Sob Tarcísio, repressão policial enquadra manifestações contra aumento de tarifa e a favor do passe livre como tentativa de “abolição violenta do Estado de Direito”
Mesmo com repressão policial, manifestantes fizeram queima simbólica de catraca. (Foto: Paulo Pinto/Agencia Brasil)

A Justiça determinou que as cinco pessoas que permaneciam detidas desde esta quinta-feira (18/1), por participarem de manifestação no Centro da capital, organizada pelo Movimento Passe Livre (MPL) e convocada por vários diretórios estudantis para protestar contra o aumento das tarifas de transporte público em São Paulo, fossem liberadas mediante o pagamento de fiança de R$ 1 mil cada uma. A audiência de custódia ocorreu no início da tarde desta sexta-feira (19/1) no Fórum Criminal Ministro Mário Guimarães, na Barra Funda, em São Paulo.

Os manifestantes, com idade entre 18 e 25 anos, foram presos em mais uma ação marcada pela violência e truculência da Polícia Militar, que deslocou efetivos da Tropa de Choque, da Força Tática e do Batalhão de Ações Especiais de Polícia (Baep) para reprimir o ato organizado pelo MPL. Outras duas pessoas detidas foram liberadas de madrugada. O número de soldados era significativamente maior do que o destacado para o ato do dia 10/1, quando foram presas 25 pessoas, oito delas menores de idade.

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Ação violenta do Baep prende jovem em ato organizado pelo MPL

De acordo com relato divulgado em nota pelo movimento, a Polícia Militar realizou “revistas e enquadros arbitrários para amedrontar e esvaziar a manifestação” e barrou o trajeto do ato proposto pelo MPL, que incluía a Avenida São Luís, a Rua Martins Fontes, a Rua Augusta e a Avenida Paulista.

“Mas seguimos firmes. À revelia dos defensores das catracas, realizamos a tradicional queima simbólica de uma catraca e, na sequência, tomamos as ruas em ato, que seguiu pela Av. São Luís e virou na Rua da Consolação. Mesmo sob forte pressão do aparato policial — incluindo tropa de choque e cavalaria — a manifestação seguiu animada, parando o trânsito e exigindo que o transporte funcione, de fato, como um direito”, diz a nota.

O MPL divulgou ainda outra nota, assinada por várias entidades, entre elas a Adusp, que rechaça a adoção da acusação de “abolição violenta do Estado democrático de direito” com a qual os órgãos policiais, sob o governo Tarcísio de Freitas (Republicanos)-Felício Ramuth (PSD), passou a tipificar as prisões. Outro enquadramento recorrente é o de “associação criminosa”.

“A novidade da tentativa de acusação de ‘Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito’ vem na esteira do ato reacionário do dia 08/01/23, ao que parece, como uma vingança das forças institucionais de extrema-direita frente à recente responsabilização, ainda que pífia, dos golpistas. Reafirmamos: qualquer leitura que faça uma equivalência entre manifestantes que ocupam as ruas contra o aumento da tarifa do transporte coletivo e golpistas que exigiam um estado de exceção via intervenção militar é uma leitura desonesta e injusta. Enquanto uns lutam por uma pauta de extrema importância para a vida das pessoas empobrecidas, reclamando uma democratização das cidades, através da Tarifa Zero, outros recusam o resultado das eleições que, inclusive, tentaram dificultar”, diz a nota (leia a íntegra abaixo).

Equivalência entre atos golpistas e protestos por transporte gratuito é descabida, dizem juristas

Juristas têm se manifestado na mesma direção. Em artigo publicado na Folha de S. Paulo, o professor Conrado Hübner Mendes, docente da Faculdade de Direito da USP, afirma que “a polícia tenta promover duas ampliações conceituais fraudulentas e sorrateiras”, a saber: “primeiro, torna possível interpretar qualquer protesto contra o poder público como tentativa de abolição da democracia; segundo, basta encontrar meia dúzia de manifestantes com armas brancas na mochila (pedra, soco-inglês) para definir a manifestação inteira como criminosa”.

“O ataque de 8 de janeiro, tanto quanto os acampamentos em quartéis e interdições nas estradas que o antecederam, todos parte de um mesmo fim, explodiram limites jurídicos”, prossegue Mendes. “Porque, ainda quando atos concretos isolados se parecem visualmente (uma vidraça quebrada, uma via interditada), os tipos de reivindicação, as estruturas de comando e financiamento, e sobretudo seus planos documentados levam a qualificação normativa muito diversa. Elementos contextuais e não visuais marcam a diferença legal.”

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Polícia Militar deslocou grande efetivo para acompanhar a manifestação

Em artigo publicado no site Consultor Jurídico, os advogados Igor Sant’Anna Tamasauskas e Bruno Lescher Facciolla defendem que “é evidente que não há, no caso de uma manifestação convocada para reivindicar a gratuidade no transporte público, qualquer pretensão, mesmo que abstrata, de abolição do Estado Democrático de Direito”. “Ao contrário disso, o que se busca, por meio do ato, é precisamente a efetivação do transporte enquanto direito social, tal qual previsto no artigo 6º da Constituição Federal — e cuja própria inclusão no rol daquele artigo foi fruto das lutas travadas em 2013”, afirmam.

Além disso, prosseguem os autores, “não é possível que admitamos a tentativa de enquadrar movimentos legítimos de contestação social à luz dos crimes contra o Estado Democrático de Direito, sob risco, a um só tempo, de banalizar tal instituto — cuja aplicação adequada pudemos observar em relação à tentativa de golpe de Estado ocorrida em 8 de janeiro de 2023 — e de violar gravemente o direito ao protesto, ferindo de morte as garantias conquistadas a duras penas ao fim da ditadura militar”.

“Assim como devem ser combatidas as tentativas de abolição violenta do Estado de Direito, devemos permanecer atentos para as tentativas de abolição do direito legítimo à reunião, ao protesto e à contestação política feita nas ruas, sem os quais sequer haveria democracia a ser defendida”, concluem.

Leia a íntegra da “Nota conjunta contra a criminalização de movimentos sociais pelo governo Tarcísio”

Nas últimas duas manifestações contra o aumento das tarifas do Metrô, da CPTM e EMTU, realizadas nos dias 10 e 18/01, foram detidas 25 e 7 pessoas, respectivamente, nas imediações do metrô República, antes mesmo que tivessem a possibilidade de se juntar ao ato. 12 das pessoas detidas no dia 10 e 5 das detidas no dia 18 foram encaminhadas para audiência de custódia e acusadas, pela 3a. Delegacia de Polícia, de “Associação Criminosa”. Algumas também foram acusadas de “corrupção de menor” e outras de “crime de resistência”. Ainda que a primeira não conste formalmente como acusação no Boletim de Ocorrência, toda a argumentação dos delegados se estruturou em torno da ideia de que a operação policial visava impedir um “grave atentado ao Estado Democrático de direito”. Acusações seriíssimas e que marcam mais um avanço da criminalização da luta popular. Aqui, contudo, é importante destacar: nenhuma das medidas criminalizantes promovidas cotidianamente pelo Estado contra as de baixo nos parece “proporcional” e/ou “amena”.

A novidade da tentativa de acusação de “Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito” vem na esteira do ato reacionário do dia 08/01/23, ao que parece, como uma vingança das forças institucionais de extrema-direita frente à recente responsabilização, ainda que pífia, dos golpistas. Reafirmamos: qualquer leitura que faça uma equivalência entre manifestantes que ocupam as ruas contra o aumento da tarifa do transporte coletivo e golpistas que exigiam um estado de exceção via intervenção militar é uma leitura desonesta e injusta. Enquanto uns lutam por uma pauta de extrema importância para a vida das pessoas empobrecidas, reclamando uma democratização das cidades, através da Tarifa Zero, outros recusam o resultado das eleições que, inclusive, tentaram dificultar.

Das 12 pessoas acusadas no ato do dia 10/01, 6 foram liberadas mediante uso de tornozeleiras eletrônicas. As 5 pessoas acusadas no ato do dia 18/01, foram liberadas mediante pagamento de fiança de R$1.000,00 por pessoa. Algumas pessoas tiveram seus celulares apreendidos e todas terão que cumprir medidas cautelares. Essas práticas têm a finalidade de constranger publicamente e punir antecipadamente pessoas que nem foram julgadas, limitando sua circulação a horários restritos e proibindo que participem de manifestações públicas. Perpetuam, com isso, a violência física e psicológica iniciada ainda nos enquadros e detenções. Práticas absolutamente arbitrárias contra pessoas que, repetimos, não estavam cometendo nenhum crime.

Criminosa de fato é a decisão do governador Tarcísio de Freitas e dos bilionários do transporte de aumentar a tarifa dos trens, metrôs e ônibus intermunicipais, fazendo com que cada vez mais gente precise escolher entre pagar a passagem ou comer. Criminosa é a precariedade em que se encontra o transporte sobre trilhos na cidade. Criminoso é o faturamento das empresas de transporte com seus contratos feito junto à Prefeitura e Governo do Estado. Criminosas são as violências que usuários do transporte passam diariamente.

A gestão Tarcísio mostra, mais uma vez, como atua o braço armado do Estado. Policiais sem câmeras, tropa de choque sem qualquer identificação na farda, revistas arbitrárias na concentração da manifestação, além das proibições infundadas da queima simbólica de uma catraca no fim do ato do dia 10/01 e a proibição do trajeto proposto no ato do dia 18/01.

A polícia de Tarcisio, que reprime e criminaliza os atos contra o aumento da tarifa no centro da cidade, é a mesma que, em menos de um semestre deste mandato, já apresenta índices crescentes de tortura e morte nas quebradas, estofada pelo judiciário e legitimada pela mídia hegemônica. Não nos esquecemos que Tarcísio e suas agências assassinas de Estado são responsáveis pela recente chacina na Baixada Santista. Seguimos reclamando a memória das pessoas que perdemos e cobrando a responsabilização de suas mortes por parte do Estado.

O projeto político de Tarcísio dá continuidade à tradição de criminalização da pobreza, subjugando determinadas existências e agências e criando supostos “inimigos internos” que devem ser combatidos. O sofrimento de muitas vidas é monetarizado em vista do lucro de poucos, promove-se uma verdadeira política de morte contra nossos corpos. Nos negam a cidade e a dignidade, se apossam de aparatos repressivos, como as leis de Segurança Nacional (e antiterrorismo) para seguir nos explorando, intimidando e atacando o nosso direito, arduamente conquistado, de podermos nos manifestar.

A $ão Paulo imposta pelos de cima é a da desigualdade e violência. A cidade disputada por nós é a da ousadia de lutar por uma vida e um mundo sem catracas. Sabemos que os poucos direitos que efetivamente temos foram conquistados nas ruas e com organização coletiva. O Governador, sua polícia e o judiciário não nos impedirão de ir às ruas denunciar a violência da tarifa e seus aumentos e o absurdo das privatizações da Sabesp, do Metrô e da CPTM.

Assinamos essa nota conjunta para afirmar que, se $ão Paulo tem tradicionalmente governos que criminalizam os movimentos populares, isso não foi e nem será suficiente para nos retirar das ruas e nos impedir de fazer luta na cidade.

LUTA É UM DIREITO E SÓ A LUTA MUDA A VIDA.
POR UMA VIDA SEM GRADES E SEM CATRACAS!
19 de janeiro de 2024

EXPRESSO ADUSP


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