“Dirigentes da USP e representantes do governo, empresas e instituições parceiras visitaram, no dia 22 de março, as obras originalmente destinadas ao Centro de Convenções da Universidade. A visita teve o objetivo de apresentar aos potenciais parceiros a proposta de transformar o espaço inacabado em um distrito de inovação”.

Foi desse modo cândido, até simpático, que a Reitoria apresentou no Jornal da USP sua proposta de rever a destinação inicialmente pensada para a obra iniciada pelo então reitor J.G. Rodas e paralisada desde 2012. Caso se consuma, seria um passo à frente no afã da Reitoria de celebrar parcerias com o capital privado, tendo como norte o binômio “inovação-empreendedorismo” ⸺ ainda que a universidade não tenha sequer conseguido, até agora, definir “inovação” a contento, como admitiu em reunião do Conselho Universitário, constrangido, o coordenador da Agência USP de Inovação (Auspin), Luiz Henrique Catalani.

Ainda segundo o Jornal da USP, o reitor Carlos Gilberto Carlotti Jr. declarou que a proposta é “readaptar esse espaço e transformá-lo em um grande centro voltado para a inovação, um novo local para a geração de empresas e startups”, além de debater “com os parceiros potenciais para que possamos elaborar uma proposta para a finalização do espaço já com um destino definido para a sua ocupação”. Não surpreende que o ex-reitor Vahan Agopyan, secretário estadual da Ciência, Tecnologia e Inovação, tenha comparecido para apoiar os planos da gestão Carlotti Jr.-Arruda.

“A ideia é conectar empresas, startups e pesquisadores em um único local, oferecendo o melhor ambiente para o desenvolvimento e incorporação de inovação”, prosseguiu o jornal. Trata-se de um clichê também citado quando do lançamento de iniciativa semelhante na USP de Ribeirão Preto: o “Condomínio da Inovação”, que loteia parte do campus para empresas e até mesmo plantas industriais, em contratos com 30 anos de vigência.

Quando se verifica a lista de representantes de organizações que participaram da visita de março último ao prédio inacabado do Centro de Convenções, encontramos empresas que já se beneficiam do programa “IPT Open”, que o governo estadual impôs ao Instituto de Pesquisas Tecnológicas, como Google e Siemens, e uma entidade privada “de apoio” que sempre gozou de sólidos laços com os governos estaduais do PSDB, que é a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE). Encontramos também outros pesos-pesados da tecnologia como Samsung e Microsoft.

O prédio onde a gestão Carlotti Jr.-Arruda pretende instalar o “Distrito de Inovação” compreende, segundo o Jornal da USP, “um espaço de 36 mil metros quadrados […] três auditórios, com 1.450, 620 e 218 assentos, sala de projeções com 157 lugares, espaços para exposição, 20 salas multiuso e um foyer de 1.750 metros quadrados”. Tem estrutura para dois cafés ou restaurantes, cozinhas especializadas, três pavimentos de estacionamento com 700 vagas, área de serviços e administração.

“A obra está 70% concluída, faltando, dentre outros itens, a adequação das áreas do entorno e do acesso viário e acabamentos como forro, acústica e cenotecnia. Em 2021, a Universidade promoveu a segunda concorrência nacional, na modalidade maior lance ou oferta, destinada à concessão de direito de uso e exploração do Centro de Convenções, mas não houve interessados”, informa ainda a publicação oficial da Reitoria.

“Não cabe à universidade gerar empresas ou startups”, diz Otaviano Helene

“A criação de um distrito de inovação da Cidade Universitária é um projeto ainda não explicitado, aparentemente ainda na forma de vontade”, declarou ao Informativo Adusp o professor Otaviano Helene, do Instituto de Física (IF), que buscou mas não localizou qualquer documento oficial ou norma que faça referência à conversão do Centro de Convenções em Distrito de Inovação, ou à cessão de suas instalações a organizações privadas.

“Um primeiro ponto que deve ficar claro é que não há nada de errado no fato de uma universidade pública interagir com organismos externos a ela, sejam estes públicos ou privados, nem com desenvolvimento de projetos de inovação em uma instituição pública”, pondera o docente. “Entretanto, o critério para definir a interação com organismos externos não é o estatuto jurídico destes (empresas ou outra forma qualquer) ou seu nível de desenvolvimento (startups ou não), como parece ser a intenção da Reitoria”.

No entender de Otaviano, o parâmetro para definir uma interação com entidade externa deve ser a atividade, o produto ou o serviço desenvolvido e a relevância destes para a sociedade. “Não cabe à universidade gerar empresas ou startups, mas, sim, promover e divulgar o conhecimento científico, tecnológico e artístico e formar quadros profissionais de nível superior. O projeto em questão surgiu sem que fosse antecedido por algum tipo de diagnóstico que localizasse um problema e cuja solução levasse a ele”, adverte.

“Vale lembrar que o edifício a ser ocupado pelo projeto foi construído há cerca de uma década. Como criticado à época, aquele centro de convenções não surgiu como solução para algum problema diagnosticado ou por alguma demanda de caráter acadêmico, científico ou educacional; surgiu da mesma forma que surgiram os escritórios no exterior, a nuvem de computadores, o terreno na Rua da Consolação, entre várias outras coisas estranhas”, lamenta o docente.

“Antes da atual proposta de se ocupar o prédio – abandonado – com um distrito de inovação, houve pelo menos duas tentativas de encontrar uma instituição interessada em explorá-lo, sem sucesso. Essa ideia de criar um distrito de inovação é, portanto, uma terceira tentativa de se dar destino ao prédio. As duas tentativas anteriores e a atual nada têm a ver com as finalidades básicas e fundamentais da universidade”, avalia Otaviano.

O professor do IF lembra igualmente que os recursos financeiros destinados à USP são computados como gastos educacionais pelo governo estadual, em obediência às normas que exigem que pelo menos 30% da arrecadação de impostos (pela Constituição Estadual, aqui incluindo despesas não estritamente educacionais) ou 25% (pela Constituição Federal, neste caso gastos estritamente educacionais) sejam destinados à educação. “Portanto, caso a USP destine recursos a atividades não educacionais no sentido definido pelas constituições e pela LDB, esses valores devem ser subtraídos das despesas educacionais do Estado”, frisa.

Desindustrialização e papel de exportador de commodities desestimulam inovação

Outro docente que vê inconsistência nos planos da Reitoria é Marcos Barbosa de Oliveira, autor de estudos sobre a questão da inovação. “Como se sabe, a mobilização inovacionista no Brasil teve início em 1999, com a criação dos primeiros fundos setoriais. A partir de então, houve uma pletora de iniciativas em prol da inovação, todas elas fracassadas, como o próprio establishment reconhece ⸺ e esse fracasso explica a contínua adoção de novas medidas, como esta da USP aqui em pauta”, considera ele.

Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP), Oliveira aponta a inexistência de elaboração crítica sobre as políticas pró inovação adotadas até agora. “Estudando os documentos relevantes, chama a atenção em primeiro lugar a falta de reflexão sobre as iniciativas anteriores nesses mais de vinte anos e, mais precisamente, sobre as causas de seu fracasso. É como se a ideia de que a produção de inovações é fundamental para o desenvolvimento econômico tivesse acabado de ser descoberta”.

A seu ver, as causas do fracasso, “como o establishment deveria saber, não são defeitos da legislação, nem a suposta falta de ‘cultura da inovação’ por parte dos acadêmicos e empresários”. Até mesmo as disfuncionalidades burocráticas, tão frequentemente criticadas, diz ele, “numa análise mais profunda se revelam não como causa dos problemas, mas como outro efeito da causa principal”, a qual diz respeito às condições macroeconômicas.

“Mais precisamente, ao papel do Brasil de exportador de commodities, associado à desindustrialização da economia. Enquanto não houver uma mudança na situação macroeconômica, o inovacionismo no Brasil permanecerá sendo uma ideia fora do lugar”, acredita Oliveira.

“É surpreendente a cegueira, a teimosia, o malhar em ferro frio do establishment, que configuram um negacionismo das verdadeiras causas do problema”, critica ele. “Surpreendente e lamentável, tendo em vista o desperdício de recursos públicos financeiros, e das energias intelectuais e emocionais dos envolvidos nessa inglória empreitada”.

O Informativo Adusp solicitou à Reitoria informações sobre a formatação do projeto de “Distrito da Inovação”. Segundo a Assessoria de Imprensa da Reitoria, “o projeto ainda está em fase de estudo e desenvolvimento, portanto nenhum documento foi encaminhado ao Co”.

EXPRESSO ADUSP


    Se preferir, receba nosso Expresso pelo canal de whatsapp clicando aqui

    Fortaleça o seu sindicato. Preencha uma ficha de filiação, aqui!