Opinião
Ensino, pesquisa e saúde mental na USP
Neste artigo o professor Reinaldo Furlan, do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP), discute o atual contexto da universidade e da ciência, dominado pelo conteudismo no ensino, pelo produtivismo acadêmico e pela razão instrumental, e indaga sobre as possíveis causas dos problemas de saúde mental existentes na comunidade universitária — e especialmente dos episódios de suicídio
Este texto é uma versão revisada da mensagem que publiquei dia 24 de novembro passado na lista de e-mails de professores associados da USP. Seguiu-se à mensagem enviada pela professora Patrícia Izar (IPUSP), entre outras, a respeito da questão da saúde mental na USP, agudizada por episódios de suicídio em nossa “comunidade”. Com o intuito de ampliar o alcance do texto, por sugestão de colegas da lista, reproduzo aqui o seu conteúdo com algumas alterações. O texto tem, naturalmente, um caráter informal e direto no destaque de pontos que me parecem incontornáveis para a discussão do assunto.
Antes de tudo, reitero, com tantos outros, que são importantes e necessárias medidas de apoio a pessoas cuja “saúde mental” inspira cuidados especiais. Mas, e escrevo para corroborar a mensagem da Patrícia, é importante também se perguntar pelas causas do suicídio.
Assim como a Patrícia se identificou com sua formação acadêmica, faço o mesmo por razões intrínsecas ao que escrevo. Sou filósofo, e questiono desde minha entrada na USP, em 1993, o sentido do que fazemos na universidade, em particular, o sentido presente nas duas principais atividades fins na universidade, o ensino e a pesquisa. O ensino, como conteudista e, sobretudo, com excesso de disciplinas e horas aula. Não assistimos a dois filmes seguidos com todos os atrativos que podem ter com suas imagens e enredos, mas nossos alunos entram e saem seguidamente de uma aula para outra ao longo do dia. Do ponto de vista pedagógico não faz sentido. Uma aula realizada, assim como um filme a que se assistiu, ou a fruição de uma obra de arte, precisa de um intervalo de tempo, ainda que curto, para a sedimentação da sua experiência de sentido, para ser depois melhor elaborada. A introdução imediata de outro conteúdo (outra aula, outro filme ou obra de arte) aborta o que poderia ser um princípio de pensamento, desviando sucessivamente a atenção, o que leva, por fim, a um estado de desatenção por cansaço ou de atenção curta flutuante.
Se do ponto de vista pedagógico esse tipo de ensino faz pouco sentido, ele cumpre, porém, outras tarefas, entre as quais a disciplina de horário e domesticação dos corpos para o trabalho futuro. O problema é que se isso serviu para um capitalismo industrial e, no caso do Brasil, periférico ou reprodutor de saberes, não serve mais para as principais atividades de trabalho no capitalismo atual, com mais exigências cognitivas e, também, mais estressante do ponto de vista “psíquico” ou emocional. Então esse é um modelo de ensino que se encontra defasado, tanto do ponto de vista pedagógico, o que desde o princípio era questionável (aluno não é vaso para se colocar conteúdo dentro, já dizia Paulo Freire, que eu li na minha graduação), quanto do ponto de vista do capital produtivo.
E a pesquisa, com o produtivismo, sempre me pareceu um enorme equívoco do ponto de vista intelectual e da boa ciência. Ainda não solucionamos o problema do câncer, Aids, Alzheimer etc., sem falar nos grandes paradigmas que comandam as ciências há décadas (teorias da relatividade, quântica, evolução etc.), mas parece que vamos mudar a ciência a cada dois ou três anos. Muita gente séria passa a vida pesquisando sem descobrir grandes coisas na ciência, e muitas descobertas nas ciências apareceram quando se investigava outra coisa ou questão. Ao visitar o Brasil, quando indagado a respeito de como anotava suas ideias, Einstein respondeu que só teve uma na vida. A própria vacina contra a Covid, que resultou de um trabalho de pesquisa intenso e extenso no mundo todo, partiu de um saber acumulado havia anos, sem o qual ela não seria possível. Essa é a realidade da prática científica. De modo que para o pesquisador ser independente ou criativo, e se arriscar, como cobrava nosso ex-reitor professor Marco Antonio Zago, durante seu mandato, ele não pode ser pressionado e cobrado a cada dois ou três anos por resultados. Esse não é o tempo da ciência. Pode ser o de muitas tecnologias, mas não é o da ciência nem o do pensamento. Por isso que o que se produziu durante mais de 20 anos de pesquisa no Brasil, alguns avanços à parte, guiado por esse espírito produtivista, foi mais insignificância do que relevância, e não sou eu quem concluiu isso, embora sabendo-o por princípio.
Agora se diz que o mais importante é a qualidade e não a quantidade das publicações, mas, com pouca ou nenhuma reflexão, não se coloca em questão que formamos duas ou três gerações de pesquisadores nesse período de tempo, lendo e fazendo o quê? Sempre há exceções e resistências, mas me refiro ao padrão de pesquisador que produzimos socialmente nas nossas formas de realização de ensino e pesquisa. Por isso nunca me interessaram rankings internacionais, e convido os colegas a pensarem no sentido que vivemos em nossas atividades de pesquisa e de ensino em sala de aula, informarem-se mais a respeito e reforçar o desejo que ainda existe de educador e pesquisador em cada um de nós, o que muitos devem ter para estar nesta universidade, e que se choca com a frustração e o sofrimento gerados por esse processo. Por formação própria, posso assegurar que a filosofia é avessa a esse modelo que chamo de antipensamento. E creio que também o é para quem sabe o que é fazer boa ciência. Discutir as razões pelas quais a Universidade embarcou nesse movimento produtivista extrapola os limites deste texto, mas fica, aqui, a questão, também tarefa para uma história ou sociologia do conhecimento na universidade contemporânea das últimas décadas.
E o que tudo isso tem a ver com a questão da saúde mental, escancarada em episódios agudos como o suicídio? Em primeiro lugar, há de se lembrar que o suicídio envolve ou pode envolver diferentes fatores, desde o biológico até o horizonte mais amplo do mundo atual, passando pela história de vida da pessoa. Mas também é claro que o meio mais próximo naturalmente se vê implicado em episódios como esse. Afinal, o sentido mais simples do suicídio é que a pessoa suicida não quer mais viver nesse mundo. Parece um truísmo, mas é bom dizê-lo e repeti-lo, porque a tendência é individualizar o problema, quando sabemos ou deveríamos saber que a vida, qualquer vida, é sempre de um ser individuado em relação com seu meio. Não há vida sem relação entre o seu dentro (do corpo, cujo limite é a pele ou membrana) e o seu fora (o mundo ambiente do ser vivo). Portanto, não querer mais viver implica, naturalmente, não querer mais viver no mundo em que se vive ou ser nessa relação com o fora (mundo). E é sobre isso que precisamos pensar. Nossa realidade é e se faz entre coisas e pessoas. A realidade é a relação de coisas e pessoas e não um conjunto delas separadas, e por isso se diz, mais precisamente, que a vida é um processo contínuo de individuação, pois não há indivíduo acabado, senão com a morte. Ou, para os adeptos e admiradores das neurociências, é preciso lembrar que o cérebro é, sobretudo, para fora, é relação (visão, olfato, tato, audição, motricidade etc.), é comunicação e não uma massa encefálica fechada de eventos físico-químicos. A própria ciência é onde? Onde está a ciência? Dentro da cabeça ou nas relações de sentido (conhecimento) que estabelecemos ou descobrimos entre as coisas que percebemos e manipulamos.
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Passando às considerações finais, o que o mundo precisa prioritariamente, hoje, não é de mais produção, pois já temos o suficiente para suprir as necessidades materiais básicas de toda a humanidade, mas cuidar de nossas relações (sociais e interpessoais). Essa é a riqueza que nos falta, ou a miséria que nos assola diariamente. Não é produção que falta hoje no mundo, a despeito do mantra da necessidade de crescimento econômico alardeado mundo afora. Ao contrário, o mundo está repleto de produção e do seu lixo, com a natureza devastada. O que falta hoje é pensar e alterar nossas formas de relações com os outros, incluídas as vidas não humanas e a natureza em geral.
Em outra ocasião, questionei a verticalidade do princípio de inovação na estrutura curricular de todos os cursos de graduação da USP, dizendo, justamente, que o que deveria pautar a formação dos nossos alunos é a capacidade crítica de pensar a realidade que produzimos, para o que certamente importam os saberes de todas as ciências, e citei algumas referências sobre a história da nossa universidade (USP), entre as quais destaquei os trabalhos do nosso colega filósofo e professor Franklin Leopoldo e Silva (hoje aposentado). Aproveito agora para dizer que só fui estudar a história da nossa universidade porque passei a ser um dos responsáveis por uma disciplina sobre Universidade para alunos PAE, no Programa de Pós-graduação do qual faço parte. Foi quando descobri que o projeto inicial de criação da USP previa uma formação básica em humanidades para todos os cursos profissionalizantes, que esse projeto foi abortado e que as três grandes escolas profissionalizantes da USP, Medicina, Poli e Direito, já nasceram, então, separadas. Não é um fenômeno isolado. A razão instrumental (capaz de servir de meio para a transformação da realidade) cresceu exponencialmente desde a modernidade, mas a capacidade social de pensar nossas relações foi relegada ao ritmo dos interesses econômicos dominantes na política, hoje barbarizada por meio das novas tecnologias de informação e comunicação, a despeito de seus ganhos colaterais.
Não assisti à participação inteira do nosso reitor atual, o professor Carlotti Jr., no Programa “Roda Viva”, em 2023. Mas uma fala dele me chamou a atenção, quando questionado sobre a eventual menor importância das ciências humanas em meio às ciências exatas e biológicas. Ele respondeu que não, e deu o exemplo da pesquisa da USP no desenvolvimento do submarino nuclear em parceria com a marinha brasileira, na qual a psicologia investigava quanto tempo uma pessoa pode ficar submersa dentro de um submarino, sem afetar sua saúde mental. O professor Carlotti Jr. é médico de formação, e pode ser uma ótima pessoa, o que estendo aos demais ex-reitores sob cujos mandatos passei meus trinta anos de USP, mas as ciências humanas têm um papel mais fundamental do que esse, que não interessa, porém, no mundo todo, nem ao poder nem ao capital, e que é este de pensar nossas relações, inclusive a ciência que realizamos (ou alguma ciência não é humana, no sentido largo do termo?). Nesse exemplo dado por nosso reitor, as ciências humanas estariam inscritas no seio da razão instrumental, ou fariam parte dela. Mas a razão instrumental seria pensada por quem? E antes de se supor que este seria o papel exclusivo das ciências humanas, lembro mais uma vez a formação de humanidades à qual me referi, necessária a todas as formações profissionais para se pensar a realidade que produzimos e vivemos, não como um verniz genérico de princípios civilizatórios na introdução dos planos pedagógicos dos cursos, ou com a introdução de uma ou duas disciplinas soltas de humanidades no currículo, mas de maneira transversal e concreta na estrutura curricular ao longo de cada curso.
Como sei que a Reitoria, e não é de hoje, está mobilizada pela ideia da necessidade de uma reforma curricular geral na universidade, aproveito para destacar ou lembrar a ideia de que estudar e pesquisar devem ou deveriam estar entre as atividades mais estimulantes da vida, que aumentam nossa vontade de ser e dar sentido ao mundo, e assim combater toda forma de produção de morte, as grandes, como assistimos hoje à violência monstruosa praticada em Gaza com a hipocrisia das potências ocidentais, e não faltam exemplos dessa magnitude na história da humanidade, também lembrando que temos violências institucionalizadas no Brasil contra nossa população pobre e negra, e as pequenas mortes, que produzimos a conta gotas (maiores ou menores) no nosso cotidiano com tudo aquilo que contraria a realização da vida ou a diminui, e que, em geral, não percebemos como tal, salvo quando alguém resolve “dizer”, com sua própria morte, que não quer mais viver nesse mundo. Ora, por que não? Essa é a pergunta que deve ser feita.
São sentidos que todos nós vivemos, de alguma forma. Então a questão é saber, naquilo que nos cabe, isto é, a respeito das nossas relações na universidade, a começar, sobretudo pelas atividades de ensino e pesquisa, o que podemos fazer para tornar a vida mais interessante, isto é, como criar condições favoráveis para a experiência do que há de melhor na ciência e no pensamento, em um esforço coletivo para a realização das diferenças significativas e do raro nas pesquisas. Estudar e pesquisar devem ser motivos de excitação e aumento de potência de vida, que em geral supõe disciplina e trabalho, mas com sentido, que se mostra quando percebemos que o que fazemos vale a pena. É um desafio organizar e favorecer a realização desse estado de vida, não é uma tarefa simples, mas esse deveria ser o guia de nossas atividades de ensino, pesquisa e extensão na universidade. A universidade, com todos os envolvidos, precisa de disposição e abertura crítica para a discussão de uma reforma profunda no ensino e a ressignificação de nossas atividades de pesquisa. Com aquilo que temos, isto é, com aquilo que somos, com nossas dúvidas, ignorâncias e saberes a respeito disso tudo. É assim que a vida pensa, a partir do seu mal-estar, daquilo que não vai bem, com a crítica a serviço de uma vida mais plena, e não apenas mais suportável.
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Nota: essas questões se inserem no contexto mais amplo de parte das pesquisas que realizei nos últimos anos, que se expressam, em particular, em três trabalhos que reúnem o que considero importantes referências bibliográficas para se pensar o mundo contemporâneo. O terceiro está disponível com livre acesso no site das respectivas editoras; o segundo, na página da própria revista e das respectivas editoras; e todos eles estão disponíveis em https://usp-br.academia.edu/ReinaldoFurlan.
1) Cultura no ambiente tecnológico. Bergasse 19 – Revista de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto, v. VII, pp. 78-101, 2016.
2) For a phenomenology of the crisis of contemporary modern society. Revista Dois Pontos (UFPR), v. 19, p. 128-140, 2022. Uma tradução revista deste artigo encontra-se em Figuras da Carne, Diálogos com Merleau-Ponty (org. Freitas da Silva, C.; Furlan, R.), editoras Pedro & João e Cultura Acadêmica (Unesp), 2024.
3) A necessidade de uma fenomenologia da crise da sociedade contemporânea. In: André Dias de Andrade; Reinaldo Furlan. (Org.). A fenomenologia entretempos. São Carlos/São Paulo: Pedro & João/Cultura Acadêmica, 2022, p. 279-319.
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