Governo do Estado
Militarização do ensino não tem motivações pedagógicas e tende a agravar problemas da rede pública, advertem educadores
Aprovação do PLC 9/2024 pela Alesp, no último dia 21 de maio, decorre de motivações ideológicas da extrema-direita e interesses eleitorais, uma vez que não há qualquer evidência científica de que militarizar a disciplina estudantil nas escolas possa melhorar a qualidade do ensino. Fernando Cássio (FE) e Otaviano Helene (IF) comentam a nova lei a pedido do Informativo Adusp Online
Aprovado pela Assembleia Legislativa (Alesp) na última terça-feira (21 de maio), após tramitar na casa em regime de urgência, o Projeto de Lei Complementar (PLC) 9/2024, que cria “escolas cívico-militares” nas redes públicas (Estado e municípios), não enfrenta os verdadeiros problemas do ensino público e tende, ao contrário, a agravá-los. Esta é, em síntese, a avaliação de educadores consultados pelo Informativo Adusp Online.
“Esse é o tipo de projeto que não interessa a ninguém do campo educacional. Nesse caso em particular, nem as fundações e os institutos empresariais concordam com qualquer tipo de argumentação que o governo de São Paulo faça de que colocar polícia dentro de escola, militarizar gestão de escola, aplicar práticas marciais dentro de escola tenha qualquer benefício pedagógico, de aprendizagem, ou do ponto de vista de avaliação. Ninguém concorda com isso”, afirma o professor Fernando Cássio, da Faculdade de Educação (FE-USP).
“É um projeto que não tem motivação educacional. Tem motivações ideológicas, motivações de deputados estaduais e federais, querendo fazer proselitismo eleitoral com seus acólitos em determinadas regiões do Estado, em determinados bairros”, pontua Cássio, que faz parte da Rede Escola Pública e Universidade (REPU), grupo que participou de uma audiência pública na Alesp sobre o PLC 9/2024. “Fomos representados pelo professor Salomão Ximenes, da UFABC [Universidade Federal do ABC], e nosso parecer é que não faz sentido você ter polícia em escola. Polícia não substitui professor, não substitui diretor de escola”.
O docente da FE chama atenção para a total inconsistência do projeto aprovado. “Não tem nenhuma evidência científica de que disciplina militarizada melhore a qualidade do ensino, melhore o ambiente da escola. Aliás, pelo contrário, as experiências de militarização escolar feitas no Brasil nos últimos anos, em vários estados, mostram uma piora no clima escolar, naturalização de situações de racismo, situações de transfobia, de LGBTQIAfobia, prática de controle dos corpos”, observa. “Isso sim a gente poderia chamar de ‘ideologia de gênero’: o diretor militar decidir o comprimento do cabelo do menino ou da menina, quem usa brinco, quem usa saia”.
Trata-se portanto, no seu entender, de “um tipo de escola que na verdade é antieducativa, serve para desvirtuar aquele papel da escola pública, que é o espaço de aprender a ter uma vida pública, conviver com as diferenças, com as outras pessoas”. A escola militarizada, adverte Cássio, “visa fazer o caminho inverso: diminuir a amplitude de diferenças, normatizar comportamentos, normatizar padrões estéticos, normatizar a forma como as pessoas se vestem, agem etc”. Tudo em nome de uma pretensa melhoria da disciplina.
O que a rede estadual de São Paulo precisa, prossegue o docente da FE, é de professores concursados, com salários dignos, carreira e condições de trabalho adequadas. Os prédios escolares devem ser dotados de infraestrutura adequada, “não podem estar caindo aos pedaços”, nem ser inteiramente gradeados. Políticas de permanência estudantil para que alunas e alunos permaneçam nas escolas. Ele também questiona as plataformas (aplicativos) impostas pela Secretaria da Educação, “que impedem a discussão e o debate pedagógico nas escolas”.
Ou seja, destaca, “existe um mundo de possibilidades de políticas públicas que esse governo poderia adotar para melhorar a rede de ensino, para mudar as escolas, tornar as escolas ambientes mais agradáveis, dispensando por exemplo esse tipo de disciplina tacanha, de disciplinamento corporal pela via de admissão de militares substituindo educadores”.
O secretário estadual da Educação, Renato Feder, declarou à imprensa no dia 22 de maio que a militarização só vai acontecer nas escolas que manifestarem interesse, e mediante uma discussão com a comunidade. “A expectativa portanto é que seja possível impedir que esse processo aconteça a partir de debates nas comunidades. Quer dizer: as comunidades escolares têm que saber que essa promessa de que os jovens e as crianças vão ser disciplinados e que isso vai resolver questões de aprendizagem é uma ilusão”, aponta Cássio. “Esse é o debate que tem que ser feito com as comunidades escolares, uma vez que esse projeto foi aprovado e será sancionado”.
Nova lei é “agressão às escolas públicas e seus trabalhadores e estudantes”
“A educação paulista tem muitos problemas, nenhum deles solucionável ou amenizado pela militarização das escolas públicas. Ao contrário, militarização é mais um problema que precisaremos enfrentar”, adverte o professor sênior Otaviano Helene, do Instituto de Física (IF-USP).
“Se militarização tivesse alguma coisa interessante, as escolas nos países ricos, da elite, das classes dominantes, seriam militarizadas. Mas isso, evidentemente, não ocorre; militarizar é uma proposta dirigida apenas às escolas dos pobres!”, avalia Otaviano, que integra o Grupo de Trabalho Políticas de Educação (GTPE) da Adusp e foi presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais “Anísio Teixeira” (INEP-MEC).
“Seria a militarização um instrumento para preparar essas crianças e jovens para um futuro no qual serão, como trabalhadores subalternos, controlados por forças policiais? Vale observar que, durante o processo de votação na Alesp, o ocupante do governo estadual já deu uma amostra de como a polícia entende que estudantes devam ser tratados: com pancadas dadas por cassetetes educativos”, ironiza.
“Evidentemente, militarizar não é algo que possa ter alguma coisa de positivo. As elites, as classes dominantes, sabem disso: suas escolas continuarão cuidando das coisas que contribuem para o desenvolvimento das crianças e adolescentes, para a formação profissional, para a cultura, para as artes, para as ciências”, considera o docente do IF.
A seu ver, a nova lei estadual representa uma “agressão às escolas públicas e a seus trabalhadores e estudantes”, e mostra como a direita extremada entende a sociedade, ao retomar o fio de iniciativas adotadas no governo de Jair Bolsonaro (2019-2022).
“Tentaram impor orações e a recitação de slogan da extrema-direita antes das aulas, pediram que as atividades escolares fossem filmadas, baniram dirigentes educacionais por serem ‘esquerdistas’, usaram a estrutura educacional como balcão de negócios administrados por pessoas que se dizem líderes religiosos, apresentaram projetos para que o sistema educacional se transformasse em um instrumento a serviço dos negócios. E tudo isso fazendo parte de um projeto que se dizia pretender criar ‘escolas sem partido’. A direita incivilizada não tem limites”.
Otaviano acredita, porém, que a mobilização social pode derrotar a proposta de “escolas cívico-militares” imposta pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) com a cumplicidade da maioria governista na Alesp. “Estudantes e docentes de todos os níveis educacionais mostraram, diversas vezes, que quando lutam de forma organizada conseguem reverter situações muito difíceis. Precisamos, neste momento, repetir isso”, propõe.
Nesta quinta-feira, 23 de maio, a Diretoria da Adusp manifestou-se sobre a aprovação do PLC 9/2024, em nota intitulada “Repúdio à ação covarde da Polícia Militar contra estudantes e parlamentares na Alesp e à aprovação do projeto de ‘escolas cívico-militares’”. Também emitiram notas sobre esse episódio de violência o Fórum das Seis (confira aqui), o Andes-Sindicato Nacional (aqui) e as bancadas da Federação PT-PCdoB-PV e do PSOL na Alesp.
Além disso, um grupo de vinte e três entidades ligadas à educação, tendo à frente a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), divulgou nota fortemente crítica ao teor do projeto aprovado pelo governo estadual. Entre os signatários estão o Andes-SN, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e a REPU. Leia aqui a “Nota das Entidades contra o programa das escolas cívico-militares de São Paulo”.
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