Sarau
Capital imobiliário é pivô da crise urbana
O processo segregatório está no DNA das metrópoles. O urbano é tratado pelo Estado como um negócio”. “O urbano no Brasil reflete a urbanização capitalista pelo viés particular do subdesenvolvimento, e por isso ganha ares de uma tragédia mais profunda”. A primeira frase é de Guilherme Boulos, representante do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). A segunda foi proferida pelo professor João Sette Whitaker, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP). Boulos e Whitaker protagonizaram o debate realizado no Sarau da Adusp de 2/6, intitulado “Urbanização e grandes cidades: problemas e soluções”, e concordaram quanto ao entendimento de que o maior agente da crise urbana brasileira é o capital imobiliário.
Daniel Garcia |
Whitaker e Boulos |
A apropriação predatória do espaço e da terra pelo capital, nas condições do Brasil, pautou um “urbanismo peculiar, deformado” (Whitaker) e gerou “metrópoles absolutamente inviáveis” (Boulos), à beira de um colapso em tempos de euforia nacional provocada pelo crescimento econômico.
“De maneira planejada, tendo o Estado como agente determinante, os trabalhadores foram sendo atirados para regiões cada vez mais distantes”, disse Boulos. Pela via da segregação, em São Paulo e outras grandes cidades formaram-se “vazios urbanos que se tornaram um grande negócio para a especulação”. A resistência popular ao processo de expulsões manifestou-se essencialmente por meio de ocupações urbanas: “Paraisópolis, que conseguiu resistir ao processo de higienização, hoje é quase uma ilha”.
O bairro paulistano, palco de uma rebelião juvenil em 2009, foi depois citado também pelo professor Whitaker: “Houve 52 mil revistas policiais em Paraisópolis em dois meses. Isso é estado de exceção”, protestou, referindo-se à prolongada e truculenta ocupação ali realizada pela Polícia Militar.
“Aliança perversa”
Daniel Garcia |
"Urbanização e grandes cidades" foi o tema do Sarau |
No entender do representante do MTST, existe uma “aliança perversa” entre o capital imobiliário, maior financiador de campanhas eleitorais, e o Estado, que reprime a resistência popular. “Depois das eleições se cobra a conta”, de diversas maneiras, acrescentou. Uma delas é a repressão. Outra, a gestão da cidade pela ótica empresarial, incompatível com as preocupações sociais e que termina por privatizar os serviços públicos.
Boulos mencionou o fato de que o setor imobiliário “é de ponta na mobilização de recursos”, a exemplo dos investimentos feitos nos programas de Aceleração do Crescimento (PAC) e Minha Casa, Minha Vida, ambos federais. Com a “finalidade de tirar da crise as grandes empreiteiras”, o governo teria transferido para elas R$ 33 bilhões.
O resultado final da lógica de segregação, frisou, é que se criam duas cidades dentro do espaço urbano: a central e a periférica, onde “a polícia pode matar, tudo pode”. Citou o Rio de Janeiro como “projeto-piloto da militarização das cidades”, sendo a chamada política de pacificação a senha para uma “política fascista de extermínio, de criminalização da pobreza, com a conivência cínica da mídia”.
Ele chamou atenção para a “singularidade do cenário brasileiro”, pois em várias cidades que sediarão partidas da Copa de 2014 já estariam ocorrendo despejos e remoções violentas de populações pobres. “Na África do Sul, que sediou a última Copa, dezenas de milhares de famílias foram desalojadas para a construção de estádios e até hoje parte delas mora em contâineres”.
Apartheid
“O Estado brasileiro é patrimonialista”, lembrou o professor Whitaker, citando a obra de intelectuais como Florestan Fernandes, Czaba Déak, Raymundo Faoro e Chico de Oliveira. “Nada mais patrimonialista do que a terra. O Estado foi eficaz em promover uma lógica segregadora. Temos aqui uma sociedade do apartheid sem apartheid”. Para ele, as ações estatais sempre se orientaram não pelo público, mas para privilegiar interesses privados. O urbano é a espacialização da sociedade, dos conflitos sociais, portanto teria mesmo de expressar a “hegemonia da elite rica, a absoluta hegemonia do capital”.
O professor da FAU citou diversos reflexos, no urbanismo brasileiro, do que chamou de “estado do deixe-estar social” (em contraposição ao estado do bem-estar social que vigorou em sociedades européias no século 20), e que materializam um apartheid não declarado. “Os quartos de empregadas domésticas, por suas dimensões, ferem a lei, mas são chancelados pelo poder público”, revelou. “Alphaville fere a lei 6.766/1978, não pode existir condomínio horizontal fechado; além disso, ocupa terras pertencentes ao patrimônio indígena da União; mas juízes moram lá e por isso nada acontece. Grandes clubes não pagam IPTU, embora proíbam a entrada de negros. O Expocenter Norte está em terra grilada, mas nunca vi a polícia fazendo reintegração de posse lá”.
Ele considerou “fundamental” o protesto bem-humorado da “gente diferenciada”, em favor da construção de uma estação do metrô na avenida Angélica, em Higienópolis, pois mostra que uma parcela da juventude começa a “entender o que é o público-público”, em contraste com o público-privado que sempre prevaleceu. Ainda sobre o metrô, considera absurdo não haver uma estação no campus da USP no Butantã, dada a alta concentração de pessoas.
Minha Casa…
A única divergência entre os debatedores deu-se em torno do citado Minha Casa, Minha Vida. Além das críticas de fundo que faz ao programa, Boulos apontou que o foco escolhido, ou seja, os maiores beneficiários, deveriam ser as famílias com renda mensal de zero a três salários-mínimos, pois a elas corresponde 85% do déficit habitacional brasileiro. “No entanto, somente 40% das unidades atendem a esta faixa, e muitas delas não saíram do papel”.
Whitaker, por sua vez, afirmou que do ponto de vista econômico “o programa tem razão de ser num momento de crise, pela capacidade de geração de empregos”, embora tenha “passado por cima do Plano Nacional de Habitação”. Por ser estruturado na política de alavancar o mercado imobiliário, o Minha Casa “gerou uma bolha imobiliária enorme, o preço da terra explodiu e ele drenou recursos para os proprietários”. Apesar disso, explicou, “pela primeira vez no Brasil foram aplicados subsídios consideráveis na faixa de zero a três mínimos, praticamente se paga a casa, é uma grande novidade”. Segundo ele, em termos de obras contratadas, hoje, essa faixa já responde por 55% das unidades.
Ainda de acordo com o professor, constitucionalmente a política habitacional é de competência dos municípios, cabendo ao governo federal o financiamento. Como o Estatuto da Cidade não é aplicado, o resultado dos acordos entre municípios e empreiteiras, sem nenhuma fiscalização, são “casas de péssima qualidade”, de apenas 38 m². Boulos disse que, “por incrível que pareça”, em São Paulo os sem-teto têm conseguido negociar com o PSDB a construção de casas de 60 m², em terrenos que o governo tucano desapropria.
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