka, que participou da elaboração do relatório O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às escolas e alternativas para a ação governamental, produzido no âmbito do Grupo Temático de Educação na transição de governo, chamou a atenção para o fato de que a cooptação de jovens para a prática dos ataques não é mais feita na chamada Deep Web, mas se utiliza de plataformas comerciais e de amplo acesso como Discord, Twitter, Tik Tok ou Telegram.
“Para um problema complexo como a violência contra as escolas, precisamos entender também a complexidade em que essas ameaças se transformaram neste último período. De um lado, há pessoas que estão querendo gerar pânico na comunidade escolar, e precisamos de trabalho de inteligência não apenas da Polícia Federal, mas também dos Estados para localizar essas pessoas, e ao mesmo tempo essas ameaças também servem como chamado para a ação para os jovens cooptados” afirmou.
Na sua avaliação, “um problema complexo não vai se resolver com segurança, seja pública ou privada, nas imediações ou dentro das escolas”. “Esses adolescentes querem justamente obter número de mortes, querem se confrontar com a segurança pública e virar mártires como em Realengo, Suzano ou Columbine. Precisamos debater nesses termos”, afirmou.
“As escolas ainda são um dos poucos locais em que os estudantes periféricos sentem acolhimento e, mesmo com todas as dificuldades, podem se manifestar e podem opinar”, enfatizou João Zafalão, da Apeoesp.
Violência contra as escolas tem componentes misóginos, racistas e lgbtfóbicos
O professor Daniel Cara, da Feusp, que também participou da elaboração do relatório e integrou a coordenação do Grupo Temático de Educação na transição, considera que esses movimentos são a expressão brasileira do extremismo de direita no mundo e que devem ser qualificados de fascistas e neonazistas.
Na sua avaliação, o fenômeno da violência contra as escolas é “uma tentativa de vingança contra o ambiente escolar” e possui características fortemente misóginas, além de racista e lgbtfóbico. “Por isso temos que ficar muito atentos às comunidades redpill, incel, aos chans e às comunidades masculinistas”, advertiu.
Cara considera também que, neste momento, a ação desses grupos é caracterizada por uma mobilização cultural. “Eles idolatram símbolos, histórias, personagens, mas ainda não chegam a se mobilizar politicamente em torno do neonazismo e do fascismo quando atacam as escolas. Não são militantes políticos, e se fossem a situação seria muito mais perigosa”, disse. O professor também entende que as plataformas digitais devem ser responsabilizadas pelos conteúdos que circulam nelas.
De acordo com o docente, a instalação de equipamentos como catracas, detectores de metal e câmeras não leva à redução da violência. “Os Estados Unidos quase nacionalizaram essas medidas e lá aumentou o número de ataques”, apontou. Da mesma forma, ampliar muros e instalar lanças ou grades tornam ainda mais difíceis as ações de socorro e intervenção nas emergências.
Daniel Cara integra o Grupo de Trabalho Executivo do MEC para o Enfrentamento e Prevenção às Violências nas Escolas e Universidades, que produziu um conjunto de recomendações para que as escolas lidem com o tema e desenvolvam os seus próprios protocolos. “A ação mais aprofundada deve ser feita no território”, disse.
O MEC também vai oferecer cursos, por meio da plataforma de seu Ambiente Virtual de Aprendizagem (Avamec), para formação com base nas recomendações.
A Campanha Nacional pelo Direito à Educação, por sua vez, publicou um Guia sobre Prevenção e Resposta à Violência às Escolas.
Cara defendeu que as campanhas de conscientização contra o ódio precisam ser antimisóginas, antimachistas, antirracistas e antilgbtfóbicas. As campanhas não podem ser focadas num discurso de paz nas escolas, porque esse discurso é tachado de hipócrita pelas comunidades de ódio e acaba mobilizando-as. “Elas ficam mais excitadas porque consideram que nunca viram a paz e sempre foram vítimas de bullying”, ponderou.
A Bancada Feminista do PSOL propôs, entre outros encaminhamentos, a formação de um Grupo de Trabalho para debater a segurança nas escolas e a criação de um observatório sobre segurança e proteção ao ambiente escolar na Alesp.
De acordo com números divulgados pelo governo federal em 1/5, a Operação Escola Segura, coordenada pelo Ministério da Justiça, já havia realizado 356 prisões de adultos e apreensões de adolescentes; 1.574 conduções de suspeitos; 358 buscas e apreensões; e lavrado 3.342 boletins de ocorrência.
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