Reitor demite 26 marinheiros do Instituto Oceanográfico, inclusive tripulante do “Besnard” na histórica viagem inicial à Antártida, e quer terceirizar as novas equipes
Tripulantes no convés do "Alpha Crucis", em Santos: resistindo à truculência e ao desrespeito da Reitoria (foto: Solange Lopes Veloso/Sintusp)

A súbita decisão do reitor Carlos Gilberto Carlotti Jr. de mandar demitir sumariamente vinte e seis funcionários celetistas do Instituto Oceanográfico (IO), tripulantes das embarcações de pesquisa “Alpha Crucis” e “Alpha Delphini”, vários deles com décadas de serviços prestados à USP, ampara-se num parecer da Procuradoria Geral datado de quase dois anos atrás (29 de junho de 2021) e referente a um processo administrativo iniciado em 2009. Como agravante, em retaliação à recusa dos trabalhadores a assinar uma intimação emitida pela universidade, chegou a suspender o pagamento dos salários de abril a que eles faziamm jus, recuando posteriormente.

Assembleia realizada no IO nesta quinta-feira (4/5), com expressiva participação de estudantes, funcionário(a)s técnico-administrativos e docentes, decidiu paralisar a unidade nesta sexta-feira (5/5), realizar um ato e concentração às 13 horas e sair em passeata até a Reitoria, às 14 horas, para entregar uma carta em defesa dos tripulantes e em protesto contra as abusivas medidas que vêm sendo tomadas contra eles. A assembleia foi precedida por reuniões com o diretor do IO, professor Paulo Yukio Gomes Sumida, que anunciou a convocação de uma reunião extraordinária da Congregação para discutir as demissões.

Solange Lopes Veloso/SintuspSolange Lopes Veloso/Sintusp
Hoje contramestre, Juraci de Oliveira ingressou aos 19 anos na USP e trabalhou no “Professor W. Besnard”

Entre os tripulantes do navio “Alpha Crucis” encontra-se o experiente contramestre Juraci de Oliveira, de 59 anos, que foi contratado pela USP em 1982, quando tinha 19, e participou da primeira viagem do lendário navio oceanográfico “Professor W. Besnard” à Antártida. Prestes a completar quarenta anos como funcionário da universidade, Juraci disse ao Informativo Adusp que considera “vergonhosa” a atitude da Reitoria. A nosso pedido, ele mostrou seu holerite, inscrição no Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e suas carteiras de identificação funcional.

O Sindicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp) destaca o fato de que os marinheiros do IO “sempre receberam salários com holerites emitidos pela universidade, têm registro na carteira profissional de contrato com a USP, que recolheu mensalmente o FGTS na CEF [Caixa Econômica Federal] em seu nome, fornecendo anualmente aos trabalhadores declaração de rendimentos para o Imposto de Renda”.

Contudo, eles não recebiam os benefícios sociais recebidos por quem é concursado(a), o que levou o Sintusp a reivindicar que passassem a recebê-los. “No entanto, ao invés do atendimento das reivindicações, a Reitoria concluiu um processo que estava parado há tempos e decidiu por aplicar as demissões sumárias, [inicialmente] sem pagamento do mês de abril trabalhado e outros direitos trabalhistas”, diz o sindicato.

Trata-se do processo administrativo 2009.1.27254.01.1, que a princípio era uma solicitação do diretor de Finanças da universidade ao Departamento de Recursos Humanos (DRH), para que os funcionários do navio oceanográfico “Professor W. Besnard” fossem incorporados à folha de pagamentos da USP, “a fim de que sejam regularizados os pagamentos, as informações para a DIRF (declaração de Imposto de Renda retido na fonte) e SEFIP (Sistema Empresa de Informações à Previdência Social) e, consequentemente, sejam evitados ‘possíveis problemas com a fiscalização do Tribunal de Contas, Ministério do Trabalho e afins’” (destaques nossos).

O problema legal existente é que os marinheiros do IO foram contratados por intermédio de uma empresa, a agência SM Administradora de Serviços, que na prática funcionava como preposto da USP, além de recrutadora da força de trabalho. A SM recebeu procuração do IO para efetuar as contratações desses trabalhadores, como é possível constatar nos registros lançados nas respectivas carteiras de trabalho. E como se verá adiante, embora eles tenham números funcionais próprios e recebam legítimos holerites da USP, a julgar por despacho do reitor ao final do processo, cabia também à SM o papel de intermediária no pagamento das verbas salariais.

Ao todo, processo administrativo ficou parado na PG-USP por 11 anos

Carteiras funcionais de Juraci no IO e na USP

Em agosto de 2009, foram anexados aos autos do citado processo uma relação de vinte e quatro tripulantes do “Besnard” e outra de cinco funcionários a serviço da Escola Politécnica (estes últimos “contratados por verba de convênio”). Depois disso, porém, a julgar pelo parecer da PG-USP emitido em 29/6/21, assinado pelo procurador Salvador Ferreira da Silva, mudanças organizativas internas desse órgão fizeram com que o processo permanecesse paralisado até o primeiro semestre de 2016, ou seja: por quase sete anos.

Quando o processo voltou a se movimentar, conforme relato do próprio parecer houve tentativas da Reitoria, à época, para resolver o problema legal: “foram realizadas diversas reuniões com a participação da Administração central e do Instituto Oceanográfico, visando avaliar e regularizar a situação dos funcionários contratados e administrados pela empresa SM Administração Ltda. para atuarem nos navios do IO. Porém, [o] tempo transcorreu e não houve uma solução”.

O parecer admite, então, que o processo voltou a sofrer uma dilatada interrupção, desta vez por mais quatro anos, pois verificou-se “uma intercorrência no registro do novo sistema de gestão de processos desta Procuradoria, ocorrido na transição dos sistemas de gerenciamento dos processos físicos para o sistema digital no início de 2017 (Sistema Lawyer para o SAJ) e somente foi percebida neste momento em razão de outra consulta encaminhada em abril de 2021 pelo DRH”. Ou seja: depois de dois longos intervalos, o processo só foi retomado por acaso.

No mérito, o parecer da PG-USP é categórico: exceto um, todos os trabalhadores relacionados nesse processo foram admitidos pela USP após a promulgação da Constituição Federal (CF) (5/10/1988) e portanto seu ingresso deveria ter ocorrido por meio de concurso público, conforme exigência do artigo 37 da CF, incisos I e II, o que não aconteceu, assim como não foi respeitada a exclusiva competência estatutária do reitor “para estabelecer e cessar as relações de emprego” na universidade.

O procurador Ferreira da Silva conclui, portanto, que os contratos em questão são nulos, como estabelecem os dispositivos citados da CF e particularmente o parágrafo segundo do artigo 37, segundo o qual a “não observância do disposto nos incisos II e III implicará a nulidade do ato e a punição da autoridade responsável, nos termos da lei”. É bem provável que o reitor tenha se sentido ameaçado pelo teor desse parágrafo e, assim, tenha resolvido agir sem o devido respeito aos serviços prestados à USP pelos marinheiros do IO, força de trabalho indispensável na realização de importantes pesquisas financiadas por órgãos públicos como Fapesp, CNPq e Petrobras.

Seja como for, no seu despacho datado de 18/4, Carlotti Jr. acata a recomendação da PG-USP e determina “que seja cessado, imediatamente, qualquer tipo de repasse de valores a título de pagamento à SM Administração Ltda. ou ao pessoal contratado por intermédio da referida empresa”; que o IO “inicie imediatamente o processo de extinção do contrato” firmado com aquela empresa; e que “se dê seguimento, em paralelo, ao procedimento de extinção dos contratos de trabalho de todos aqueles que, sem ter prestado concurso público para ingresso nos quadros da USP nem ter sido formalmente comissionados nos termos da legislação, tenham tido suas carteiras de trabalho irregularmente assinadas ou obtido qualquer tipo de registro funcional junto à universidade por intermediação da SM Administração Ltda”.

Soa decorativa e distante da realidade, nesse documento reitoral, a observação para que na aplicação de tais medidas sejam observados “o contraditório” e “a ampla defesa”, uma vez que o processo foi encerrado sem que os marítimos e o Sintusp tenham sido ouvidos. Por outro lado, a redação dada pelo reitor parece incriminar os trabalhadores e sugerir que são os eles os responsáveis pelo modelo de contratação adotado à época pelo IO. Há referência de Carlotti Jr. a uma “comissão sindicante” que ratifica o parecer da PG-USP e que “confirma, após minuciosas diligências, a existência de irregularidades no processo de contratação de operação das embarcações”, mas o Informativo Adusp não teve acesso aos demais documentos.

Ao invés de abrir concurso público, Carlotti Jr. manda IO licitar terceirização

O reitor determina ainda, no mesmo despacho, que o IO “dê seguimento, imediatamente, a nova licitação de contratação de serviços de operação de embarcações, por meio da qual se selecione empresa que, ela própria, assuma os encargos trabalhistas dos tripulantes na qualidade de empregadora, dando andamento ao processo 2021.1.12799.01.0”, o qual se encontraria no IO desde março de 2022, segundo o sistema Proteos.

Portanto, ao invés de, minimamente, orientar a contratação de equipes de tripulantes por concurso público, Carlotti Jr. prefere terceirizar o serviço, como se essa opção fosse isenta de problemas e de irregularidades e apesar de recorrentes turbulências na relação entre a USP e empresas que alocam força de trabalho para a universidade.

Apesar das pressões da Reitoria, que chegou a deslocar agentes da Guarda Universitária para o local em que as embarcações do IO estão atracadas em Santos, os trabalhadores permanecem dentro delas. Isso é necessário tanto para manter a integridade física do “Alpha Crucis” e do “Alpha Delphini”, como para evitar que sejam cassadas suas licenças de navegação.

O caso vem repercutindo na mídia comercial. Além de reportagem levada ao ar em 4/5 pela TV Tribuna, maior emissora da Baixada Santista, em 5/5 foram publicadas matérias na Folha de S. Paulo e no portal jornalístico Metrópoles. A Diretoria da Adusp emitiu nota de repúdio ao comportamento da Reitoria no episódio.

EXPRESSO ADUSP


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