Orçamento
“Sistema da dívida” transfere recursos das políticas públicas para o setor privado, denuncia na Alesp a coordenadora da Auditoria Cidadã
A dívida pública do Estado de São Paulo já foi paga várias vezes, mas o Estado continua arcando com esses supostos débitos, o que termina por justificar a aplicação de políticas de “teto de gastos”, “austeridade” e cortes de investimentos públicos por parte dos governos.
O cenário pode ficar ainda pior, adverte a coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida (ACD), Maria Lucia Fattorelli, com a generalização da prática da “securitização” da dívida, um mecanismo sem amparo na legislação tributária brasileira, mas que vem sendo adotado por governos estaduais e municipais em todo o país e é objeto de um projeto de lei que tramita no Congresso Nacional.
Fattorelli traçou um panorama da situação em audiência pública realizada no dia 19/10 na Assembleia Legislativa de São Paulo. A audiência foi convocada pelo deputado estadual Carlos Giannazi (PSOL) e contou com a presença de lideranças de entidades sindicais, especialmente as ligadas ao funcionalismo público.
A nova cartilha publicada pela ACD demonstra que o processo de endividamento público tem sido usurpado por um conjunto de mecanismos financeiros cada vez mais sofisticados que continuamente transferem dinheiro público para bancos e grandes rentistas e “geram” dívida pública. Entre eles estão a transformação de dívidas do setor privado em dívida pública, a contabilização de juros como se fossem amortização, operações sigilosas de swap cambial pelo Banco Central e a “securitização” de créditos públicos.
De R$ 50 bilhões para R$ 300 bilhões
De acordo com Maria Lúcia Fattorelli, a dívida do Estado de São Paulo, que atualmente ultrapassa R$ 303 bilhões, é composta na maior parte de débitos refinanciados pela União. A origem desse montante está ligada à renegociação das dívidas dos Estados, proposta pelo governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) no final da década de 1990.
Chama a atenção o aumento estrondoso do que o Estado “deve” (entre muitas aspas, ressaltou Fattorelli), em comparação ao valor inicial dos débitos renegociados, que alcançavam cerca de R$ 50 bilhões, sendo R$ 20 bilhões de dívida mobiliária, R$ 24 bilhões oriundos do extinto Banco do Estado de São Paulo (Banespa) e R$ 6 bilhões do também extinto banco Nossa Caixa.
“Os Estados, que tinham vários contratos com instituições, terceiros, títulos etc., deixariam de dever para esses credores e passariam a dever para a União. Qual foi o grande golpe? Foi pegar os passivos dos bancos estaduais que estavam sendo privatizados”, explicou. “Quem devia para o Banespa? Que passivo era esse? Não se sabe.”
Outro agravante é que a dívida renegociada passou a ser atualizada diariamente pelo IGP-DI, “o índice mais elevado do planeta”. Entre 1997 e 2022, o Estado de São Paulo pagou R$ 199,2 bilhões à União, mas a dívida não diminui.
Em Alagoas, ocorreu o que a coordenadora da ACD chama de “aberração”: com a privatização do Banco da Produção do Estado de Alagoas (Produban), o passivo da dívida – que era de usineiros para com o banco – foi transferido para o setor público. “Um dos Estados mais pobres do país está pagando sem parar. Por isso criei a expressão ‘sistema da dívida’, pois isso não é dívida pública”, afirmou.
De acordo com a coordenadora da ACD, a dívida pública deveria ser um importante instrumento para financiar o Estado e as políticas públicas quando a arrecadação não fosse suficiente. Porém, o chamado “sistema da dívida” não tem contrapartida em investimento e faz com que o Estado destine grande parte do seu orçamento ao pagamento de algo que não é dívida.
No caso de São Paulo, os R$ 20 bilhões referentes à dívida mobiliária eram de títulos emitidos pelo Estado, boa parte num esquema chamado de “cadeia da felicidade”, sistema fraudulento que chegou a ser investigado nas chamadas CPIs dos Precatórios da Alesp e do Senado, “que não deram em nada”, definiu.
“Isso não tem fim, e é essa dívida que tem servido de justificativa para os ajustes fiscais: cortes na saúde e na educação, reforma administrativa, privatizações. A dívida está por trás de tudo”, afirmou Maria Lucia.
Securitização “é um escândalo” e desvia recursos tributários, define Maria Lucia
A coordenadora da ACD alertou para os problemas da chamada “securitização de créditos públicos”, que tem se tornado “um modelo de negócios” que desvia recursos tributários e é inclusive objeto do Projeto de Lei Complementar (PLP) 459/2017, de autoria do ex-senador José Serra (PSDB-SP), já aprovado no Senado e agora na Câmara dos Deputados. A ACD tem conversado com parlamentares para barrar a sua tramitação.
A proposta “desvia arrecadação tributária e viabiliza a realização de operação de crédito ilegal e não devidamente autorizada”, escreve Fattorelli em artigo em coautoria com José Menezes Gomes, professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
A securitização, diz o artigo, “utiliza empresa estatal criada para operar engenharia financeira que possibilita o ingresso de algum dinheiro rápido por meio de empréstimo ilegal, porém, a um custo altíssimo e inconstitucional que afeta negativamente as finanças públicas atuais e futuras, pois o ente federado transfere a propriedade do fluxo de arrecadação e perde o controle sobre a mesma”. No caso de São Paulo, a empresa responsável é a Companhia Paulista de Securitização (CPSEC), criada em 2009.
De acordo com Maria Lucia, o esquema começa com o sacrifício dos contribuintes – “porque é um sacrifício pagar tributos”. Os pagamentos são feitos na rede bancária, mas o dinheiro, antes de ir para o ente federado, cai em contas vinculadas ao esquema. Dessas contas, um pedaço entra nos cofres públicos. Outra parte, antes de entrar nos cofres públicos, vai para os investidores privados que compraram as debêntures, as securities emitidas por esse esquema. “Essa parte que vaza por fora está ferindo toda a legislação de finanças do país. Isso é um escândalo”, prossegue.
Mecanismos driblam orçamentos aprovados pelo Poder Legislativo
A legislação determina que todos os recursos públicos têm que chegar aos cofres públicos e que do Tesouro, seja municipal, estadual ou federal, só pode sair o que está autorizado na Lei Orçamentária votada nos respectivos parlamentos. Esses mecanismos, portanto, driblam inclusive o Poder Legislativo.
A “pegadinha”, disse Maria Lucia, é que, como os recursos transitam pelas contas vinculadas e de lá uma parte segue para o ente federado, a impressão é de que todo o dinheiro foi destinado aos cofres públicos.
“Digamos que o arrecadado foi R$ 100 milhões. Caem na conta vinculada os R$ 100 milhões, que deveriam chegar aos cofres públicos. Mas, como existe esse desvio, vamos supor que R$ 50 milhões são desviados para os investidores privilegiados e só R$ 50 milhões chegam ao ente federado. Quem, inocentemente, olha apenas a entrada no balanço acredita que a CPSEC está dando R$ 50 milhões para o Estado. Só que, sem esse esquema, entrariam R$ 100 milhões em vez de R$ 50 milhões”, afirmou.
Existem muitas ilegalidades embutidas nessas operações, e por isso questionamentos já foram feitos por órgãos de controle federais, como o Tribunal de Contas da União e o Ministério Público de Contas, e estaduais, como o Tribunal de Contas dos Estados de Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco, Paraná, Rio Grande do Sul, sem que o esquema tenha sido interrompido.
Em Belo Horizonte, uma CPI realizada pela Câmara Municipal em 2017 investigou a PBH Ativos S.A., criada em 2011 e descrita em seu site como “empresa estatal que oferece suporte técnico especializado ao Poder Executivo Municipal na execução das políticas públicas, por meio da estruturação de operações de captação de recursos e modelagens de concessões e PPPs [Parcerias Público-Privadas]”.
Embora a CPI tenha sido concluída sem a votação do relatório final, por conta da sua realização foi possível ter acesso a um conjunto de contratos e outros documentos que somam cerca de 10 mil páginas.
“Os mecanismos são propositadamente apresentados de forma complexa para que ninguém perceba o que acontece. Para perceber o desvio, você tem que ler 10 mil páginas”, testemunhou Maria Lucia Fattorelli.
Na esfera pública, explicou a coordenadora da ACD, a securitização é diferente daquela feita no setor privado. Neste, quem compra os papéis emitidos numa operação assume o risco de que o crédito que originou os papéis não venha a ser arrecadado, e há portanto transferência de risco. No setor público, são emitidos papéis financeiros, porém não existe risco, pois o Estado garante a entrega do fluxo de arrecadação por fora do orçamento.
Ela chamou a atenção ainda para os riscos envolvendo esquemas de securitização em PPPs no novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado neste ano pelo governo federal, que prevê investimentos de R$ 1,7 trilhão.
Outra notícia inquietante, que qualificou como “o fim da picada, algo que não se pode aceitar”, é a intenção anunciada pelo secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, de enviar ao Congresso ainda em dezembro ou no início de 2024 uma proposta do governo federal para a securitização de recebíveis.
Prevista na Constituição, auditoria nunca foi realizada
“Por que isso acontece no Brasil? Porque quem manda aqui é o poder financeiro, que está acima de governos e acima dos poderes legislativos”, disse Maria Lucia. “O sistema da dívida faz o serviço de desviar dinheiro público, e o mercado foi muito esperto para escolher a dívida para ser o veículo do roubo, porque dívida é uma coisa que todo mundo respeita. Quem não paga dívida é caloteiro.”
Esse modelo econômico é produtor de escassez num mundo em que todos podem ter vida digna, afirma. Essa “produção de escassez humilha a grande maioria para sobrar mais para uma concentração de renda brutal”.
A coordenadora da ACD trabalhou na Receita Federal por 30 anos e disse ter visto “muitas coisas erradas [ao fiscalizar o setor bancário], mas nada tão desavergonhado como esse esquema de securitização”. Para superá-lo é necessário conhecer a realidade e mobilizar a sociedade para permitir medidas como a inclusão, na Constituição Federal, de um dispositivo para proibir esse fluxo de recursos públicos, defendeu.
Maria Lucia também participou da comissão formada pelo Parlamento da Grécia, em 2015, para investigar a dívida do país.
Outro item permanente da pauta da ACD é, como o seu próprio nome diz, a defesa da realização da auditoria da dívida, com participação popular. A auditoria do endividamento externo do país, por sinal, está prevista no artigo 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição e deveria ter sido realizada no prazo de um ano a contar da promulgação do texto — mas isso nunca aconteceu.
Em 2004, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) propôs uma Arguição de Preceito Fundamental (ADPF) ao Supremo Tribunal Federal (STF) na qual afirmava que o Congresso Nacional havia se omitido ao não formar uma comissão mista para dar conta da tarefa. Na ação, a OAB requeria que o Parlamento realizasse a tarefa prevista na Constituição.
Passaram-se 18 anos até que, em maio de 2022, o ministro do STF Luís Roberto Barroso negasse provimento à ADPF 59, sob o argumento de que “o mencionado dispositivo não se enquadra na categoria de preceito fundamental, por se tratar de disposição constitucional transitória, como observado pela Procuradoria-Geral da República e pelo Senado Federal”.
Sistema da dívida faz “luta política por apropriação de recursos públicos”, considera deputado
Na audiência da Alesp, o deputado Carlos Giannazi ressaltou que o Projeto da Lei Orçamentária Anual do Estado para o ano de 2024 (PL 1.449/2023, atualmente em tramitação na Comissão de Finanças, Orçamento e Planejamento da Casa) prevê um aumento substancial de recursos destinados ao pagamento da dívida pública — de R$ 13 bilhões em 2023 para R$ 15 bilhões no ano que vem.
“Esse é um valor que faz falta na educação, na saúde, na cultura, nas Fatecs, nas universidades, na infraestrutura”, disse.
Parte desses valores é direcionada para bancos internacionais e acaba enriquecendo cada vez mais os rentistas, os especuladores e os banqueiros, afirmou o deputado. “É um verdadeiro mecanismo de retirada do orçamento público que transfere para esses grupos econômicos recursos que fazem uma falta enorme para o financiamento das políticas públicas do Estado brasileiro.”
O deputado Antonio Donato (PT) afirmou que no fundo trava-se “uma luta política de apropriação de recursos públicos”. “Os mecanismos que o setor financeiro tem para a apropriação desses recursos são muito poderosos e tentam ser naturalizados”, considera.
Donato avalia que é “impressionante como algumas pessoas conseguem se indignar com o Bolsa-Família, que equivale a uma fração desses recursos, e não conseguem entender que existe uma ‘bolsa-banqueiro’, uma ‘bolsa-rentista’, uma ‘bolsa-mercado financeiro’ centenas de vezes maior”.
As propostas de taxação de dividendos, offshores, fundos exclusivos e outras fontes de rendimento enfrentam resistências enormes. “O certo era os milionários pagarem muito mais imposto, mas nem pagar como qualquer cidadão eles querem. É uma coisa ideológica, profunda, mas é assim que enxergam o mundo e é assim que fazem a disputa política na sociedade”, disse.
Donato relatou a experiência da renegociação da dívida da Prefeitura de São Paulo com o governo federal na gestão de Fernando Haddad (2013-2016), alguns anos depois da federalização da dívida negociada no mandato do então prefeito Celso Pitta (1997-2000). A federalização tinha “cláusulas absolutamente leoninas”, definiu o deputado. A dívida inicial havia sido paga várias vezes, mas só aumentava.
A Prefeitura fez então uma renegociação mudando alguns indicadores e recalculando a dívida, que caiu de R$ 72 bilhões para cerca de R$ 28 bilhões. O pagamento “era uma coisa que estrangulava a cidade e consumia mais ou menos R$ 3 bilhões por ano, sendo que o investimento era em média de R$ 4 bilhões por ano”, relatou.
Ao final da audiência, Giannazi fez algumas propostas de encaminhamento, como a elaboração de um projeto de lei na Alesp que obrigue o governo do Estado a realizar a auditoria da dívida pública estadual, a criação de uma frente parlamentar dedicada ao tema e o requerimento de instalação de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a dívida pública.
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