A garantia de cumprimento dos direitos sociais expressos no art. 6° da Constituição Federal de 1988 — “a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados” — depende da arrecadação de tributos e de sua destinação. Aliás, é até oportuno recorrer à metáfora que os conservadores repetem exaustivamente, “não existe almoço grátis”. E, por óbvio, Executivo, Legislativo e Judiciário não podem ignorar a questão, até por obrigação de ofício. Destinação adequada de recursos aos direitos sociais é investimento dos mais saudáveis e necessários.

Ocorre que vigoram tradicionalmente no país práticas que afrontam tais direitos e contribuem para o aprofundamento de desigualdades, que são adotadas por governos de diferentes matizes políticas; nisso tem havido semelhança inconteste. Essas inaceitáveis práticas, que no conjunto provocam drástica redução de arrecadação de tributos, talvez só sejam possíveis devido à indiferenciação contumaz que se faz entre o que é/deve ser público e o que é/deve ser privado.

Não facilmente identificadas, tais práticas são mais evidentes em períodos específicos de disputa do fundo público, ou seja, nos momentos de definição das principais peças de orçamento do Estado, Planejamento Plurianual (PPA, quadrienal), Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO, anual) e Lei Orçamentária Anual (LOA). A parte mais exposta são as isenções fiscais, sobre as quais pairam inúmeras dúvidas, nunca devidamente esclarecidas e, curiosamente, não acusadas pela elite conservadora de “aumentar a dívida pública”.

Mecanismos como “subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições”, só poderão ser concedidos “mediante lei específica, federal, estadual ou municipal”, que regule exclusivamente essas matérias ou “o correspondente tributo ou contribuição” (conforme artigo 150, §6° da Constituição Federal de 1988). Qualquer medida que implique renúncia de receita “deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes”, atender ao disposto na LDO e ainda sujeitar-se a outras condições (cf artigo 14 da Lei Complementar 101/2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal). Convenhamos, não tem sido frequente o respeito a tais determinações e esses processos não são nada transparentes às pessoas comuns. Vale dizer, dessa forma é muito difícil exercer qualquer tentativa de controle social sobre a questão.

Assim, entra governo, sai governo, e a sociedade brasileira permanece submetida a condutas desse tipo, que são até apresentadas como saudáveis, por exemplo, como pode-se ver na matéria “Fim de litígios com grandes empresas é aposta da Fazenda para obter R$ 30 bi em receitas em 2025”, cujo mote é aumentar a arrecadação, a obtenção de receitas extras, mas perguntamos, em relação a quê? No caso, trata-se do Programa de Transação Integral (PTI), “que nasceu de uma demanda de dez grandes empresas com altíssima capacidade de pagamento” (Folha de S. Paulo, 12/9/2024, p. A17) e, segundo a procuradora-geral da Fazenda Nacional, fruto “de uma evolução e de uma maturidade da PGFN (Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional)”. Ou seja, o PTI é apresentado publicamente como medida coerente com a boa técnica, algo que se não é o mais desejável, pelo menos é o possível.

Considerada a alegação da procuradora-geral, o PTI teria a vantagem de reduzir “o custo operacional dos litígios que envolvem as chamadas grandes teses tributárias que estão em discussão nas instâncias administrativas de recursos apresentados pelas empresas contra as autuações da Receita Federal”. Afirma-se que os litígios são morosos, sendo que alguns chegam a levar de quinze a vinte anos. Afora dar a entender que se busca desde 2020 um caminho alternativo para correção da distorção referente ao não pagamento de multas, incluídas as de iniciativa proposital, não dá para ignorar que o novo programa de “transação integral” não esconde tratar-se de alternativa que, na realidade, mantém o teor espúrio de premiar empresas devedoras, que por certo estimula muitas outras empresas a fazerem o mesmo. Tal prática pode ser traduzida em linguagem popular por meio do mote “vão-se os anéis, ficam os dedos”. Perguntemos: é medida desejável para enfrentar calotes, sejam voluntários ou involuntários? Achamos que não!

A constatação disso tudo é que essa prática tem sido recorrente, tanto por parte de governos de direita como de esquerda ou de centro. E não sejamos ingênuos, sabemos das inúmeras circunstâncias que permeiam a luta de classes no país, contudo o mais intrigante é que, num governo que se pretende popular e democrático, ao invés de atacar a prática nefasta, ela é potencializada quando se trabalha com a visão explicitada pela procuradora-geral: “Temos um sistema de controle interno e externo que nos garante a integridade da nossa atuação”, disse ela em resposta ao risco de acordos serem benevolentes com as empresas [devedoras], segundo a matéria jornalística citada. Dessa forma, a postura governamental contribui para fomentar o uso indevido do fundo público.

Nosso entendimento é o de que a maioria da população não tem clareza plena da vigência desse tipo de distorção da política econômica, não por incapacidade, mas por ser alijada do acesso a um conjunto de informações necessárias para viabilizar relações de nexo. Se temos razão, vai demorar para que parcela significativa da sociedade se contraponha à manutenção da política aqui tratada. Espera-se que o governo de plantão colabore para superar práticas que, em verdade, se mostram antissociais. Ademais, os setores sociais organizados – sindicatos, partidos, movimentos defensores da população subalternizada – precisam ter uma contribuição mais robusta, para que o referido problema se constitua, de fato, como uma preocupação de toda a sociedade brasileira e, assim, torne-se algo a ser enfrentado amplamente, isto é, em síntese, que se torne um problema nacional.

EXPRESSO ADUSP


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