Uma reformulação do Sistema Nacional de Pós-Graduação (SNPG) foi proposta pelo Parecer 331/2024 da Câmara de Educação Superior (CES) do Conselho Nacional de Educação (CNE), aprovado em junho de 2024. Durante reunião realizada em 30 de novembro de 2024, o parecer foi analisado pelo GT Ciência e Tecnologia do Andes-Sindicato Nacional, que identifica na proposta uma tendência à “valorização do mestrado e doutorado profissional” em detrimento do mestrado e do doutorado científicos: “A ideia é formar para o mercado e não para a docência e pesquisa”, conclui o GT.

“As orientações apontam para a necessidade de articulação com o setor empresarial e estimular o empreendedorismo e buscar parcerias”, afirma o GT C&T do Andes-SN, citando o parecer, segundo o qual “é necessário ampliar a interação com outros integrantes da sociedade, como as empresas, organizações sociais, administração pública e privada, além de estimular a cultura do empreendedorismo”, além de “fortalecer a colaboração entre as instituições formadoras de pessoal de alto nível na pós-graduação e as empresas já existentes, assim como a geração de novas empresas [startups?] destinadas a explorar economicamente os resultados da pesquisa e estimular mecanismos de proteção, valorização e transferência de conhecimento e tecnologia entre academia e o setor empresarial” (p. 6 a 10).

Outra faceta da nova política proposta é a desejada prioridade para investimentos em doutorado e pós-doutorado em relação ao mestrado e, ainda, a desnecessidade de que o mestrado seja um pré-requisito para cursar doutorado, como se fossem investimentos contrapostos um ao outro. Essa concepção é assim exposta na p. 10 do parecer: “Ao mesmo tempo em que o Mestrado é um nível importante na formação pós-graduada, é preciso difundir a compreensão de que não é mais necessário considerá-lo como pré-requisito para o Doutorado. É também fundamental que haja uma priorização do investimento no Doutorado e ampliação de apoio ao pós-doutorado”.

O parecer 331/2024 da CES/CNE também propõe a “flexibilização de financiamento” do SNPG, o que na verdade, segundo a leitura do GT, deve ser entendido como “busca de financiamento privado, para formar pessoas com perfil que interesse às empresas, ao mercado”. O parecer sustenta, na p. 12, que a “colaboração entre os setores público e privado tornou-se mais aparente devido ao interesse do governo em explorar a pesquisa para a competitividade econômica”, do que decorrer a afirmação de que é “preciso diversificar e flexibilizar o financiamento”, de modo a permitir a “indução de novos caminhos para a formação de pessoal”.

O parecer chega a sugerir um “novo modelo de financiamento”, conforme se lê também na p. 12: “Instituições inovadoras e revigoradas interagindo com diferentes atores podem gerar novos modos de fomento destinados à formação de alto nível, necessária para que as organizações públicas e privadas se mantenham relevantes. As empresas, os governos, a academia e a sociedade civil organizada precisarão de profissional com perfil diferente daquele que temos no presente. Um novo modelo de financiamento deve apoiar o planejamento institucional, o atendimento de metas e as mudanças sustentáveis na pós-graduação”.

Outro aspecto questionável da proposta identificado pelo GT C&T do Andes-SN é a crítica ao tempo de titulação, vocalizada aliás pelo reitor da USP quando da divulgação do protocolo de adesão das universidades paulistas ao “novo modelo” e, mais recentemente, pela presidenta da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Denise Carvalho, em entrevista concedida ao jornal Estadão: “Formamos doutores com quase 40 anos, quando nos Estados Unidos eles se formam antes dos 30”, foi a declaração puxada como manchete.

A suposta morosidade seria resolvida por meio do doutorado direto sem pré-requisito de mestrado. “Ao longo das últimas décadas, o tempo para a titulação do pesquisador brasileiro cresceu significativamente e este tempo excessivo está diretamente relacionado com a mudança na demanda para pós-graduação no país”, diz o parecer da CES na p. 13. Por isso, de acordo com o Estadão, “a Capes vai premiar com uma bolsa de pós-doutorado os programas de qualquer universidade cujos alunos tiverem condições de ingressar no doutorado mais rapidamente”. Ou, como explica singelamente a presidenta da Capes: “A gente vai contar esse tipo de atitude para avaliação porque isso mostra que o programa tem maturidade, quando tem um número de pós-graduandos que pode passar do mestrado para doutorado antes. Isso mostra que a pesquisas ali estão dando muito certo”.

O parecer 331/2024 da CES/CNE segue a mesma linha de raciocínio. “Há diversas razões para a diminuição da demanda para a pós-graduação stricto sensu e que podem ser distintas entre as áreas de conhecimento. Entre elas, uma característica que chama a atenção é o tempo para titulação. No Brasil, a idade média no momento da defesa da tese é de aproximadamente 38 (trinta e oito) anos. Nos EUA, essa idade é de 28 (vinte e oito) anos. É importante observar, entretanto, que o tempo médio de duração do Doutorado e do Doutorado direto é semelhante: 4,5 anos; o Doutorado direto não adiciona tempo extraordinário ao processo formativo”, afirma.

Contudo, no entender do GT C&T do Andes-SN o que está por trás dessa visão e da correspondente proposta é a concepção de uma formação aligeirada: “A defesa do fim dos mestrados como pre-requisitos para o doutorado é uma aposta arriscada no aligeiramento da formação de doutores”.

No tocante às condições de adesão das instituições de ensino superior (IES) ao “novo modelo”, o GT critica o que chama de “favorecimento às instituições consideradas consolidadas”, que são aquelas que possuam, no mínimo, dez programas com conceito 6 ou 7: “hoje isso representa 17 universidades, destas, 14 no Sul/Sudeste, 2 no Nordeste e uma no Centroeste”.

Na sua “síntese conclusiva”, o GT adverte que o parecer 331/2024 da CES/CNE envolve uma profunda reformulação do SNPG e portanto impactará a atual pós-graduação. “O parecer propõe mudanças radicais, especialmente em relação à finalidade dos programas, ao padrão de financiamento e à avaliação individual dos discentes e do programa. Isso mudará completamente o perfil dos programas e implicará mudanças profundas na regulação” dos PPGs, destaca.

“O foco passará a ser a qualificação, o desenvolvimento de habilidades e competências por meio de mestrados e doutorados profissionais. A produção de conhecimento e ciência voltados para enfrentamento dos problemas sociais ficará relegado ao segundo plano”, adverte ainda o GT.

“A defesa de uma gestão com maior autonomia para as IES consolidadas, que poderão criar, transformar os seus cursos, fundi-los, integrá-los em redes e compartilhamento é um fator de desmonte do SNPG, valorizando os programas mais desenvolvidos e desmontando os que estão em processo de estruturação”, critica o GT.

“A defesa da formação voltada para o mercado e empreendedorismo é uma completa negação do direcionamento atual do SNPG, pelo menos em termos oficiais. Defender que o financiamento da pós-graduação não deve ser automático, mas ter como prioridade os cursos de doutorado e pós-doutorado, é um caminho inverso à universalização da pós-graduação, apostando em maior elitização dos cursos de doutorado”, arremata (confira aqui a íntegra do documento do GT C&T do Andes-SN).

“De que vale a formação acelerada de profissionais que acabam desempregados?”

“As conjunturas econômica, histórica, política e de desenvolvimento dos dois países [Brasil e EUA] são muito distintas, tornando inviável tirar conclusões significativas apenas com base na diferença nos tempos de formação de doutores”, adverte o professor Sérgio Paulo Amaral Souto, responsável pelo Laboratório de Física Aplicada e Instrumentação da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos (FZEA), convidado pelo Informativo Adusp Online a opinar sobre a declaração da presidenta da Capes e sobre o “novo modelo” proposto pela CES/CNE.

Um ponto crucial, diz Souto, é a capacidade dos bolsistas de se dedicarem integralmente aos estudos. “Nos EUA, muitas vezes as bolsas oferecem o suficiente para garantir uma sobrevivência tranquila, enquanto no Brasil a precarização das condições de financiamento de bolsas de estudos leva a um cenário que pode ser descrito como ‘uberização’ da pós-graduação, pois muitos estudantes precisam diversificar suas atividades para complementar a renda”. Por outro lado, o financiamento dos projetos de pesquisa vinculados aos pós-graduandos frequentemente enfrenta desafios, sendo comum, em muitos casos, a completa ausência de recursos financeiros.

No Brasil, o mercado não acadêmico para doutores é extremamente restrito, em contraste com o que ocorre nos EUA. “Essa disparidade se deve, em parte, à demanda das indústrias de alta tecnologia nos EUA, que impulsiona a necessidade de formar um número significativo de doutores. Isto reforça a distinção entre as realidades da pós-graduação brasileira e norte-americana”, destaca o professor da FZEA.

Para ele, falta a pós-doutorandos(as) no Brasil, muitas vezes, uma vivência cultural, artística e uma formação geral mais ampla. “Esse cenário é evidente no meio acadêmico brasileiro, onde muitos pesquisadores e docentes são essencialmente técnicos, sem uma perspectiva intelectual mais abrangente. Ter vivências profissionais, sociais e culturais mais amplas é fundamental para acadêmicos, pois enriquece sua formação e contribui para uma atuação mais completa e integrada em qualquer área que decidam atuar”, sustenta Souto. “Consequentemente, um percurso mais longo de formação de futuros acadêmicos não é necessariamente ruim. Devem-se levar em conta os ganhos de vivência pessoal e profissional não acadêmica”.

Ao contrário, uma formação aligeirada dos pós-graduandos tende a fortalecer a imagem caricatural do cientista em sua torre de marfim, o isolamento do pesquisador em relação à sociedade. “O que se pretende com esta formação rápida de pós-graduandos é a pouca diversidade, mesmo no meio puramente acadêmico. Pesquisadores com percurso acadêmico restrito a uma única linha de pesquisa, por vezes a um único aspecto em uma linha de pesquisa, o que não contribui para o espírito crítico, independente, diverso, multidisciplinar, ousado, questionador, criativo, qualidades desejáveis para desenvolvimento de novos paradigmas na ciência”, enfatiza o docente.

“A busca por reduzir o tempo de formação de doutores pode incentivar uma trajetória acadêmica linear, na qual o futuro pesquisador realiza a iniciação científica ainda como aluno de graduação, segue para o mestrado e, posteriormente, para o doutorado, no mesmo laboratório, provavelmente com o mesmo orientador. Esse modelo promove uma continuidade de pensamentos e práticas de gestão científica que, por sua homogeneidade, limita a diversidade e a inovação. Quando os pesquisadores formados perpetuam os mesmos métodos e ideias dentro do mesmo ambiente científico, sem a inclusão de perspectivas externas, ocorre o que chamamos de ‘endogamia intelectual’, um fenômeno que dificulta a evolução e o progresso no campo científico”, adverte.

“É necessário refletir sobre o contexto geral. Mais importante que o tempo de formação, o dimensionamento da pós-graduação nacional está adequado? Essa deveria ser uma preocupação central. A maioria dos doutores formados no país é compelida a participar de um, dois, três programas de pós-doutoramento. O pós-doutorado, nesse contexto, se tornou a ‘uberização’ do cientista. De que vale uma formação acelerada para formar profissionais que acabam desempregados, precarizados, acumulando pós-doutorados sem perspectivas reais?”, questiona Souto.

“Se estamos formando um número excessivo de doutores sem espaço no mercado fora da academia, isso é um sinal de alerta para a economia do país. É urgente investir mais em tecnologia, em produtos com maior valor agregado, e diminuir o peso relativo das commodities na economia nacional. Esse esforço só fará sentido se alinhado a uma realidade econômica que ofereça oportunidades e utilize de forma estratégica o conhecimento científico produzido”, propõe o professor da FZEA. “O desejável é uma política formativa de pós-graduação em harmonia e sinergética com um planejamento de evolução econômica do país, calibrando o tempo e o número de doutores formados à realidade socioeconômica do Brasil”.

Finalmente, aponta Souto, “é inquestionável a relação entre tempo investido com abrangência e qualidade do trabalho de pesquisa produzido”, porque, salvo casos fortuitos e excepcionais, pesquisas científicas relevantes implicam um grande investimento de tempo. “Desta forma, para redução de prazos e aceleração da formação de pós-graduandos, o nível de exigência para as teses e dissertações deveria ser diminuído, o que contrasta com exigências cada vez maiores nos cursos de pós-graduação, alguns exigindo até dois artigos publicados em revistas internacionalmente indexados para defesa de tese”, assinala.

“Não raramente membros de bancas de dissertação ou teses criticam que o trabalho apresentado está incompleto e superficial, e que deveria ter sido complementado por mais uma série de medidas, simulações e/ou análises. Essa dupla exigência, rapidez e completude, é contraditória e incoerente, principalmente quando advinda daqueles que advogam pela maior brevidade na formação de pós-graduandos”.

“Uma visão utilitarista e superficial do que são as disciplinas”, diz Lincoln

“É um projeto que serve para uma universidade da periferia do mundo que se contenta em consumir e não em produzir conhecimento. Itinerários, trilhas formativas, competências são eufemismos para diminuir gastos com pesquisas demoradas que exigem necessariamente um lento aprendizado. Há uma visão utilitarista e superficial do que são as disciplinas”, declara ao Informativo Adusp Online o professor Lincoln Secco, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP).

“Toda essa mudança é ruim por ao menos três razões”, prossegue. “1. Não prevê bolsas para todas as pessoas que passarem diretamente ao doutorado; 2. Acelera a produção de diplomas para um mercado de trabalho em crise para a maior parte das áreas de pesquisa; 3. Não estabelece diferenças entre ramos do conhecimento. Uma tese de matemática pura pode demandar muito mais tempo do que ocorre em outras disciplinas”.

O modelo, mesmo dissimulado, de um doutorado profissional não serve para todas as áreas, adverte Lincoln. “A sociedade precisa decidir se ainda quer cultivar também a pesquisa desinteressada, sem aplicação prática imediata, ou se prefere reduzir todos os seus valores e ações ao imperativo do mercado. Aliás, a História da Ciência mostra que até avanços tecnológicos surgiram da mais pura especulação filosófica, por exemplo”.

A flexibilização curricular que integra essa proposta é “precarização”, avalia a professora Carmen Sylvia Vidigal Moraes, do Departamento de Administração Escolar e Economia da Educação da Faculdade de Educação (FE). “No campo das ‘áreas duras’, como se diz, é um alinhamento ao mercado, uma adequação às demandas do mercado. Quer dizer: ‘Vamos tornar a pós-graduação mais atraente’ etc. Ao mesmo tempo, as humanidades perdem, são precarizadas”, aponta.

“Os programas com notas mais elevadas é que poderão optar, os outros não. É um disparate, é um acinte tudo isso”, protesta a docente da FE. “Muito preocupante, porque são as universidades paulistas como um todo. É uma coisa inacreditável o que a USP está fazendo. A gente tem que problematizar essas questões, colocar para os nossos colegas”, propõe.

Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais da Universidade Federal do Pará (UFPA), Roberto Oliveira Araújo de Santos Jr. rejeita o novo modelo proposto pela Capes. “Recentemente, na autoavaliação do programa, que é nota 5, veio uma avaliadora que trabalha com ESG, governança sustentável do meio ambiente. A avaliadora introduziu esse assunto, da formação voltada para as necessidades da sociedade. Mas quando se diz ‘necessidades da sociedade’ geralmente são necessidades de inserção no mercado e para o mercado. Ela vinha falando que os alunos sentem essa necessidade de entrar no mercado etc.”, relatou. “Nossa resposta, minha e de mais dois colegas, é que temos também a fornecer, sobretudo para essas questões de sustentabilidade, meio ambiente etc., a possibilidade de os alunos terem uma visão crítica dessas coisas, uma visão crítica inclusive das soluções empresariais”.

Um exemplo desse tipo de solução, explica Santos Jr. ao Informativo Adusp Online, são os créditos de carbono, que refletiriam a tendência atual do capitalismo a se basear na “simulação do valor”, como diz o pensador Robert Kurz. “Temos que dar para os alunos a possibilidade de criticar esses modelos que vêm do mercado e que se impõem, cada vez mais, como a solução para todos os problemas sociais. Foi o que a gente disse à avaliadora”.

O professor da UFPA é favorável a uma integração da pesquisa com as necessidades da sociedade, vista como coisa pública ou bem público. “Uma integração da pesquisa médica com o Sistema Único de Saúde (SUS) seria maravilhosa. Planos privados de saúde, porém, não farão pesquisa”, exemplifica. “O capital é para ter lucro, os acionistas querem lucro, e lucro imediato. Um modelo de colaboração com a sociedade justamente não pode ser empresarial, deve passar por toda uma série de estruturas organizativas públicas que oferecem serviços para a sociedade em troca dos impostos e do trabalho dessas pessoas”.

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