Orçamento
Iniciativa privada já incorporou renúncias fiscais concedidas pelo governo como margem de lucro
De acordo com Élida Graziane Pinto, maioria das isenções se caracteriza pela falta de transparência, desrespeito à vigência por prazo determinado e falta de avaliação das contrapartidas prometidas. Perda de receitas em 2019 é superior ao dobro do orçamento das três universidades estaduais
Sozinha, a renúncia de receitas concedida pelo governo de São Paulo ocuparia a segunda ou terceira rubrica no orçamento das políticas públicas do Estado, equivalente por exemplo aos gastos com a saúde. As isenções concedidas apenas em 2019, primeiro ano da gestão de João Doria (PSDB), chegaram a R$ 24,33 bilhões, segundo parecer do procurador-geral do Ministério Público de Contas (MPC), Thiago Pinheiro Lima apresentado ao Tribunal de Contas do Estado (TCE-SP). Esse valor corresponde a 90% das despesas da saúde no ano.
“Quando se dá uma renúncia fiscal em favor de um determinado setor, pessoa jurídica (PJ) ou conjunto de PJs, a qualquer título e prometendo geração de empregos ou transferência tecnológica, temos que mensurar profundamente os seus impactos e exigir que se cumpra a medida compensatória caso ela afete as metas fiscais. De outra forma, o Estado está abrindo mão de arrecadar e onerando o restante da sociedade em favor daquele que está sendo beneficiado”, afirmou a professora Élida Graziane Pinto, docente de Finanças Públicas na Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (EAESP-FGV), na live “Controle das renúncias fiscais e financiamento da educação pública”, promovida pelo Fórum das Seis no último dia 13/8.
A renúncia de receita precisa ser lida como uma espécie de privilégio fiscal, explicou a professora. “O debate por trás dessas escolhas e dessas prioridades não é transparente e não atende aos limites da lei”, apontou. “Para todo esperto há um otário”, disse várias vezes ao longo do debate, do qual participaram também José Marcelino de Rezende Pinto, professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP e diretor regional da Adusp, e Paulo César Centoducatte, diretor da Associação dos Docentes da Unicamp (Adunicamp) e responsável pela coordenação do Fórum das Seis.
Em São Paulo, o volume de incentivos, com as mais variadas nomenclaturas, subiu de R$ 15,65 bilhões para mais de R$ 24 bilhões de 2018 para 2019. “É muito dinheiro para a gente pensar o quanto isso custa em capacidade de expandir a oferta de serviços básicos como saúde, educação e segurança pública”, disse a professora. “Tenho acompanhado com muita atenção os dados da educação e da saúde. Quanto custa o fomento ao mercado em detrimento dessas políticas públicas?”, pergunta.
“Nada seria mais revolucionário do que cumprir a lei”
Élida citou o artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que identifica renúncia de receita como qualquer tratamento discriminatório do ponto de vista tributário que faz com que o Estado deixe de arrecadar aquilo a que faz jus. Os mecanismos podem ser isenções, créditos presumidos ou quaisquer outros para fomento ao mercado e ao terceiro setor.
O artigo cria um mecanismo de controle e contenção, exigindo uma estimativa de impacto nas metas de resultados fiscais previstas na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Ao mesmo tempo, diz a professora, a lógica do texto presume necessariamente que as medidas tenham vigência temporal limitada. Ou seja, o Estado não pode conceder por tempo indeterminado renúncia de receita, a título de isenção ou quaisquer benefícios, inclusive regimes especiais de tributação. Entretanto, de acordo com o Tribunal de Contas da União (TCU), 84% das renúncias de receitas no Brasil são dadas por prazo indeterminado.
“É como se nós tivéssemos perenizado privilégios fiscais dentro do ciclo orçamentário. Se 84% são por prazo indeterminado, frustrando a capacidade do Estado de realizar políticas públicas e frustrando a capacidade da sociedade de obter melhores serviços públicos, na verdade perenizamos a desigualdade no ciclo orçamentário, só que de forma ainda mais opaca do que a despesa contratual”, afirma.
O “segundo problema colossal no controle das renúncias de receita”, conforme definiu a docente, é o exame das contrapartidas que devem ser entregues. “Se não investigarmos se as contrapartidas foram de fato entregues, elas vão ser embolsadas como lucro privado — literalmente um espaço de apropriação privada do interesse público, permitindo aquilo que se configura na Lei de Improbidade Administrativa como enriquecimento ilícito e dano ao erário”, diz Élida.
A renúncia, lembra, é um fomento para que a iniciativa privada ou o terceiro setor executem ações que o Estado não faz diretamente, e por isso trata-se de um gasto indireto. No entanto, também de acordo com o TCU, mais da metade do contingente de renúncia de receitas no país não tem monitoramento da entrega das contrapartidas.
“Aceitamos uma promessa vazia, um engodo de que a renúncia de receita vai gerar mais emprego ou instalação de parques industriais, quando na verdade, se ninguém fiscaliza, vira literalmente incorporação de recursos públicos pela iniciativa privada”, considera. Seria preferível, defende a professora, que o Estado contratasse diretamente essa mão de obra de forma temporária, o que é autorizado pelo artigo 37 da Constituição Federal.
Uma vez instituído o benefício tributário, reconhece, é muito difícil retroceder e, num momento de crise, conseguir retirar os incentivos tributários que o mercado já incorporou como margem de lucro.
O cenário das renúncias fiscais, particularmente em São Paulo, é caracterizado por “uma profunda opacidade”, diz a professora. Na sua avaliação, a contraposição precisa estar baseada na obediência à lei, uma vez que “não temos força para bater de frente com esse poder econômico avassalador que cresce cada vez mais sobre o orçamento do Estado de São Paulo”.
“Nada seria mais revolucionário neste momento do que mandar cumprir a lei, com transparência, estrita legalidade no cumprimento dos requisitos do artigo 14 da LRF e avaliação da efetividade das contrapartidas”, afirma. “Não é possível falar em conformidade das renúncias fiscais com o ordenamento jurídico se não for obedecido esse tripé, especialmente começando, no mínimo, com o limite de vigência temporal.”
Na avaliação da professora, o parecer do MPC demonstra que o Estado não dá transparência suficiente às informações, impedindo que a sociedade tenha pleno acesso aos dados. As alegações do governo sobre a necessidade de manter sigilo são controvertidas e questionáveis, considera. “É inconcebível que o TCE continue apanas emitindo recomendações, que elas sejam descumpridas e que isso não gere consequências”, afirma.
Alguns benefícios fiscais estão vigentes em São Paulo há mais de vinte anos, o que caracteriza um evidente privilégio. Além disso, apontou Élida, a maioria das isenções é concedida por mero decreto, sem lastro de avaliação de impacto e em muitos casos sem prazo de vigência. “Para todo esperto há um otário”, repetiu.
Renúncias agravam estrangulamento financeiro das universidades
O professor José Marcelino de Rezende Pinto lembrou que as renúncias de receitas contribuem para o estrangulamento financeiro das universidades estaduais paulistas, mantidas com 9,57% da cota-parte estadual do ICMS. A cada R$ 10 bilhões dos quais o Estado abre mão, quase R$ 1 bilhão deixa de ser repassado para USP, Unesp e Unicamp.
“Aquela fonte de recursos central para as universidades vai minguando não porque elas estão gastando muito, mas porque aumenta a renúncia fiscal. De um lado há o estrangulamento e as universidades acusadas de desperdício e ineficiência, e de outro lado um Estado generoso, mas generoso com quem?”, pergunta. De 2011 a 2018, apontou, o valor repassado por aluno nas universidades caiu 35%, enquanto as matrículas de graduação e de pós-graduação só crescem.
Marcelino defendeu também a necessidade de discussão de um sistema tributário regressivo e da taxação de IPVA para jatinhos, helicópteros ou iates. “O sigilo, que é uma marca do Estado de São Paulo, é uma coisa de ditadura. Nem o TCE ou o MPC conseguem abrir essa coisa fechada que são as renúncias tributárias”, disse.
Paulo César Centoducatte lembrou que o Fórum das Seis tem promovido há muitos anos o debate sobre as renúncias. “Em todas as discussões de que participamos com secretários ou representantes do governo, a alegação sempre é de que isso é importante por causa da disputa com outros Estados. Nunca conseguimos informações sobre as contrapartidas. É uma grande caixa-preta”, criticou.
Em 2002, comparou, o total da renúncia fiscal do Estado de São Paulo representava menos do que o montante de recursos destinados às universidades — respectivamente, de R$ 4,3 bilhões e R$ 5,5 bilhões. Já em 2019, o total das renúncias alcançou um montante maior do que o dobro do orçamento das três universidades, que ficou em R$ 10,2 bilhões.
Outro problema grave é a sonegação de impostos, além dos planos de parcelamento de dívidas. “Os programas de parcelamento são na verdade um grande negócio e um incentivo à sonegação: você sonega agora e daqui a dez anos vai pagar só o nominal, sem juros e sem multa”, afirma o professor.
Orçamento deve ser disputado como principal ferramenta democrática
A professora Élida Pinto considera que o momento atual, com a crise gerada pela pandemia da Covid-19, é infeliz para o debate sobre reforma tributária. “Em vez de pensar a calamidade a partir da perspectiva civilizatória que a Constituição nos dá, estão querendo retomar a agenda da austeridade e de ajuste fiscal para 2021, de novo vilanizando os servidores públicos e o papel do Estado e atribuindo única e exclusivamente aos agentes públicos a responsabilidade pelo nosso descalabro fiscal”, disse.
Outro problema apontado pela professora é que as escolas de Direito não formam bacharéis que pensem no financiamento da ação governamental. “Elas só têm o viés privado, individual, isolado e até um tanto egoísta do contribuinte que aprende a fazer planejamento tributário para pagamentos, e não a dimensão macro, republicana, de como financiar a ação governamental na sociedade. É preciso disseminar a concepção de disputar o orçamento como principal ferramenta democrática, porque sem dinheiro não se realizam direitos”, afirmou. “O Brasil vive uma espécie de orçamento de castas”, definiu.
A professora manifestou ainda a esperança de que o Judiciário comece a se preocupar mais com as renúncias de receitas, uma vez que também será “espremido” com as restrições fiscais. “Tenho dito aos meus colegas de Ministério Público e do Judiciário, quando participo de debates com eles, que se o dinheiro da saúde e da educação chegasse com a mesma regularidade e a mesma proteção que os duodécimos do Legislativo, do MP, do TCE, do Judiciário etc., a qualidade dos serviços públicos correspondentes tanto no SUS quanto na educação básica obrigatória seria outra.”
Suposto “déficit orçamentário” em 2021 é justificativa do PL 529/2020 de Doria
No projeto de lei 529/2020, enviado na semana passada à Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) — que impõe extinção de órgãos públicos, privatizações, corte de empregos, remanejamentos, programa de demissões voluntárias, aumento das contribuições ao Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual de São Paulo (Iamspe) e confisco das verbas das universidades estaduais e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) — o governo trata também das receitas tributárias.
O artigo 24 do PL autoriza o Poder Executivo a“renovar os benefícios fiscais que estejam em vigor na data da publicação desta lei, desde que previstos na legislação orçamentária e atendidos os pressupostos da Lei Complementar federal nº 101, de 04 de maio de 2000” e também a “reduzir os benefícios fiscais e financeiros-fiscais” relacionados ao ICMS.
Na avaliação da advogada Lara Lorena Ferreira, do Departamento Jurídico da Adusp, embora ainda não haja clareza em relação à proposta, os benefícios fiscais serão mantidos, mesmo que eventualmente reduzidos.
Na apresentação do PL, os secretários de Projetos, Orçamento e Gestão, Mauro Ricardo Costa, e da Fazenda e Planejamento, Henrique Meirelles, sustentam que é necessário equilibrar as contas diante da “grave situação fiscal que ora vivenciamos devido aos efeitos negativos da pandemia de Covid-19 sobre as receitas públicas”, o que teria levado a uma previsão de déficit orçamentário da ordem de R$ 10,4 bilhões para o exercício de 2021. Como apontou o parecer do MPC, esse valor corresponde a menos da metade dos R$ 24,33 bilhões que o Estado perdeu com as isenções fiscais concedidas em 2019.
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