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Alfredo Bosi (1936-2021)
Erudito, autor de obras fundamentais de crítica literária, defensor da universidade pública e gratuita, Bosi militava em múltiplas frentes — o presidente da Academia Brasileira de Letras o definiu como um representante da Renascença. “No plano acadêmico, formou inúmeros alunos que hoje atuam no magistério superior. No plano político, foi um militante dos direitos humanos, tendo atuado na Comissão de Justiça e Paz e no Centro de Defesa dos Direitos Humanos. Enfim, a perda do professor é absolutamente inestimável”, lamentou em nota a FFLCH
Faleceu nesta quarta-feira (7/4), aos 84 anos, vítima de complicações da Covid-19, o escritor e crítico Alfredo Bosi, Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, membro da Academia Brasileira de Letras e autor de obras fundamentais como História concisa da literatura brasileira, publicado em 1970 e atualmente na 52ª edição. Publicou ainda, entre outros títulos, O conto brasileiro contemporâneo, O ser e o tempo da poesia, Dialética da colonização, Literatura e resistência, Ideologia e contraideologia e Entre a literatura e a história.
Nascido em São Paulo em agosto de 1936, Bosi iniciou sua trajetória na USP com o ingresso na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, em 1954. Graduado em Letras Neolatinas, fez especialização em Filologia Românica e, entre 1961 e 1962, especialização em Literatura Italiana, em Florença, na Itália. Seu doutorado (1964) e a livre docência (1970) também versaram sobre literatura italiana. Ao longo de praticamente meio século (entre 1959 e 2006, quando se aposentou), lecionou literatura para muitas gerações de alunos e alunas na USP.
Foi casado com a psicóloga social e escritora Ecléa Bosi, professora do Instituto de Psicologia da USP, falecida em 2017. *O casal teve os filhos José Alfredo e Viviana, docente do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH.
Na USP, entre outras atividades, Bosi foi também diretor do Instituto de Estudos Avançados (IEA) e editor por trinta anos da revista Estudos Avançados, desde o primeiro número, em 1987. Como registrou a Revista Adusp na abertura de longa entrevista concedida pelo professor e publicada em dezembro de 2015, Bosi atuou e interveio em muitas outras áreas, entre elas política, educação, Igreja e militância contra usinas atômicas.
Ao falar sobre a persistência de determinadas concepções ideológicas no debate sobre temas cruciais para o desenvolvimento do Brasil, lembrou que a ideologia neoliberal revivida na década de 1990 na Europa e nos Estados Unidos, e que chegou também ao Brasil, é muito resistente “porque está enraizada em interesses de acumulação muito sólidos”.
“Sobretudo para os que pensam em acumulação de qualquer maneira e em multiplicação de seus lucros por meio dos jogos financeiros, a ideologia liberal é um prato cheio. Ou seja, cada um defende seu interesse, e não há lugar para o espaço público. Isso é uma coisa mundial”, afirmou. “Para essa ideologia liberal, a terceirização também é uma forma de se dispensar de uma série de obrigações trabalhistas. É um recurso que nas atividades culturais é muito perigoso e muito grave, porque elas não são atividades de lucro imediato: são atividades públicas, de resistência ao mercado. Uma universidade, por exemplo, é construída no espírito de abertura, de democracia. A palavra ‘público’ já diz tudo.”
Décadas antes, em artigo intitulado “Dez argumentos pelo ensino público”, publicado na Folha de S. Paulo em 31/8/1982, já defendera: “A cobrança de taxas a alunos ‘que podem’ [pagar mensalidades] e a concessão de bolsas a outros ‘que não podem’ resultaria em uma situação de fato discriminatória, separando ostensivamente o alunado em grupos desiguais de dinheiro e poder. É como se uma parte dos estudantes devesse à outra (direta e pessoalmente) o seu direito de estar na universidade: ‘Eu não pago, porque você paga por mim.’ Ou então, de cima para baixo: ‘eu pago para você, que não paga.’ A educação superior não é um privilégio comprado pelos ricos nem um favor prestado aos pobres, mas um direito garantido a todos porque já conquistado e pago por todos”.
“Em um regime que atenda à justiça”, prosseguiu o professor, “a redistribuição dos bens não se realiza entre indivíduos, mas mediante instrumentos fiscais de caráter proporcional, obtendo-se, em larga escala, pelos mecanismos do Imposto de Renda. Este, como se sabe, tem sido brando com as classes altas e rigoroso com as classes médias. E no balanço do nosso capitalismo selvagem o peso maior tem recaído sobre as camadas mais pobres, que sofrem inapelavelmente o achatamento salarial e o aumento do custo de vida, para o qual não há nenhum programa de ‘restituição’”.
Ideologia como forma de “levar ao extremo a particularidade do seu interesse”
Filiado à Adusp desde 1986, Bosi participou também de momentos importantes da trajetória da entidade e dos debates políticos na USP. O professor integrou a chamada “comissão de notáveis” que negociou o final da longa e histórica greve de 2000 e organizou na antiga sede da Adusp, no prédio mais tarde reocupado pela Reitoria, reuniões contra a instalação da usina Angra 3, no Rio de Janeiro, e o uso da energia atômica no Brasil.
Em 2011, num sarau realizado também na antiga sede da entidade, Bosi falou sobre seu livro Ideologia e contraideologia, abordando conceitos e histórias que passaram pela Divina Comédia de Dante e pela obra de Antonio Gramsci. “No fundo, a palavra ideologia, sobretudo a partir de Marx, tem forte acepção negativa: seria algo que pode ser desmascarado, porque é uma falsa totalização da realidade, uma pseudototalização”, disse. “Esse é o próprio sentido de Marx e Engels, n’ A ideologia alemã: há interesses particulares, fortes, que representam necessidades de certos grupos sociais, e esses grupos aprofundam a particularidade do seu interesse, a ponto de parecer que é universal. O processo epistemológico da ideologia é esse: você levar ao extremo a particularidade do seu interesse”.
Em 2013, numa sessão realizada em homenagem ao pensador e histórico militante comunista Jacob Gorender na Congregação da FFLCH, lembrou que no livro Combate nas trevas, publicado em 1987, Gorender fez o relato detalhado dos anos de chumbo da Ditadura Militar. “Não delatou ninguém, orgulhava-se de ter resistido às piores torturas, mas, com a superior generosidade dos grandes espíritos, deixa bem claro que jamais condenaria um companheiro que cedesse às brutalidades policiais e desse as informações assim extorquidas”, disse Bosi.
Vida marcada pela “luta por um Brasil mais justo”
A morte do professor foi lamentada por muitas entidades e pela comunidade acadêmica em todo o país. O reitor da USP, Vahan Agopyan, divulgou nota na qual diz que “Bosi, por seu papel protagonista no campo da ciência e da cultura, é um dos responsáveis por forjar nossa instituição para que ela se tornasse essa liderança acadêmica que é hoje, com destaque nacional e internacional”. “Sua obra merece ser lembrada por gerações e gerações, pois seu legado já está eternizado na história da USP”, concluiu o reitor.
A Diretoria da FFLCH publicou comunicado no qual se diz consternada com “o falecimento de um de seus mais importantes mestres”. “No plano acadêmico, formou inúmeros alunos que hoje atuam no magistério superior. No plano político, o professor foi um militante dos direitos humanos, tendo atuado na Comissão de Justiça e Paz e no Centro de Defesa dos Direitos Humanos. Enfim, a perda do professor é absolutamente inestimável para a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, que enlutada se solidariza com os familiares, ex-alunos e todos os colegas”, diz o texto.
O Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada ressaltou que Bosi foi “um dos intelectuais mais importantes de nosso país”, com uma vida “marcada pela dedicação à docência, à literatura e à luta por um Brasil mais justo”. Nesses tempos tão difíceis, continua, “nos lega um exemplo de integridade, generosidade e resistência, e a certeza de que suas obras, que marcaram gerações de leitores e professores, permanecerão como modelos de inteligência e sensibilidade crítica”, diz a nota emitida pelo departamento.
O Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas definiu Bosi como “mestre de muitas literaturas, pessoa gentil e generosa”, e expressou sentimentos de pesar “a Viviana Bosi, querida colega, e a toda sua família”.
“Como intelectual engajado, apoiou as lutas pela redemocratização e redução das desigualdades sociais do país, atuação iniciada com um grupo de operários da cidade de Osasco nos anos 70”, ressaltou texto publicado pelo IEA. “Algumas das outras questões a que se dedicou foram a valorização do ensino básico e seus professores, o reconhecimento da importância das tradições culturais populares, a defesa dos princípios éticos e da liberdade de pensamento e pesquisa na universidade, a conservação dos ecossistemas do país e a resistência às usinas nucleares.”
O vereador Eduardo Suplicy (PT-SP) lembrou que Bosi “ajudou a constituir dois importantes centros da resistência à Ditadura Militar e à reconstrução das liberdades democráticas: foi o presidente do Centro de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns entre 1982-1984 e da Comissão de Justiça e Paz, cujo trabalho de pesquisa foi essencial para a denúncia das torturas, prisões e mortes do início dos anos 1970 e para que, depois de promulgada a Constituição de 1988, os crimes do aparato repressivo pudessem ser investigados pela Comissão da Verdade”.
“O Brasil perde um de seus intelectuais mais proeminentes no campo da literatura, mas também um exemplo concreto de que a ciência, quando fundada verdadeiramente no interesse humano e ancorada em valores sólidos da civilidade, constrói o caminho possível para um presente justo e um futuro esperançoso”, afirmou Suplicy.
“Sou tomado de profunda emoção. Nem encontro palavras. Escrevo com olhos marejados. Bosi: um homem de profunda erudição, humanista inconteste, um homem que estudou o Renascimento e que o representou. Realizou uma abordagem nova da cultura do Brasil”, definiu o presidente da Academia Brasileira de Letras, Marco Lucchesi.
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