Memória
Familiares e ativistas comemoram recriação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, mas consideram a demora injustificável
Nesta quinta-feira, 4 de julho, o Diário Oficial da União (D.O.U.) publicou despacho do presidente Lula no qual ele anula um despacho presidencial de Jair Bolsonaro de 30 de dezembro de 2022 que endossava o encerramento das atividades da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP). Nesse mesmo despacho, Lula declara “a continuidade das atividades da Comissão Especial, na forma prevista no art. 4º da Lei 9.140, de 4 de dezembro de 1995”.
Nessa edição do D.O.U. foram publicados, ainda, dois decretos de Lula referentes à CEMDP, datados de 3 de julho. No primeiro deles, o presidente da República dispensa os quatro membros da Comissão que haviam sido nomeados por Bolsonaro: Marco Vinicius Pereira de Carvalho (presidente), Paulo Fernando Melo da Costa, Jorge Luiz Mendes de Assis e Filipe Barros Baptista de Toledo Ribeiro.
No segundo decreto, Lula nomeia quatro novos membros: Eugênia Augusta Gonzaga (presidente), Maria Cecília de Oliveira Adão, Rafaelo Abritta e Natália Bastos Bonavides. Integrante do Ministério Público Federal (MPF), a procuradora Eugênia Gonzaga presidia a CEMDP quando foi destituída por Bolsonaro. Abritta representará o Ministério da Defesa (substituindo Jorge Assis). Natália Bonavides, que é deputada federal (PT-RN), representa a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Maria Cecília, professora universitária, é representante da sociedade civil.
As medidas de recomposição da CEMDP eram aguardadas desde março de 2023, quando mais de uma centena de familiares de mortos e desaparecidos políticos reuniram-se, em Brasília, com o ministro Sílvio Almeida, na sede do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, e apresentaram uma série de reivindicações e propostas. Na ocasião, o ex-deputado federal e ex-ministro Nilmário Miranda, assessor especial de Almeida, informou às famílias que os papeis de recriação da CEMDP estavam prontos e aguardavam apenas a assinatura de Lula.
“Após um longo e injustificável atraso, o presidente Lula resolveu restabelecer a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. A apuração das circunstâncias em que os opositores da Ditadura Militar foram assassinados e se encontram desaparecidos é uma dívida do estado brasileiro perante a história”, comenta o advogado Cesar Cordaro, que integrou a Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo (2014-2016), na condição de membro do Comitê Paulista por Memória, Verdade e Justiça (CPMVJ).
“Além dessa iniciativa que, embora tardia, deve ser aplaudida, outras deverão ser implementadas para completar a necessária Justiça de Transição, como o cumprimento das recomendações da Comissão Nacional da Verdade e a punição dos agentes envolvidos nas torturas e assassinatos”, completa Cordaro, em declaração encaminhada ao Informativo Adusp Online a pedido da reportagem.
Já deveria ter feito, diz Helenalda, enquanto Kucinski vê “decisão correta e necessária”
“Fiquei feliz com a reinstalação da CEMDP, mas o Lula já deveria ter feito isto há muito tempo. Criou um desgaste, sem necessidade”, diz a matemática e pedagoga Helenalda Resende de Souza Nazareth, irmã de Helenira “Preta” Resende, desaparecida desde que foi assassinada pelo Exército em setembro de 1972, após combate nas matas do sul do Pará.
“O [ministro] Silvio de Almeida sempre apoiou a ideia e já tinha preparado todos os documentos para o presidente assinar, desde o ano passado”, lembra Helenalda, autora de livros didáticos e uma das criadoras, em 1998, do Grupo de Estudos e Pesquisas em Etnomatemática da Faculdade de Educação (FE-USP).
Helenira, que foi vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (1968) e deixou seus estudos na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) para se juntar à Guerrilha do Araguaia, é uma das quarenta e sete pessoas que tinham vínculos com a USP (como discentes ou docentes) e foram executadas por agentes da Ditadura Militar. Ela é uma dentre quinze ex-estudantes da FFLCH que serão homenageadas(os) em agosto próximo, quando serão concedidos a familiares (ou amigos próximos, eventualmente) diplomas honoríficos in memoriam.
De seis docentes da universidade assassinados(as) pela Ditadura Militar, continuam desaparecidos os restos mortais de três: Heleny Telles Ferreira Guariba (EAD e FFLCH), desde 1971; Luiz Carlos Almeida (Instituto de Física), este último executado no Chile, onde se encontrava refugiado, em 1973, logo após o golpe militar que derrubou o presidente Salvador Allende; e Ana Rosa Kucinski (Instituto de Química), desde 1974. Heleny está entre as pessoas que serão homenageadas em agosto na FFLCH.
“Uma decisão correta e necessária do presidente Lula. Um gesto que demarca com nitidez a natureza de seu governo em meio a tantas limitações nas áreas que lidam com materialidades”, pondera, a propósito da recriação da CEMDP, o jornalista Bernardo Kucinski, irmão de Ana Rosa Kucinski e professor aposentado da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP). Bernardo é autor de obras como K. (2011), em que descreve o calvário do seu pai em busca da irmã desaparecida, e a ficção O Congresso dos Desaparecidos (2023).
Neste momento, medida é “carregada de oportunismo”, diz Laura Petit
Entre as pessoas consultadas pelo Informativo Adusp Online, as considerações mais duras sobre o comportamento do governo federal partiram da socióloga Laura Petit da Silva, irmã de Maria Lúcia Petit, Jaime Petit e Lúcio Petit, que integravam a Guerrilha do Araguaia e foram assassinados pelas Forças Armadas. Somente os restos mortais de Maria Lúcia foram encontrados, em Xambioá (Tocantins), em 1991, e identificados pela Unicamp, em 1996.
“Segundo seus assessores, o próprio presidente Lula decidiu, finalmente, pelo momento da recriação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Os familiares aguardavam esse ato desde a sua posse, em janeiro de 2023”, destaca Laura. “Esse ‘momento do presidente’ de recriar a comissão pode ser considerado uma decisão carregada de oportunismo, pois nesta sexta, 5 de julho, a Corte Interamericana de Direitos Humanos irá julgar o caso do desaparecimento forçado de Eduardo Collen Leite, ‘Bacuri’, ocorrido em 1970, e certamente haverá a terceira condenação do Estado brasileiro pelos crimes da ditadura, antecedida pelo caso da Guerrilha do Araguaia e do caso Herzog”, avalia ela.
“Dizem que a História não se repete, mas neste caso sim! Em 2010, às vésperas de ser julgado o caso da Guerrilha do Araguaia pela Corte da OEA, o presidente Lula repentinamente também anunciou um projeto de lei para a criação da Comissão da Verdade, com o intuito de atenuar a condenação do Brasil pela Corte”, prossegue. “Os familiares de mortos e desaparecidos políticos ainda tiveram que esperar mais dois anos, quando de fato a Comissão Nacional da Verdade foi instituída pela presidenta Dilma, em 2012”.
A expectativa de Laura, que é diretora de escola aposentada da rede pública municipal de São Paulo, é de que seja dada à CEMDP “condições para realizar as buscas, esclarecer as circunstâncias de mortes e desaparecimentos e identificar os responsáveis pelos atos que os vitimaram”.
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