Privatização
“Parceria” entre USP e Bayer ignora denúncias contra o glifosato e cala quanto ao modelo de monocultura baseado em agrotóxicos (e defendido pelo agronegócio)
No último dia 31/3, a Pró-Reitoria de Pós-Graduação (PRPG) encaminhou mensagem eletrônica ao corpo docente e aos e às pós-graduandos(as) da universidade sobre a realização do evento denominado “USP Day na Bayer”, agendado para o próximo dia 4/5 na sede da multinacional alemã em São Paulo. A Bayer possui um parque industrial em Belford Roxo (RJ) e unidades em Minas Gerais, Paraná, Mato Grosso e Rio Grande do Sul.
No comunicado, assinado pelo pró-reitor Marcio de Castro Silva Filho e pelo pró-reitor adjunto Niels Olsen Saraiva Câmara, a PRPG celebra a “parceria inédita” entre a universidade e a multinacional e convida pós-graduando(a)s e docentes a participarem das atividades de 4/5, descritas como uma “feira de oportunidades”, e desse modo promoverem a “integração USP-Bayer” (confira versão publicada na página da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz- Esalq).
As justificativas apresentadas pela PRPG são as habituais nesses casos: “fortalecer a relação e interface da academia com o setor produtivo e disseminar esta atuação conjunta para que ela se multiplique, criando competências e excelência para estudantes, docentes e empresas”, “estreitar laços entre a academia e o setor produtivo”, “promover uma formação profissional qualificada e atual das(os) nossas(os) pós-graduandas(os) para a cidadania e para o mundo do trabalho, integrando diferentes saberes e demandas”.
Porém, a mensagem traz um convite específico a “alunas(os) e supervisoras(es) que tenham interesse em apresentar ideias de projetos em andamento” em algumas áreas, assim descritas: “Field Solutions”, “Regulatory Sciences”, “Farma”, “Biotech” e “Ciências de Dados”. Serão vinte vagas para times compostos por docentes e alunas(os), sendo que cada tutor deverá indicar quatro discentes, cada time “deve ser composto por participantes de, pelo menos, dois PPGs diferentes”, e aposta-se em “ideias que possam resultar em colaborações futuras com a empresa”.
O que já se relatou não deixa dúvida de que se trata de um programa de recrutamento de talentos pela multinacional, em formato inteiramente desenhado por ela, e não uma “parceria” com a universidade. Porém, na frase a seguir, a PRPG envereda pelo marketing puro simples: “A Bayer, cuja missão é ‘Bayer: ciência para uma vida melhor’, busca, nesta parceria, a diversidade de pensamento na resolução e entrega das demandas de seus clientes”.
É bem provável que este trecho tenha sido formulado pela própria empresa e encampado pela PRPG. Trata-se de um detalhe, revelador embora da subserviência acrítica com que a USP embarca em “parcerias”, supostas ou reais, com o capital privado. Ao legitimar slogans de uma multinacional, a universidade abre mão de seu papel como instituição de ensino, pesquisa e extensão, bem como de suas responsabilidades políticas perante o conjunto da sociedade.
Multinacional alemã está fortemente vinculada ao modelo agroexportador
A Bayer é uma das maiores empresas privadas do mundo e tem fortes interesses no modelo de agricultura baseado na monocultura e no uso intensivo de agrotóxicos e sementes transgênicas. O Brasil é o segundo maior mercado da Bayer no mundo inteiro, atrás apenas dos EUA. De acordo com o portal especializado Safras&Mercado, em 2021 o mercado de químicos e sementes para a soja movimentou US$ 11 bilhões no Brasil. Dado suficiente para explicar a vinculação da Bayer ao modelo agroexportador vigente no país.
Em 2018, a Bayer tornou-se ainda maior ao comprar a Monsanto por US$ 63 bilhões, passando a responder pelo passivo judicial dessa empresa nos EUA, relacionado ao uso do glifosato no herbicida “Roundup” e à sua associação com um tipo de câncer, o linfoma não-Hodgkin. Nos últimos anos a Bayer se dispôs a desembolsar cerca de US$ 10 bilhões com acordos judiciais para encerrar 95 mil processos, mas não abriu mão de continuar comercializando o “Roundup” e recusa-se a colocar rótulos de advertência nas embalagens.
Em 21/6/2022, a respeitada publicação de negócios Exame mancheteou no seu portal digital: “Suprema Corte dos EUA condena Bayer por herbicida Roundup”, explicando que, ao ignorar recurso da gigante alemã, o tribunal ratificou “decisão judicial anterior que condena o grupo a pagar US$ 25 milhões a um aposentado que atribui seu câncer a esse herbicida”.
O glifosato é alvo de grande controvérsia. Em 2015 uma agência da Organização Mundial da Saúde (OMS) concluiu que ele é “provavelmente cancerígeno”, porém expressiva parcela da comunidade de pesquisa rejeita esse veredito, além obviamente das indústrias que o produzem e dos grandes produtores rurais ligados ao agronegócio, que utilizam esse herbicida associado a sementes transgênicas resistentes a ele.
A organização norte-americana U.S. Right to Know, que se autodefine como “um grupo de pesquisa e jornalismo investigativo em saúde pública sem fins lucrativos que trabalha globalmente para expor irregularidades corporativas e falhas governamentais que ameaçam nossa saúde, meio ambiente e sistema alimentar”, elaborou o relatório Mercadores de Veneno: como a Monsanto vendeu ao mundo um pesticida tóxico, elaborado em colaboração com outros dois grupos, Friends of the Earth e Real Food Media.
Esse documento revela as operações de “grupos de fachada, professores, jornalistas e outros com que a Monsanto (agora propriedade da Bayer) contava para proteger os lucros do glifosato, apesar de décadas de ciência ligando o produto químico tóxico ao câncer, impactos reprodutivos e outros problemas graves de saúde”. A análise se baseia em “milhares de páginas de documentos corporativos internos” divulgados por ordem judicial em meio aos processos movidos contra a Monsanto por pessoas expostas ao “Roundup”, bem como em documentos obtidos pelo U.S. Right to Know por meio de solicitações de registros públicos.
Nas lavouras do Sul e Centro-Oeste, glifosato teria elevado mortalidade infantil em 5%
Países como França, Áustria e Vietnã baniram o uso do glifosato. A Alemanha estuda idêntica medida. No Brasil, porém, ele continua sendo produzido, e, como a patente da Monsanto expirou, já é utilizado em 110 diferentes agrotóxicos, amplamente utilizados na agricultura e em parques e jardins.
Um estudo realizado em 2021 em regiões brasileiras produtoras de soja, por pesquisadores da universidade de Princeton (EUA), da Fundação Getulio Vargas (FGV) e do Insper, apontou que a disseminação do glifosato nas lavouras levou a uma alta de 5% na mortalidade infantil em municípios do Sul e Centro-Oeste que recebem água de regiões sojicultoras.
“Isso representa um total de 503 mortes infantis a mais por ano associadas ao uso do glifosato na agricultura de soja”, reportou a BBC News. A Bayer considerou os resultados do estudo “não confiáveis”, e a Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja) igualmente os desqualificou.
Além do apoio institucional representado pela “parceria” com a PRPG, a Bayer tem procurado atrair estudantes nas unidades da USP, por meio da divulgação de seus programas de estágio remunerado na Esalq, na Escola de Comunicações e Artes (ECA), na Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) e na Escola Politécnica (EP).
Um deles é o chamado “Bayer University Mentoring Program” (BUMP), cujo objetivo anunciado é “auxiliar o desenvolvimento pessoal e profissional da próxima geração de pesquisadores, através de atividades personalizadas de mentoria e networking para pós-graduandos e pós-doutorandos em início de carreira”.
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