Ensino superior
Deputado com carreira no mercado financeiro apresenta projeto de cobrança de mensalidades nas universidades públicas; “não deixaremos entrar na pauta”, diz parlamentar da oposição
Não é a primeira vez e provavelmente não será a última: novamente um projeto apresentado à Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) pretende instituir a cobrança de mensalidade nas universidades públicas estaduais. A iniciativa mais recente partiu do deputado Leonardo Siqueira, do Novo, partido cada vez mais alinhado ao bolsonarismo.
O Projeto de Lei (PL) 672/2024, apresentado por Siqueira e publicado nesta terça-feira (17/9) no caderno legislativo do Diário Oficial do Estado, estabelece que os(as) estudantes das universidades estaduais paulistas passariam a pagar mensalidades e cria o Programa SIGA, acrônimo de “Sistema de Investimento Gradual Acadêmico”.
Por meio do SIGA, aqueles(as) que precisassem de auxílio financeiro poderiam contratar um financiamento para arcar com as mensalidades. Depois de formados(as) e empregados(as), tais egressos(as) começariam a pagar as parcelas do empréstimo — um valor ao qual seria acrescida “uma sobretaxa de 25% ao montante inicial”, determina o artigo 3o do projeto. Durante o curso, o empréstimo seria corrigido pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) e, após a formatura, a correção seria pela Taxa de Longo Prazo (TLP) acumulada no período.
Siqueira argumenta que o o modelo de “Empréstimos com Amortizações Contingentes à Renda (ECR)” defendido em seu projeto “já foi implementado em países como Austrália, Inglaterra, Chile, Coreia do Sul, Estados Unidos, Holanda, Japão e Nova Zelândia”.
O projeto não menciona que todos esses países fazem investimentos públicos em educação muito superiores aos do Brasil, que é o terceiro que menos investe, numa lista de 42 países avaliados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Todos os países citados têm renda per capita bastante superior à brasileira, inclusive o Chile: US$ 15,3 mil contra US$ 8,9 mil.
Programa é análogo ao Fies, que tem mais de 1,243 milhão de contratos inadimplentes
O programa proposto pelo deputado é semelhante ao Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) do governo federal, voltado ao pagamento das mensalidades em instituições de ensino superior privadas.
Alvo de muitas críticas por favorecer o setor privado da educação, cada vez mais dominado por grandes grupos empresariais que têm se consolidado por meio de fusões, da precarização do trabalho docente e da ampliação das atividades a distância em detrimento do ensino presencial, o programa do governo federal enfrenta sérios problemas com inadimplência.
A situação é tão complexa que o governo criou o “Desenrola Fies” para a renegociação das dívidas contraídas por estudantes no programa. De acordo com o Ministério da Educação (MEC), há mais de 1,243 milhão de contratos inadimplentes no país, com saldo devedor superior a R$ 50 bilhões. São Paulo é, de longe, o Estado com mais casos: 294 mil, mais do que o triplo do segundo colocado, o Rio de Janeiro.
Siqueira integra “Conselho Consultivo” da USP e defende venda de “naming rights” nos espaços da universidade
O deputado Leonardo Siqueira, 38 anos, dança conforme os compassos ultraliberais: é formado em Economia pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), faz doutorado no Insper e tem experiência profissional em empresas do mercado financeiro, como BTG Pactual, Itaú e Suno Research. Em sua página oficial no site da Alesp, anuncia “corte de privilégios” como uma de suas áreas de atuação.
Mesmo na na USP Siqueira tem tido a oportunidade de ventilar suas “ideias”. Desde 2023 o deputado integra o “Conselho Consultivo” da universidade, “cujas atribuições incluem as de apresentar subsídios para a fixação das diretrizes e da política geral da Universidade, opinar sobre assuntos que lhe forem submetidos pelo reitor e pelo Conselho Universitário e sobre o desempenho da Instituição”, de acordo com texto publicado em julho do ano passado pelo Jornal da USP.
Entre essas “ideias” está a de vender os chamados “naming rigths” para espaços da universidade, associando o nome de patrocinadores privados a prédios ou unidades, a exemplo do que já ocorre em estações do Metrô ou estádios de futebol.
Vale lembrar que em 2022, ainda candidato, o atual governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) declarou ser contrário à cobrança de mensalidades nas instituições públicas, embora tenha defendido um modelo de privatização nem tão velada cada vez mais presente na USP: “É possível aumentar a oferta de vagas gerando recursos dentro da própria universidade a partir das parcerias”, disse. Tarcísio tem graduação e mestrado em Engenharia pelo Instituto Militar de Engenharia (IME), instituição pública ligada ao Exército Brasileiro.
Adusp já apontou inconstitucionalidade de cobrança, ao analisar PL 1.202/2023
A publicação do PL 672/2024 já suscitou muitas reações contrárias. O professor Daniel Cara, docente da Faculdade de Educação (FE) da USP, disse nas mídias sociais que o projeto de Siqueira “é uma cópia malfeita do ‘Future-se’ de Jair Messias Bolsonaro e Abraham Weintraub”. “Vamos trabalhar e esse PL terá o mesmo fim do Future-se: a derrota. Não vamos permitir a cobrança de mensalidades nas universidades públicas. Nem em SP nem no Brasil”, defendeu.
Em seu instagram, a União Nacional dos Estudantes (UNE) afirmou que “educação não é mercadoria”. “Não podemos permitir que tamanho ataque à educação pública se concretize!”
Na avaliação do deputado Carlos Giannazi (PSOL), o PL de Siqueira não tem chance de prosperar na Casa. “Projeto de deputado só entra na pauta se houver acordo de todos os partidos. Esse não deixaremos entrar jamais”, disse o parlamentar ao Informativo Adusp Online.
Projeto semelhante que estabelece cobrança de mensalidades nas universidades públicas foi apresentado no ano passado pelo deputado bolsonarista Lucas Bove (PL). Tão logo tomou conhecimento do teor do PL 1.202/2023, a Diretoria da Adusp se manifestou sobre a sua inconstitucionalidade.
“De pronto reiteramos que as universidades são dotadas de autonomia conforme definido na Constituição Federal (CF) no seu artigo 207: ‘As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão’. E também no artigo 254 da Constituição do Estado de São Paulo: ‘A autonomia da universidade será exercida, respeitando, nos termos do seu estatuto, a necessária democratização do ensino e a responsabilidade pública da instituição…’. A gratuidade é definida no inciso IV do artigo 206 da CF: ‘… gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais’”, apontou a Diretoria da Adusp na ocasião.
O projeto de Bove está parado desde março deste ano na Comissão de Constituição, Justiça e Redação (CCJR) da Alesp. O relator na comissão, deputado Carlos Cezar (PL), emitiu parecer favorável ao PL 1.202/2023.
Cezar, pastor da Igreja do Evangelho Quadrangular em quarto mandato como deputado estadual, foi também relator na CCJR da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 9/2023, à qual deu também parecer favorável.
O texto autoriza o governo a reduzir a destinação mínima de recursos para a educação no Estado de 30% para 25% da receita de impostos, derrubando o percentual que vigora desde a promulgação da Constituição Estadual de 1989. A medida pode retirar cerca de R$ 10 bilhões anuais do orçamento da educação pública. A PEC 9 foi aprovada na CCJR no final de agosto e já pode ser votada em plenário, o que deve acontecer depois das eleições municipais de outubro.
A presidenta da Adusp, professora Michele Schultz, considera que a redução do investimento público em educação é um problema bastante sério e ressalta a importância de eleger mandatos parlamentares comprometidos com a defesa da educação e dos serviços públicos.
CADE-Unesp manifesta repúdio ao PL 672/2024 e pede sua imediata rejeição
O Conselho de Administração e Desenvolvimento (CADE) da Unesp, em sessão realizada nesta quarta-feira (18/9), manifestou repúdio ao projeto de autoria de Siqueira. “No entender deste colegiado, o PL 672 é inconstitucional, assim como os anteriores, de semelhante teor, por ferir dois princípios fundamentais: o da autonomia universitária e o da gratuidade, presentes na Carta Magna do país.
Este Conselho considera que propostas desta natureza são contrárias ao papel social das universidades públicas, incluindo as Estaduais Paulistas, que nos últimos anos têm aprimorado suas formas de ingresso para aperfeiçoar suas políticas de inclusão social”, diz o texto aprovado.
Após conclamar os parlamentares a “rejeitarem prontamente o PL 672”, o CADE destacou que o direito à educação precisa ser reafirmado, “em detrimento de quaisquer propostas que ataquem a democratização da educação pública no Brasil”. O CADE é presidido pelo pró-reitor de Planejamento Estratégico e de Gestão da Unesp e conta com representantes docentes, do corpo técnico e administrativo e discentes, num total de 27 integrantes.
Fortaleça o seu sindicato. Preencha uma ficha de filiação, aqui!
Mais Lidas
- Após decisão judicial, Esalq recua e contrata professor negro que havia sido preterido em concurso em favor do segundo colocado, “indicado” pela Comissão Julgadora
- Sem receber da empresa Higienix o 13º salário, trabalhadoras terceirizadas do HU e da Veterinária entram em greve
- A pedido de entidades, Núcleo de Gênero do Ministério Público cria canal para centralizar denúncias de casos de violência sexual e de gênero na USP
- Debate sobre “trabalho e diversidade na USP” revela permanência de desigualdades e fortes obstáculos à inclusão
- A cilada das escolas cívico-militares