Memória
Perdemos Norberto Guarinello (1959-2025), docente erudito, referência nacional em História Antiga e Arqueologia, autor de escrita clara e sempre disposto a repensar paradigmas

Faleceu aos 66 anos, no último dia 29 de agosto, o professor Norberto Luiz Guarinello, docente do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP) e ex-diretor da Associação de Docentes da USP (gestão 1999-2001). Seu precoce desaparecimento consternou amigos(as) e colegas pesquisadores(as) das áreas de História Antiga e Arqueologia Clássica, das quais se tornou expoente e referência acadêmica. A Associação Nacional de História (ANPUH) registrou que Norberto “teve um papel central na consolidação do campo de estudos sobre a Antiguidade no Brasil”, e que “sua produção intelectual e sua atuação na formação de pesquisadores constituem um importante legado para a historiografia nacional”.
Norberto participou ativamente da construção de importantes espaços acadêmicos: “Foi um dos sócios fundadores da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos (SBEC) e membro de sua diretoria nacional (2016-2017). Atuou também na constituição do Grupo de Trabalho de História Antiga da ANPUH [GTHA] e foi um de seus coordenadores nacionais (2007-2009). Foi ainda membro da direção nacional da ANPUH (1997-1999)”. Em 2008, fundou o Laboratório de Estudos sobre o Império Romano e Mediterrâneo Antigo (LEIR-MA), grupo de pesquisas que reuniu “pesquisadores, em diversos estágios de formação, de várias universidades brasileiras”, criando assim um espaço de debate que se desdobrou em colóquios e publicações.
“Historiador e arqueólogo, embora tenha se dedicado ao estudo da história romana, sua erudição lhe permitia percorrer todos os períodos da Antiguidade e orientar dissertações e teses sobre os mais diversos temas. Em sua trajetória, destaca-se justamente essa sua capacidade de orientar e acolher estudantes que desejavam estudar História Antiga, muitos hoje lecionando em universidades no Brasil e exterior”. Ainda segundo a ANPUH, sua produção intelectual “é marcada por uma escrita clara e pela disposição de revisitar paradigmas, incentivando leituras renovadas das fontes e a reflexão sobre as pontes entre a Antiguidade e o mundo contemporâneo”.
O Núcleo de Estudos da Antiguidade da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) expressou profundo pesar por sua morte: “Especialista em Roma, com foco na Antropologia Social e na Arqueologia Clássica, sua partida traduz uma grande perda para toda a comunidade acadêmica no Brasil”. Outro grupo que manifestou sua tristeza foi o Laboratório de Estudos da Antiguidade Oriental (LEAO) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS): “Norberto formou gerações de antiquistas no Brasil e foi um grande incentivador da área no país. À família, aos amigos e colegas, nossos pêsames e forças para passar por este momento”.
Externou igualmente seu pesar o Laboratório de Teoria e História das Mídias Medievais (Lathimm), instituição que opera em rede e dispõe de duas sedes, uma situada no Departamento de História da USP e outra no Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), possuindo ainda sede honorária em Florença (Itália). “Nós do Lathimm nos unimos às vozes que celebram sua memória, seu reconhecido bom humor, e a qualidade de seu trabalho”. Seu legado, prossegue a nota do Lathimm, “se expressa também nos seus livros e artigos de referências, em seu laboratório LEIR-MA/USP, e em mais de uma geração de pesquisadores e pesquisadoras atuantes no Brasil e no exterior. Expressamos os nossos sentimentos aos seus familiares, amigos, orientandos e orientandas”.
O Laboratório de Arqueologia Romana Provincial (LARP) do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE), por sua vez, lembrou que Norberto foi “referência incontornável” na área de História Antiga: “Professor, pesquisador e orientador dedicado, formou uma grande geração de professores e pesquisadores, deixando sua marca também nos laboratórios do MAE-USP, onde ajudou a construir caminhos para novas pesquisas e reflexões. Sua trajetória acadêmica e humana seguirá como inspiração para todos que tiveram o privilégio de conviver, aprender e trabalhar ao seu lado”.
Na FFLCH, Norberto graduou-se em História (1981) e tornou-se mestre (1986) e doutor (1993) em Antropologia Social (Arqueologia Clássica). Realizou no exterior seus quatro pós doutoramentos: na Brown University (EUA, 1998), na Oxford University (Reino Unido, 2003), na Université Paris Est Maerne La Valée (UPE, 2009) e na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS, 2009), ambos na França. Ele ingressou no corpo docente da USP em 1984, como professor doutor do Departamento de História da FFLCH, e tornou-se livre docente em 2015, aposentando-se em 2019.
“Tem experiência nas áreas de História Antiga, Arqueologia Histórica e Teoria da História atuando principalmente nos seguintes temas: história romana, cultura e sociedade no mundo antigo, Mediterrâneo clássico, teoria da historia e cultura clássica”, descreveu-se Norberto, singelamente, na apresentação de seu currículo Lattes. Manejar essas temáticas exige conhecer algumas línguas em especial. Norberto lia bem em grego, falava e escrevia em latim, dominava espanhol, italiano, alemão e francês — e falava, ainda, um pouco de russo.
Publicou sete livros: Imperialismo Greco-Romano (Ática, 1987), Os Primeiros Habitantes do Brasil (Atual, 1994), A Cidade na Antiguidade Clássica (Saraiva/Atual, 2006), História Antiga (Contexto, 2013), Breve Introdução à Arquitetura Clássica em São Paulo (Cultura Acadêmica, 2015), Rede de conectividade no Mediterrâneo Antigo (UERJ, 2017) e Fronteiras Mediterrânicas (FI, 2019). Também são de sua autoria 21 artigos científicos, 17 capítulos de livros e diversos outros escritos.
Em maio de 2024, foi homenageado por alunos, ex-alunos e colegas no evento denominado “Diálogos Norbertianos”, no auditório Fernand Braudel da FFLCH, que envolveu a apresentação de cinco mesas-redondas sobre temas ligados a pesquisas orientadas por ele ao longo de quatro décadas de atuação na USP. “As questões históricas e teóricas propostas pelo professor relacionam memória e história, os conceitos de fronteiras físicas e culturais e os processos de integração e exclusão das cidades antigas de forma nunca feita antes”, destacou, à época, Alex Degan, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e ex-aluno de Norberto.
História Antiga nem dá conta da realidade, nem deve ser abandonada
“Um dos efeitos mais dramáticos da aceleração da integração mundial nos últimos vinte anos foi a implosão do conjunto de certezas sobre as quais repousavam as Ciências Sociais, incluindo-se nelas a História, em suas tentativas de explicar as sociedades humanas atuais ou passadas. Talvez nunca o passado, ou a memória sobre o passado, tenha se alterado tão rapidamente”, escreveu Norberto no artigo “Escravos sem senhores: escravidão, trabalho e poder no Mundo Romano”, publicado no distante 2006 e que pode servir como exemplo de sua erudição, bem como de sua notável produção científica.
“A História Antiga, por exemplo, perdeu sua primazia, seu lugar de história primeira, de início de toda a história humana, para tornar-se apenas mais uma história, um dos vários caminhos que conduzem à contemporaneidade. E, com efeito, numa época em que todos os pontos do planeta são relevantes para pensarmos o que somos e o que seremos, não faz mais sentido dar prioridade a uma história regional, localizada, que os intelectuais europeus dos séculos XIX e XX quiseram transformar na História por excelência da civilização, do homem em sua mais perfeita expressão e do mundo moderno como resultado da europeização da terra”, sustenta ele, para em seguida apresentar novos argumentos talvez surpreendentes, contrários ao mero descarte dessa história europeia, ou eurocêntrica, que embora “regional, localizada” merece, a seu ver, ser objeto de estudo.
“Essa história, obviamente, não se basta, nem consegue dar conta da realidade complexa em que vivemos. Isso não significa, contudo, que devamos abandoná-la. Não é nossa história antiga, mas ainda é uma história interessante e importante para nós. É parte de nossa tradição cultural e intelectual e uma porção significativa da história do mundo. E, sobretudo, dentre as várias histórias humanas, que hoje confluem para uma história global, é uma história à qual podemos propor perguntas que nos interessam, construir memórias que nos dizem respeito, seja construindo linhas diretas entre nós mesmos e esse passado, do qual derivamos, seja elaborando espelhos, que nos possibilitam olhar para o passado como algo diferente de nós, usando essas diferenças como um antropólogo usaria, para nos vermos sob um novo olhar”.
No artigo, que é quase um ensaio, Norberto dialoga com quem o lê: “O estudo da história antiga nos coloca frente a frente com nossas convenções. Quando falamos em sociedade romana, a que nos referimos? A uma sociedade como a nossa? Ou a algo diferente?”. Feitas as perguntas, avança as respostas. “Vejam bem: para estabelecer a diferença, temos que estabelecer o que somos. Esse é, para mim, o grande sentido da história. Não é a celebração de eventos ou de grandes homens, não é a glorificação do passado nem a reificação da memória. A História científica é interessante porque, para pensar o passado, temos que nos pensar. Para ver e estabelecer diferenças, ou semelhanças, ou a igualdade, temos que definir o que somos, ou o que fomos num passado não tão remoto”, propõe.
Passa, em seguida, ao tema central do texto. “Pensemos, por um momento, em um mundo muito distante do nosso, separado de nós por dois mil anos de história e milhares de quilômetros de distância: o mundo da escravidão antiga. Minha pergunta geral será a seguinte: quais os efeitos que a presença maciça de escravos pode produzir numa sociedade e, mais especificamente, quais efeitos produziu na sociedade da Itália Romana. Talvez, é o que espero, seja uma maneira interessante de colocarmos questões que nos são pertinentes”, diz Norberto.
Faz, então, duas advertências, as quais já constituem aulas em miniatura. A primeira delas: “O Império Romano conheceu diferentes formas de trabalho compulsório, dentre elas uma que denominamos de ‘escravidão’. Ou seja, ao contrário do mundo moderno, a escravidão antiga sempre conviveu com outras formas de dominação de pessoas e de exploração de trabalho dependente. No mundo antigo havia todo um espectro de situações de dependência entre a escravidão e a liberdade. A escravidão representava apenas uma das pontas desse espectro. De qualquer modo, em alguns períodos e lugares, foi a forma dominante por vários séculos, em particular na Itália romana entre os séculos II a.C. e II d.C. É aqui que devemos procurar por eventuais efeitos da escravidão sobre a sociedade em geral”.
A segunda: “Não é fácil definir a escravidão antiga. A historiografia trata em geral a escravidão como se fosse um fenômeno quase universal, presente, em diferentes graus de intensidade, em quase todas as sociedades humanas pré-capitalistas. Nossa imagem do que seja ou tenha sempre sido a escravidão é calcada na experiência da escravidão colonial nas Américas, particularmente as do sul dos Estados Unidos, do Caribe e do Brasil que, por sua vez, buscaram grande parte de seus fundamentos jurídicos e de sua legitimação no direito romano”, assinala. “A noção mais comum continua sendo de caráter eminentemente legal: a do escravo propriedade, sempre um estrangeiro, adquirido para ser uma coisa pertencendo a outro indivíduo, que seria senhor, não somente de seu trabalho, mas de seu próprio corpo, do qual teria pleno e total direito de utilização e que poderia submeter a qualquer tipo de coação, castigo ou mesmo à execução simples e sumária. Para essa definição o escravo, por ser propriedade, seria uma coisa, uma condição, mas não um agente”.
No entender de Norberto, não há identidade, mas apenas analogia, entre as várias formas de “escravidão” enumeradas, e não se pode falar “de uma fase escravista na história das sociedades humanas, como se fosse uma etapa necessária em direção às modernas relações capitalistas”. Seu artigo critica essa ideia, “que teve muito trânsito na historiografia até recentemente” [e] “deriva de uma visão exclusivamente eurocêntrica da história humana, ao mesmo tempo em que generaliza, para a própria história europeia, uma instituição cuja importância, numérica e social, só se tornou efetiva em certos momentos e lugares bastante específicos”.
A forma extrema de relações de dependência, que por analogia pode ser denominada de “escravidão”, era aquela na qual o escravo “era geralmente um estrangeiro, ou filho de mãe escrava, podendo ser comprado e vendido livremente no mercado” e sobre o qual o proprietário exercia imenso poder. “Mas essa forma foi uma exceção e nunca a regra nesse chamado ‘mundo antigo’. Foi característica do mundo das cidades-Estado, mas não de todas elas, e sobretudo do Império Romano mas, como já disse, não em todas as suas regiões, nem com a mesma intensidade em toda sua duração”.
Após tais considerações preliminares, o autor entra na seara anunciada no título do artigo, confrontando um paradigma historiográfico. “A despeito de sua importância social e econômica, a escravidão ocupa, na historiografia sobre o Império Romano, uma posição ambígua que deriva, a meu ver, do fato de os escravos serem parte importante da sociedade, ao mesmo tempo em que estavam excluídos da comunidade política. Há aqui uma disjunção que a historiografia assimila com dificuldade”, frisa.
“Os escravos estavam presentes, reconhece-se, e muitas vezes maciçamente, no mundo da produção, do trabalho, mas parecem não ter exercido nenhuma influência na esfera política e, menos ainda, na cultural. À parte algumas grandes revoltas episódicas, das quais a mais famosa é a de Espártaco, a presença maciça de escravos parece ter influído muito pouco sobre o restante da sociedade. Trabalhavam para seus senhores, eram seus instrumentos, revoltavam-se raras vezes, e nada mais. Será apenas isso? Creio que não”. Está anunciada a dissidência.
“A meu ver, os escravos penetraram com grande força no tecido social da Itália romana, de uma maneira muito mais intensa e completamente distinta do que se costuma pensar com relação à escravidão colonial moderna. Essa inserção deve-se à grande plasticidade da escravidão no mundo romano, seja como forma de relação social, seja como forma de relação de poder e exploração”, argumenta Norberto, e passa a desenvolver essa tese, apoiando-se na noção de “trajetória”, desenvolvida por O. Patterson no livro Slavery and Social Death.
“Quando morre um professor que foi importante em nossa formação sentimos uma espécie de orfandade, perdemos um mestre, um mentor, um referencial. Norberto Luiz Guarinello foi professor de história antiga e de arqueologia, com ele aprendi pela primeira vez a importância dos etruscos e conheci a antiguidade clássica greco-latina”, declarou no Facebook o professor Henrique Carneiro, que foi seu colega no Departamento de História.
“Sua simpatia pessoal, seu engajamento nas lutas sociais e sindicais e sua generosidade fizeram dele mais que um brilhante acadêmico, mas uma pessoa íntegra e estimável”, acrescentou. “Norberto vive em sua obra e em todos os estudantes que ele ajudou a formar!”.
Norberto deixa a esposa, Solange, filhos e netos.
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