Universidade
Esquecendo-se da destruição que iniciou na USP, Zago agora profetiza risco de “irrelevância” de universidades
“Essa é a minha crítica: enquanto a sociedade, principalmente os jovens e as tecnologias, se desenvolvem rapidamente e mudam muito de ano para ano, as universidades são muito mais lentas e não acompanham suas mudanças”. “Eu acho que as universidades precisam mudar suas abordagens de ensino radicalmente […]. Ou a universidade faz isso rapidamente, ou ela desaparece, ela fica irrelevante”.
Esta é uma das declarações feitas ao Jornal da Ciência, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), pelo presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e ex-reitor M.A. Zago, decidido agora a assumir o papel de profeta. Repletas de impressionismos, as considerações de Zago, publicadas em 23/3 (e reproduzidas no portal da Fapesp), pintam um cenário catastrófico.
“Por exemplo, hoje os jovens são muito menos dependentes da universidade para ganhar conhecimento novo. Muitos jovens, principalmente aqueles que já tiveram uma formação melhor na sua parte básica, até veem a universidade como algo que atrasa a vida”, arriscou o ex-reitor, passando por cima das características desse “conhecimento novo” obtido, não raramente, de modo superficial, na Internet.
“Porque o diploma universitário tem um valor de mercado, mas está perdendo este valor. Cada vez mais, as empresas, quer dizer, quem fornece emprego, estão olhando para a capacitação, a habilidade do jovem, muito mais do que o diploma que ele tem escrito lá em seu currículo”. Por essa razão, avalia o ex-reitor, “já existia [antes dos cortes orçamentários] um cenário que exigiria uma mudança das universidades, o que não está ocorrendo”.
Zago propôs na entrevista um diálogo imaginário com um “jovem”, sem especificar origem social ou geográfica do hipotético personagem. À indagação “Não vai fazer uma universidade?”, tal jovem responderia “Não, porque não preciso, sou capaz de ser bem-sucedido sem uma universidade”. Como “prova” de que essa atitude prevalece na atual juventude, o ex-reitor diz que as matrículas em cursos de engenharia no Brasil todo, entre instituições públicas e privadas, caíram 40%.
“Um país que quer desenvolver tecnologias, que quer desenvolver uma indústria avançada, como é que ele vai fazer isso se os jovens não estão entrando na universidade para se formar nas carreiras tecnológicas?”, continua ele, sem avançar, no entanto, qualquer reflexão sobre a deterioração e o empobrecimento do ambiente cultural no Brasil desde o advento do neoliberalismo (na década de 1990) e particularmente após a ascensão dos grupos de extrema-direita antes e durante o último mandato presidencial (2019-2022).
Seria interessante saber o quanto incidem na subjetividade das mais recentes gerações de brasileiras e brasileiros de todas as classes sociais e regiões do país certas determinantes como o sucateamento das redes públicas de ensino e (nos últimos anos) a imposição do “Novo Ensino Médio”; o avanço avassalador da meritocracia, do empreendedorismo, da competição e de outros ideários ou discursos neoliberais fundados num individualismo exacerbado; a expansão dos negacionismos e da aversão às ciências, bem como do fundamentalismo religioso e das teologias da prosperidade. Deve-se acrescentar os efeitos da pandemia de Covid-19 sobre as condições de vida e o percurso escolar do jovem que, supostamente, ingressaria no ensino superior.
Porém, o presidente da Fapesp limita-se a diagnosticar que as universidades “precisam mudar suas abordagens de ensino radicalmente, saber […] que os cursos organizados nos moldes de 20 anos atrás não servem mais para essa juventude que está aí”, e, por outro lado, ele sugere a escuta desses jovens: “Precisamos ouvi-los mais, ver quais são as ambições deles, o que eles querem, o que eles esperam”.
Não deixa de ser admirável constatar que o burocrata que transformou a Reitoria da USP num bunker inteiramente cercado por grades; que abriu processos administrativos contra representantes discentes que lhe faziam críticas nas reuniões do Conselho Universitário; e que chamou o Pelotão de Choque da Polícia Militar para dissolver, à base de bombas de gás e balas de borracha, os protestos contra sua política de austeridade fiscal, agora sugere, generosamente, que se ouça a opinião da parcela pré-universitária da juventude.
Na entrevista ao Jornal da Ciência, Zago também lamenta que a carreira científica pague “muito pouco hoje”. Porém, esclarece, não é que os cientistas desejem enriquecer, eles tão somente almejam “uma vida decente, adequada”. No entanto, deplora, a remuneração atual é muito pequena, até mesmo, sustenta, relativamente à época em que ele próprio iniciou a carreira. “Minhas perspectivas eram muito melhores do que [aquelas que] os jovens têm hoje. A carreira acadêmica não é mais tão atrativa, não é competitiva”. Observação que merece reparos.
Na condição de reitor da USP (2014-2017) e de presidente do Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas (Cruesp, função exercida em sistema de rodízio), Zago atuou na contramão daquilo que pregou na entrevista, dando início a um prolongado arrocho salarial que fez despencar o poder aquisitivo dos(as) servidores(as) da USP, Unesp e Unicamp. Embora a justificativa apresentada para tal compressão de rendimentos fosse a situação financeira momentaneamente difícil da USP e das suas congêneres (que na verdade era reflexo de uma política de subfinanciamento), a verdade é que essa circunstância serviu como álibi para implantar um verdadeiro programa de desmonte (os denominados “Parâmetros de Sustentabilidade”), com reflexos deletérios para a carreira docente que perduram até hoje.
Zago não somente congelou as contratações por concurso público, mas deu início a um processo de contratação de docentes temporários altamente precarizados. A gestão seguinte, do reitor Vahan Agopyan (vice-reitor de Zago), criou o (mal) denominado “Programa de Atração e Retenção de Talentos” (PART), que se destinava na verdade a contratar força de trabalho altamente qualificada — pós-doutores — como Professor Colaborador III, por 12 meses, com jornada de 8 horas semanais e salário bruto mensal de R$ 1.279,15 (o PART continha tantas ilegalidades que a 9ª Vara da Fazenda Pública, em ação ajuizada pela Adusp, decretou sua suspensão), e além disso ampliou a contratação de temporários nos moldes tradicionais.
Questões como essa, todavia, não aparecem na entrevista. No entender do Jornal da Ciência, a preocupação de Zago é “embasada em dados”, citando, para começar, carta de cinco cientistas brasileiros publicada na revista Science, intitulada “Investir em pesquisadores em início de carreira no Brasil”, a qual, após observar que desde 2015 “repetidos cortes orçamentários prejudicaram os sistemas educacionais e acadêmicos do país”, conclui: “Como resultado, muitos dos 100.000 cientistas em início de carreira altamente treinados no Brasil, incluindo graduados do programa Ciência sem Fronteiras, estão atualmente desempregados ou trabalhando em empregos fora da ciência. Em 2019, enfrentaram taxas de desemprego 12 vezes superiores à média global”.
Embora a carta citada pela Fapesp finalize exortando o atual governo federal a “desenvolver programas para atrair e reter pesquisadores que se qualificaram na última década e agora podem se concentrar no desenvolvimento e crescimento econômico do Brasil”, ela dá a entender que entende bolsas de pesquisa como “empregos”. No entanto, o desemprego de mestre(a)s e doutore(a)s é estrutural no país e foi apenas agravado pelas políticas de desmonte do sistema de ciência e tecnologia.
Não basta oferecer bolsas de pesquisa, pois elas prestam-se não raramente a camuflar ou perpetuar situações de precarização das relações de trabalho, como ocorre nos EUA com os pós-doutorandos. É preciso gerar empregos no setor público para esses pesquisadores e pesquisadoras, por meio da reposição de pessoal e criação de novas vagas nas universidades públicas federais e estaduais, institutos públicos de pesquisa e empresas públicas. Sempre por meio de concursos públicos e com dedicação exclusiva. Além disso, é preciso obrigar as instituições de ensino superior privado a contratar mestres e doutores para lecionar nos cursos que oferecem.
Zago, por sua vez, isenta o capital privado de qualquer responsabilidade na questão do mercado de trabalho dos jovens pesquisadores, ao omitir o fato de que no Brasil as empresas privadas contratam um número irrisório de pós-graduandos, porque preferem, ao invés de investir em pesquisa e desenvolvimento (P&D), adquirir no exterior pacotes tecnológicos.
No único insight realmente interessante da entrevista, o presidente da Fapesp propõe uma reorientação no atual modelo de fomento. “As agências de pesquisas precisam rever suas estratégias de apoio à pesquisa, quer dizer, o apoio à pesquisa precisa ter um componente que facilite o acesso ao financiamento aos jovens pesquisadores. Nós não podemos ser extremamente rígidos, como sempre fomos, de tal forma que há sempre um privilégio dos pesquisadores mais antigos, que já têm um currículo bem estabelecido, ter maior facilidade de conseguir novos financiamentos”, admite.
Mas, como nada é perfeito, ele acrescenta: “E nós temos que abrir uma frente para jovens que ainda estão começando a sua carreira, que terminaram o doutorado recentemente e ainda não têm estabilidade, mas que podem ser competitivos” (destaque nosso). Jovens competitivos? A competição, pelo visto, está no cerne da visão de ciência de Zago, como aliás é típico do discurso meritocrático neoliberal.
Cabe, a propósito, examinar as políticas adotadas pelo ex-reitor à frente da Fapesp, portanto desde outubro de 2018. É importante destacar que, sob sua liderança, cresceu a parcela de recursos destinados pela agência de fomento ao capital privado (e particularmente ao agronegócio), em detrimento, portanto, do montante destinado às bolsas de pesquisa científica dos programas de pós-graduação e dos institutos públicos de pesquisa.
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