Universidade
Direção da Faculdade de Medicina assume como seu o curso pago “Experiência HC” (oferecido pela Fundação Faculdade de Medicina), e ainda escamoteia a finalidade real, que é o lucro privado; estudantes protestam
A repercussão gerada por um vídeo postado na rede social TikTok por duas alunas de um curso pago oferecido pela Fundação Faculdade de Medicina (FFM), contendo comentários irônicos de ambas sobre a situação clínica e o comportamento de uma paciente internada no Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas (HCFMUSP, ou simplesmente HC), tornou públicas as distorções provocadas pela privatização parcial do HC e da Faculdade de Medicina da USP.
Historicamente ligado à USP, desde 2011 o HC foi transformado em autarquia estadual para atender aos interesses da FFM, entidade privada, dita “de apoio”, que controla inteiramente a gestão daquele hospital, onde introduziu a chamada “dupla porta”, para atender pacientes particulares e de convênios, os quais têm prioridade frente aos pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS). Além disso, a FFM — dirigida por docentes da Faculdade de Medicina — criou sua própria escola, por meio da qual oferece cursos pagos, entre os quais o programa denominado “Experiência HCFMUSP na Prática”, que custa R$ 8.450 por pessoa (12 parcelas de R$ 704), mais matrícula de R$ 350.

Por ser um programa, segundo o site da escola da FFM, “desenvolvido para estudantes de Medicina no Brasil, do 4º, 5º e 6º ano, acompanharem a rotina da disciplina escolhida dentro do maior complexo hospitalar do país”, é que Gabrielli Farias de Souza e Thaís Caldeira Soares Foffano, alunas respectivamente da Universidade Anhembi Morumbi (São Paulo) e da Faculdade da Saúde e Ecologia Humana (Belo Horizonte) e matriculadas no “Experiência HC”, tiveram acesso ao InCor como estagiárias, e decidiram expor no TikTok o caso da paciente Vitória Chaves da Silva, de 26 anos. Onze dias depois da postagem, Vitória faleceu, o que acentua as implicações éticas do episódio.
No dia 12 de abril, o portal jornalístico Metrópoles publicou elucidativa reportagem sobre o caso, dando espaço à opinião do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz (CAOC), que representa os estudantes, e à posição da direção da Faculdade de Medicina.
Em nota encaminhada ao Metrópolis, a direção da unidade declarou que o programa “Experiência HC” é um “curso de extensão oficial da instituição, de curta duração, ‘voltado para estudantes externos’”, e cujo objetivo “é oferecer conhecimento técnico-científico e prático ‘que permeia o Hospital das Clínicas’”. A direção prestou ainda ainda a seguinte declaração: “As atividades são realizadas em ambientes distintos dos espaços de prática dos alunos de graduação da FMUSP, sem sobreposição de casos ou pacientes”.
Na realidade, diferentemente do que afirma a direção da FMUSP, o objetivo do curso é gerar receita que será apropriada privadamente por seus coordenadores, como ocorre em todas as fundações privadas ditas “de apoio” à USP. A escola da FFM, recentemente rebatizada como “HCX”, oferece igualmente, por valores substanciais, os conhecidos cursos denominados “MBA”. O curso à distância denominado “MBA em Gestão em Saúde-EAD”, por exemplo, custa a cada aluno R$ 21.500.
Por sua vez, o “MBA em Saúde Digital: Telemedicina de Logística e Telessaúde Integrada-EAD”, que custará a quem se interessar a quantia de R$ 24 mil, é apresentado da seguinte forma: “Adquira uma visão integrada e aprofundada de diversos aspectos críticos da gestão em saúde. Aulas teóricas e vivência prática amparada por grandes experts do HCFMUSP e do mercado. A escolha ideal para quem busca ser protagonista no avanço da saúde no país”. Da saúde privada, certamente.
Houve “ordens de cima para priorizar alunos pagantes” em cirurgias, diz CAOC
O Centro Acadêmico Oswaldo Cruz (CAOC), dos estudantes da Faculdade de Medicina, tem denunciado sistematicamente o programa “Experiência HC” por várias razões, entre as quais os prejuízos causados à formação dos alunos regulares do curso de Medicina da USP (vide Revista Adusp 68, p. 85-86). “Também houve casos em que, durante práticas de cirurgia, os alunos de fora ajudaram no procedimento e os ‘da casa’ [USP] ficaram somente olhando e fazendo anotações. Um professor disse que isso aconteceu, por ‘ordens de cima’, para priorizar os alunos pagantes”, declarou ao Metrópoles um dirigente estudantil.
O incidente midiático que violou a privacidade da jovem Vitória Chaves da Silva foi abordado pelo CAOC em seu perfil na rede social Instagram. “Recentemente, duas alunas do programa ‘Experiência HCFMUSP na Prática’ expuseram informações sensíveis de uma paciente do InCor, tratando suas dores de forma desrespeitosa. A situação resultou em assédio à família da paciente, configurando grave quebra de sigilo”, protesta o texto postado pelo centro acadêmico.

“Ética e profissionalismo são essenciais na formação médica, e a falta de um critério seletivo para estágios no HCFMUSP levanta preocupações sobre a segurança dos pacientes. A Faculdade de Medicina da USP deve garantir que todos os envolvidos mantenham um compromisso ético, respeitando a dignidade dos pacientes”, acrescenta o CAOC. “Pedimos um posicionamento firme contra a manutenção do programa, pois a saúde não pode ser tratada como objeto de mídia!”.
A postagem no Instagram é completada por um vídeo que traz manifestações coordenadas de diferentes dirigentes da entidade estudantil. “O vídeo [postado por Gabrielli e Thaís no TikTok] por si só contém falas lamentáveis, e é uma situação completamente inaceitável. Mas para além disso precisamos também expor o programa pelo qual essas alunas tiveram acesso ao complexo hospitalar”, comenta uma diretora do CAOC.
“O Experiência HC tem como objetivo mercantilizar a medicina. Que mediante o pagamento de uma mensalidade, você consiga fazer o estágio de um tempo letivo aqui no Hospital das Clínicas, que é o maior complexo hospitalar não só do Brasil mas da América Latina, que conta com casos e pacientes de alta complexidade. Por isso também a sensibilidade desse assunto”, destaca outro diretor.
O reitor Carlos Gilberto Carlotti Jr., que pertencia ao corpo docente da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP), transferiu-se em 2024 para o quadro da FMUSP. O Informativo Adusp Online indagou à Reitoria se ela pretende tecer algum comentário sobre o programa “Experiência HC”, mas não houve manifestação a respeito até a publicação desta matéria. Caso chegue, o texto será devidamente atualizado.
Fortaleça o seu sindicato. Preencha uma ficha de filiação, aqui!
Mais Lidas
- Direção da Faculdade de Medicina assume como seu o curso pago “Experiência HC” (oferecido pela Fundação Faculdade de Medicina), e ainda escamoteia a finalidade real, que é o lucro privado; estudantes protestam
- Atendendo a pedido da Adusp, CPA e CAD prorrogam prazo para inscrições na Progressão Horizontal
- Adusp publica “Cartilha sobre Direitos do Corpo Docente da USP”
- Direitos do corpo docente da USP
- Após protesto público do professor Paulo Sérgio Pinheiro, USP recua e cancela feira internacional que teria a participação de Israel