No dia 25 de outubro de 1975, o chocante assassinato do jornalista Vladimir Herzog nas dependências do principal centro de torturas da Ditadura Militar (1964-1985), o famigerado “DOI-CODI” do então II Exército (hoje Comando Militar Sudeste), gerou comoção pública e enorme desgaste para o governo do ditador da vez, general Ernesto Geisel. Herzog era diretor de jornalismo da TV Cultura e professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP) e havia trabalhado nos estúdios de Londres de uma das principais emissoras do mundo, a British Broadcasting Corporation (BBC).

Como agravante, o Exército divulgou a absurda versão de que Herzog cometera “suicídio” no DOI-CODI, divulgando uma fotografia em que o corpo do jornalista foi retratado numa cela, em pé, com um cinto amarrado no pescoço e numa grade, em cena acintosamente forjada.

As repercussões do episódio foram marcantes. No dia 31 de outubro de 1975, realizou-se um ato ecumênico na Catedral da Sé em memória de Herzog, celebrado por dom Paulo Evaristo Arns, pelo pastor presbiteriano James Wright e pelo rabino Henry Sobel. Apesar da repressão policial, que tentou bloquear o acesso à Catedral, milhares de pessoas participaram da cerimônia, que se tornou assim um protesto massivo contra a Ditadura Militar.

Além disso, em 3 de fevereiro de 1976, por iniciativa do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP), um grupo de 1.004 jornalistas de seis estados diferentes publicou no jornal O Estado de S. Paulo documento endereçado à Auditoria Militar de São Paulo, intitulado “Em nome da verdade”, no qual se questionava a versão de “suicídio”.

Agora, por ocasião da passagem do quinquagésimo aniversário do assassinato de Herzog, duas importantes entidades dedicadas à defesa dos direitos humanos e à luta por memória, verdade e justiça, a Comissão Arns e o Instituto Vladimir Herzog (IVH), com apoio do Ministério da Cultura, promovem um ato inter-religioso na Catedral da Sé, nos moldes do ato ecumênico celebrado à época. “Cinco décadas depois, o novo ato inter-religioso será dedicado não apenas à memória de Herzog, mas também a todas as famílias que perderam entes queridos durante a ditadura”, explica o site do IVH.

Ainda segundo o IVH, a programação terá início às 19h de sábado e contará com participação do Coro Luther King e com manifestações do cardeal dom Odilo Pedro Scherer, da reverenda Anita Wright, filha de Jaime Wright, e do rabino Ruben Sternschein. Estão previstas apresentações de “grandes nomes da música brasileira” no interior da catedral, além da exibição de vídeos especialmente produzidos para a ocasião, entre os quais a leitura de uma carta de Zora Herzog, mãe de Vladimir, feita pela atriz Fernanda Montenegro.

O SJSP, por sua vez, está convocando os jornalistas a apoiarem e participarem do ato na Catedral da Sé, e a se juntarem a uma caminhada que partirá da sede da entidade, na Rua Rêgo Freitas 530 (sobreloja). A concentração dos jornalistas terá início às 17h, no histórico auditório hoje denominado “Vladimir Herzog”, onde em 1975, após sua morte, os jornalistas realizaram diversas assembleias para organizar uma resposta ao assassinato do colega e aprovaram, entre outras medidas, a publicação do manifesto “Em nome da Verdade”.

Vale lembrar que os responsáveis diretos pela morte de Herzog não foram punidos. O comandante do II Exército à época, general Ednardo D’Ávila, foi exonerado por Geisel após um novo “suicídio” no DOI-CODI, que vitimou o metalúrgico Manoel Fiel Filho, em janeiro de 1976. Supõe-se que ambos os casos tenham sido “acidentes de trabalho”, mortes não autorizadas pelo alto escalão da Ditadura Militar.

Em 2018, o pesquisador Matias Spektor, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), revelou a existência de um memorando da Agência Central de Inteligência dos EUA (CIA) que apontou a participação de Geisel em reuniões com os generais chefes do Serviço Nacional de Informações (SNI) e do Centro de Informações do Exército (CIE) nas quais se autorizava execuções de oponentes do regime. O então chefe do SNI era o general João Baptista Figueiredo, que seria o último “presidente” do ciclo ditatorial.

Quando das primeiras investigações do caso Herzog, o sucessor de Ednardo no comando do II Exército, general Dilermando Gomes Monteiro, protegeu o torturador de Herzog e agente do DOI-CODI, o investigador de Polícia Civil Pedro Antônio Mira Grancieri, apelidado “Tenente Ramiro”, de modo a evitar que ele depusesse. Esse torturador, sabe-se hoje, aplicou choques elétricos em Herzog que, supõe-se, provocaram sua morte. Mira Grancieri também está envolvido no assassinato de Joaquim Alencar Seixas, histórico militante comunista, conforme denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal em 2015.

No último dia 25 de junho, a Congregação da ECA acatou proposta do Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE) e aprovou, por unanimidade e aclamação, a indicação para que Herzog receba, in memoriam, o título de Doutor Honoris Causa da USP. A indicação ainda será submetida ao Conselho Universitário, para apreciação. No CJE, Herzog lecionou a disciplina Jornalismo Televisivo.

A passagem dos 50 anos do assassinato do jornalista tem suscitado a publicação de amplas reportagens, inclusive no Jornal da USP, veículo oficial da Reitoria, que raramente abordou o assunto. (Em 2012, a Revista Adusp publicou uma reportagem de Beatriz Vicentini que documentou tentativas institucionais de “apagamento” da atuação de Herzog na ECA.) Também trataram do caso a BBC News Brasil e a Deutsche Welle, emissora pública alemã, ambas trazendo novas informações.

Ainda a propósito de Herzog, vale lembrar que o surgimento da Associação de Docentes da USP, a Adusp, em substituição à anterior Associação de Auxiliares de Ensino, ocorreu em meio à indignação provocada pelo assassinato do jornalista. “Em 1975 houve um fato novo que causou um impacto entre os professores universitários, particularmente entre os professores da Universidade de São Paulo. Foi a morte do Vladimir Herzog, vocês estão lembrados. Naquela ocasião, vários professores tentaram tomar uma posição dentro daquele absurdo, porque afinal de contas o próprio Vladimir era professor da USP. E se sentiram atingidos no que ocorreu a ele”, relatou o professor Alberto da Rocha Barros em depoimento a Shozo Motoyama.

“Então, houve movimento de solidariedade, de protestos pela morte dele, de toda aquela situação política. Alguns professores da Física e de outras áreas entregaram inclusive [sic] uma nota de protesto à Reitoria da USP”. A nota foi entregue por uma comissão de professores da qual faziam parte Antonio Candido, Dalmo de Abreu Dallari e Juarez Rubens Brandão Lopes. Assim, em decorrência dessa mobilização, que reforçou iniciativas anteriores, a ideia de criação da associação se materializou em 19 de outubro de 1976, quando a Adusp realizou sua primeira assembleia.

EXPRESSO ADUSP


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