A Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP) e a Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP) excluíram da relação de ex-estudantes assassinadas(os) pela Ditadura Militar que receberão homenagem no próximo dia 26 de agosto a sua ex-aluna Heleny Ferreira Telles Guariba, que também foi docente da própria FFLCH e da Escola de Artes Dramáticas (EAD), vinculada à Escola de Comunicações e Artes (ECA). Na ocasião, serão entregues diplomas honoríficos da FFLCH a familiares e amigos de quinze pessoas executadas pelas Forças Armadas ou pela polícia política.

Como as homenagens dizem respeito ao projeto “Diplomação da Resistência”, a PRIP alega que Heleny não se enquadra, uma vez que, em 1965, ela concluiu o curso de Filosofia e foi diplomada. “A Diplomação da Resistência é um projeto de diplomação honorífica para os alunos que não puderam receber seus diplomas por terem suas vidas interrompidas durante o período da ditadura. É uma das recomendações da Comissão da Verdade da USP. Heleny Guariba recebeu seu diploma, portanto não se encaixa nesta ação”, declarou a PRIP, em resposta a um questionamento do Informativo Adusp Online.

De acordo com os registros da Comissão da Verdade da USP, publicados nas páginas 135 e 136 do Volume 3 do seu Relatório Final, Heleny militava na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) quando foi capturada pelo Destacamento de Operações de Informações (DOI) do I Exército, no Rio de Janeiro, em 1971. Há evidências de que foi executada na “Casa da Morte”, em Petrópolis, conforme depoimento da ex-presa política Inês Etienne Romeu. Tinha apenas 30 anos de idade.

Heleny Ferreira Telles Guariba

“Heleny nasceu no dia 13 de março de 1941, na cidade de Bebedouro, Estado de São Paulo, filha de Pascoalina Ferreira e Isaac Ferreira Caetano. Em 15 de março de 1960, matriculou-se no curso de Filosofia da USP, tendo concluído sua formação no ano de 1965. Especializou-se em cultura grega e, paralelamente, estudou teatro”, diz o relatório da CV-USP. A forte relação com o teatro marcaria sua trajetória profissional e história de vida.

“Trabalhou como professora na Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP e na Escola de Arte Dramática de São Paulo (EAD). Também no ano de 1965 recebeu bolsa de estudos do Consulado da França, em São Paulo, especializando-se na Europa, onde ficou com o marido até 1967. Ao voltar ao Brasil, foi contratada pela prefeitura da cidade paulista de Santo André, onde se tornou diretora do grupo de teatro da cidade, iniciando uma série de trabalhos culturais com os alunos das escolas municipais. Trabalhou também na Aliança Francesa, na capital, onde lecionou, montou e dirigiu peças de teatro. No entanto, com a edição do AI-5, seu trabalho foi bruscamente interrompido”, informa ainda o relatório da CV-USP.

“Fez inúmeros cursos, inclusive em Berlim, onde estudou a arte de Bertolt Brecht e estagiou como assistente de direção. Na França, fez seu doutorado, além de estágios em diversos teatros do país, como o Theatre de la Cité, de Roger Planchon, discípulo de Brecht”, relata a Wikipedia, segundo a qual ela não apenas dirigiu, mas fundou um grupo de teatro em Santo André, em 1968. “A primeira montagem do grupo foi Jorge Dandin, o Marido Traído, do dramaturgo francês Moliére, que foi vista por mais de 7 mil pessoas. Em 1969, o grupo montou A Ópera dos Três Vinténs, de Bertolt Brecht. Trabalhou com Augusto Boal, dando aulas no seminário de dramaturgia do Teatro de Arena”.

Em março de 1970, Heleny foi presa pela primeira vez em Serra Negra (SP), tendo sido localizada no Departamento de Ordem Política e Social (DEOPS-SP) por seu ex-companheiro Ulisses Telles Guariba Neto e por seu ex-sogro, o general da reserva Francisco Mariani Guariba. “Tinha marcas roxas nas mãos e nos braços, provocadas por choques elétricos. Foi torturada na Operação Bandeirante (OBAN), no Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI-SP) e internada no Hospital Militar durante dois dias em razão de uma hemorragia provocada pelas agressões. Heleny foi transferida para o Presídio Tiradentes, onde cumpriu pena durante um ano, até conseguir ser libertada em abril de 1971, quando passou algum tempo com a mãe e a tia”, prossegue a CV-USP.

Heleny fora libertada por determinação da Justiça Militar, e decidiu partir para o exterior. “Seu ex-marido, Ulisses Telles Guariba Neto, viajou para a Argentina em busca de lugar onde ela pudesse ficar. Ao retornar ao Brasil, por volta do dia 25 de julho, recebeu telefonema que informava a [nova] prisão de Heleny”, diz o Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), capítulo 12, p. 541-543. Ela havia sido presa no dia 12 de julho de 1971, ao lado de Paulo de Tarso Celestino da Silva, dirigente da Ação Libertadora Nacional (ALN), por agentes do DOI-CODI do I Exército (Rio de Janeiro). Ambos nunca mais foram vistos. Um informe do Serviço Nacional de Informações (SNI) indica 24 de julho de 1971 como data da morte de Heleny.

Amigos de Iara Iavelberg, Heleny e Ulisses chegaram a abrigar em casa, mais de uma vez, o ex-capitão Carlos Lamarca. De acordo com a atriz, dramaturga e ex-presa política Dulce Quirino de Carvalho Muniz, que foi aluna de Heleny e tornou-se sua amiga, ela pretendia reorganizar a VPR. “A Heleny pôs para ela a tarefa de reagrupar, de reconstruir a VPR”, revelou Dulce em depoimento prestado à Comissão da Verdade “Rubens Paiva”, em 2013.

“Heleny foi uma professora extraordinária, tinha profundidade ao abordar os assuntos. Era uma das pessoas mais éticas e íntegras que conheci”, contou Dulce a propósito de um curso de interpretação oferecido pelo Teatro de Arena em 1969 e coordenado por Heleny. Em homenagem à mestra, Dulce escreveu a peça Heleny Heleny, doce colibri e mantém o Teatro Studio Heleny Guariba, na Praça Roosevelt, no centro da capital paulista.

Curiosamente, no primeiro vídeo institucional produzido e divulgado pela PRIP sobre a diplomação honorífica de ex-estudantes da FFLCH, o nome de Heleny consta como uma das pessoas homenageadas, e o nome do artista plástico ítalo-brasileiro Antonio Benetazzo, que foi aluno de filosofia da FFLCH e também cursou arquitetura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), havia sido omitido. Militante do Movimento de Libertação Popular (Molipo), Benetazzo foi assassinado por agentes do II Exército em 1972, aos 31 anos de idade. Posteriormente, a PRIP preparou um segundo vídeo, no qual Benetazzo foi incluído, e Heleny retirada.

“Ainda muito jovem, Heleny Guariba já demonstrava ter aproveitado seus estudos na FFLCH de maneira notável, fosse como diretora de teatro, fosse como professora ou ainda como animadora de movimentos culturais. Seus alunos e colegas contam que ela causava admiração geral com seu talento e sua solidez intelectual. Havia, portanto, muita expectativa em relação à trajetória futura de Heleny como artista e como pensadora do teatro”, diz ao Informativo Adusp Online o jornalista Eduardo Campos Lima, doutor pela FFLCH e pesquisador do teatro popular.

“A interrupção brusca e violenta de sua trajetória não permitiu que se vissem mais frutos de seu período formativo na FFLCH e em outras instituições. Embora ela tenha recebido seu diploma de graduação, sem dúvida é preciso incluí-la em qualquer homenagem a desaparecidos políticos provenientes da FFLCH, pois sua carreira e sua vida foram injusta e criminosamente abortadas antes que mais contribuições fossem dadas por ela não apenas à vida cultural brasileira, mas à própria FFLCH, à qual ela se mantinha vinculada de maneira mais ou menos direta”, completa Lima.

“A USP teve inúmeros estudantes e docentes assassinados pela ditadura e também forneceu quadros políticos que exerceram papel fundamental nos governos militares. Ela tem essas duas almas, a da resistência e a do colaboracionismo. A ‘Diplomação da Resistência’ é um reconhecimento tardio da universidade aos que defenderam a democracia, mas também uma maneira de resgatar sua alma democrática”, avalia o professor Lincoln Secco, do Departamento de História da FFLCH, em declaração ao Informativo Adusp Online. “Heleny Guariba acima de tudo nos honra enquanto uspianos — e não um Miguel Reale, um Delfim Netto ou um Gama e Silva. Retirar seu nome de uma solenidade já marcada com um argumento de rotina burocrática é o tipo de atitude que justificou a colaboração com a ditadura”.

No dia 26 de agosto às 15 horas, no auditório Nicolau Sevcenko da FFLCH, serão atribuídos diplomas honoríficos a, além de Benetazzo, Catarina Helena Abi-Eçab e João Antonio Abi-Eçab (ambos executados em 1968); Fernando Borges de Paula Ferreira e Sergio Roberto Correa (1969); Luiz Eduardo da Rocha Merlino, Carlos Eduardo Pires Fleury e Francisco José de Oliveira (1971); Ruy Carlos Vieira Berbert, Isis Dias de Oliveira e Helenira Rezende de Souza Nazareth (1972); Tito Alencar Lima, Suely Yumiko Kanayama e Jane Vanini (1974); e Maria Regina Marcondes Pinto (1976).

EXPRESSO ADUSP


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