João Zanetic, poeta da Física e bravo guerreiro, nos deixa aos 81
João Zanetic em sua sala no Instituto de Física, em abril de 2018 (foto: Daniel Garcia)

Faleceu em São Paulo nesta quinta-feira, aos 81 anos de idade, por complicações decorrentes de um acidente vascular cerebral, o professor sênior João Zanetic, do Departamento de Física Experimental do Instituto de Física (IF-USP). João, ou “Z” como era carinhosamente chamado por amigos e camaradas próximos, foi um dos mais destacados dirigentes do movimento docente da USP. Presidiu a Associação de Docentes da USP (Adusp) por duas vezes, em 1991-1993 e 2009-2011.

Aposentou-se em 2013, mas continuou militando no movimento docente e nas causas que considerava merecerem sua participação, em especial aquelas relacionadas ao Grupo de Trabalho Políticas de Educação (GTPE) da Adusp, como a formulação de sucessivos Planos Nacionais de Educação, bem como a luta em defesa do Hospital Universitário da USP (HU). A hipertensão arterial e o diabetes trouxeram-lhe algumas restrições, mas não refrearam sua vocação de docente, nem sua intensa militância.

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Zanetic, Francisco Miraglia e Neli Wada a caminho do Palácio do Governo (31/5/2007)

Graduado em Física (1967) e mestre em Física (1972) pelo IF, mestre em Science Education pela University of London (1974), Zanetic doutorou-se em Ensino de Física pela Faculdade de Educação da USP (1990), ao defender a tese intitulada “Física também é Cultura”, orientada pelo professor Luis Carlos de Menezes. Como docente do IF, viria a orientar pelo menos 26 dissertações de mestrado e oito teses de doutorado.

A direção do IF emitiu nota de pesar, na qual apresenta condolências à família do professor Zanetic, “bem como a seus colegas e amigos, muitos deles parte de nossa comunidade, a quem ele tanto inspirou”, e convida “todos os colegas, ex-alunos e amigos a enviar relatos e/ou imagens”, com a finalidade de “organizarmos uma homenagem a ser divulgada nos próximos boletins”.

A Sociedade Brasileira de Física (SBF), em nota, expressou pesar pela “perda de um grande profissional” da sua área: “Faleceu o professor João Zanetic, docente cuja trajetória acadêmica foi construída em conjunto com a história do Instituto de Física da USP”. A Sociedade Brasileira de Ensino de Química também se manifestou, lembrando que Zanetic, “um visionário no ensino de Física”, editou o primeiro número da Revista Brasileira de Ensino de Física e foi uma voz ativa na política educacional.

“Conheci o João em 1970. Ele, professor e eu, aluna de graduação do Instituto de Física. Logo ficamos amigos. Conversávamos sobre física, política, literatura e aprendi muito com ele”, relata ao Informativo Adusp Online a professora Suzana Salem (IF), vice-presidente da Adusp na gestão iniciada em 2009, que Zanetic liderou. “Militávamos no mesmo grupo político. Tempos duros, a luta contra a Ditadura era arriscada. João era um bravo guerreiro e assim seguiu por toda sua vida”, prossegue.

“Participou da Adusp desde a sua fundação, se envolveu na luta partidária e em movimentos sociais organizados, sendo sempre uma liderança importante. Soube conciliar, como poucos, a atividade intelectual com a militância política; a doçura com a firmeza. O mundo seria bem melhor se, por aqui, houvesse mais gente como João. Sentirei muito sua falta, meu amigo querido”.

“Figura humana fantástica”, opina Ildeu Moreira, ex-presidente da SBPC

Diversos depoimentos e homenagens surgiram nas redes sociais logo que se espalhou a notícia de sua partida. “Sempre gentil, paciente e disposto a compartilhar sua experiência de vida, Zanetic era um grande professor em todos os seus gestos, estivesse numa pequena reunião, numa assembleia ou numa palestra (a quantas o convidamos e com que disposição ele sempre se dispunha a ajudar, fosse falando para cinco ou para 500 jovens)”, relatou Thiago Aguiar, doutor em Sociologia pela USP e ex-dirigente do DCE-Livre, em seu perfil no Facebook.

“Lembro-me em particular de, após uma atividade na Adusp, ter passado horas ouvindo-o contar para um pequeno grupo de amigos que estávamos por lá sobre sua entrada na USP em 1º de abril de 1964 [como estudante], em pleno dia do golpe, e de tudo o que ele viveu nos anos seguintes: as entidades estudantis postas na ilegalidade, o dia da batalha na Maria Antônia com pedradas e tiros, a luta pela redemocratização, pela educação pública e pela universidade brasileira. Ele contava tudo com prazer porque apostava nos jovens e sabia que a luta da sua geração precisava ter continuidade”, concluiu.

“Foi-se o amigo fraterno João Zanetic. Figura humana fantástica, excelente professor de física e educador de vasta cultura. João deu partida à Revista Brasileira de Ensino de Física, da qual foi o primeiro editor, e foi um dos pioneiros no uso da história da física e da ciência no ensino de física”, resumiu Ildeu Moreira, docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ex-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em publicação no Facebook.

“Colaborou intensamente no I Simpósio Nacional da Ensino de Física (e nos que se seguiram). Sua tese de doutorado foi marcante e traduziu seu interesse permanente: ‘Física também é Cultura’”, destacou, após enfatizar o engajamento de Zanetic em causas progressistas. “Adeus, amigo, e muito obrigado pelo muito que fez pela física, pela ciência, pela educação e pela democracia no Brasil!”.

Breno Arsioli Moura, docente da Universidade Federal do ABC (UFABC), foi enfático: “Não existiu e provavelmente não existirá no meio acadêmico uma pessoa tão gentil, acolhedora e justa como o professor João Zanetic. Uma referência. Sempre. Que sejam feitas as justas homenagens agora que só temos o seu legado para admirar”.

José Alves, docente da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que foi aluno de Zanetic em duas disciplinas de graduação, é outro que relembra o mestre com carinho: “A apostila que ele usava nas aulas até hoje é uma fonte de consulta minha para assuntos históricos. Cheguei a participar pontualmente do seu grupo de estudos quando era um autor que eu queria me aprofundar. Amava conversar com ele na informalidade. Era extremamente culto, gentil, bondoso. Era, sobretudo, profundamente generoso”.

O ativista Santana Silva, membro da coordenação do Coletivo Butantã na Luta, que com ele compartilhou as lutas em defesa do HU, relembrou uma conversa ocorrida num intervalo nas atividades: “Certa vez, num breve período de descanso durante uma panfletagem, ali na pracinha da comunidade do Sapé, brincamos sobre a nossa idade, e eu lhe perguntei: ‘De onde você tira tanta energia pra luta, camarada?’. Ele me respondeu em tom de brincadeira: ‘O mundo é movido por vários tipos de energias: hidrelétrica, atômica, eólica etc., mas a mais potente é a energia ideológica, e nós somos movidos por ela’. Camarada João Zanetic, nos vemos algum dia. João Zanetic, presente hoje e sempre”.

Ponte entre dois mundos, ou duas culturas

Como docente e pesquisador, Zanetic destacou-se por buscar construir laços entre a ciência e as artes, ou a cultura de modo geral. Essa preocupação, que aparece na sua tese de doutorado, será retomada em textos como seu artigo “Física e literatura: construindo uma ponte entre as duas culturas”, publicado em 2006. “Este artigo defende a aproximação entre física e literatura como uma forma útil de interpretar o mundo. Utilizo nessa aproximação a filosofia de Gaston Bachelard, explorando sua discussão sobre perfis epistemológicos em que comparecem doutrinas filosóficas que vão do realismo ingênuo ao ultra-racionalismo, compreendendo entre elas o empirismo determinista da física clássica e a indeterminação da física contemporânea”, explica ele no abstract.

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Atividade no Núcleo de Consciência Negra da USP (2013)

“Destaco estas últimas porque analiso, de forma metafórica, os perfis epistemológicos de alguns escritores importantes do século XIX e início do século XX que são exemplos de transição entre aquelas duas doutrinas filosóficas. A ponte aqui será mais explicitamente a transformação do papel do escrito literário na passagem da visão de mundo influenciada pela física clássica, representada pelos escritores Edgar Allan Poe, Gustave Flaubert, Emile Zola e Augusto Zaluar, para aquela que nasceria influenciada pela física contemporânea, exemplificada pelos escritos de Fiódor Dostoiévski e William Faulkner”, completa.

No texto, Zanetic esclarece que a “aparente incongruência em procurar associar ciência e arte” foi abordada por diversos autores, alguns contrários e outros favoráveis a essa aproximação. “Obviamente incluo-me entre estes últimos, acreditando que a contaminação mútua entre essas duas culturas é útil não apenas para interpretar o mundo, mas também para transformá-lo, como ensinava Karl Marx. O educador francês Georges Snyders recorria à leitura e análise de obras literárias que haviam estado presentes em sua vida, para discutir tristezas e alegrias na escola. Nessa busca, ele acabou concluindo que pode ser construída uma aproximação entre tais obras e as ciências”.

A revista Balbúrdia publicou em 2023 extenso texto sobre o docente do IF, cuja leitura é imprescindível. Dois depoimentos marcantes de ex-alunos seus, publicados pela revista, dão mais pistas sobre sua linha de trabalho. Um deles é o de Demétrio Delizoicov, que começa falando das aulas de Física Geral lecionadas por Zanetic e das interações entre ambos. “Logo percebi em você o físico diferenciado que, de fato, é! Eu esperava a tradicional ‘calculeira’ com a qual estava acostumado na disciplina de Física. A surpresa foi que você, sem abandonar o tratamento formal, oportunizou a abordagem do contexto de produção da Mecânica Clássica. Dentre outros recursos educativos utilizou, por exemplo, uma parte do texto da peça teatral de Brecht, ‘Galileu Galilei’, que foi discutido com seus alunos. Creio que pode ter sido esse tipo de práxis que o desafiou a ser um pesquisador em Ensino de Física (EF). Na verdade um educador, especializado em Física”.

Prosseguindo, Delizoicov relembrou sua experiência de “nossa interação mais sistemática” quando iniciou o mestrado em EF, em 1975. “Você havia retornado de Londres e passou a lecionar as disciplinas Instrumentação para o Ensino de Física e Evolução dos Conceitos de Física no curso de graduação. Em ambas incrementou de modo significativo aspectos relacionados ao contexto de produção das teorias físicas. Aspecto muito bem caracterizado na tua tese de doutorado: Física é Cultura”.

Alexandre Bagdonas, por sua vez, chama atenção para as “desorientações” recebidas de Zanetic, de quem aprendeu “com as conversas, orientações e desorientações”, que incluem a marcante frase “A ciência é como a poesia, uma mentira que diz a verdade”, lida num texto de Levy Leblond que discute história, filosofia da ciência e o ensino de física como cultura. “Lembro da beleza da metáfora, do estranhamento, e da alegria de discutir as possíveis implicações didáticas de uma ciência que problematiza e brinca com a razão. Algum tempo depois, a mesma frase já me soa igualmente interessante, mas também um pouco mais perigosa. Em tempos tão tristes, de crescimento de visões que desvalorizam a pesquisa, o estudo, a história dos que passaram a vida lutando contra o ensino formulista, tradicional, e em especial do absurdo dos saudosistas da Ditadura, eu sempre me lembrava de como tudo isso deveria ser especialmente doloroso para o João e sua geração”.

Também na revista Balbúrdia, a pós-graduanda Arianne Pissuto detalha outros aspectos admiráveis da atuação de Zanetic como educador. “Nos últimos anos, por diversas vezes, me peguei duvidando da minha capacidade, da efetividade das minhas ações nos espaços que atuo e das perspectivas de futuro. E quando você convive e dialoga com uma pessoa como ele, você tem sua esperança renovada”, diz ela.

“Por diversas vezes ao longo destes anos que nos conhecemos, ele me brindou e brinda com pequenos momentos de luz iluminando trevas, fosse quando eu achasse que deveria desistir do curso (ainda na graduação), ou quando almejava minha entrada no mestrado e não conseguia conjecturar minhas aspirações”, conta ela. “Como meu orientador, João é paciente e generoso, dando apoio e me lembrando, sempre, que nosso legado é construído através do que acreditamos, das lutas que travamos diariamente e daquilo que nunca deixamos de lembrar. A valorização da Ciência, a educação respeitosa e dialógica e o bom humor são as marcas que ele carrega e espalha por aí”.

Outro ex-aluno de Zanetic, o professor Ivã Gurgel (IF), que está no exterior, enviou ao Informativo Adusp Online a seguinte declaração: “O João foi a maior referência como intelectual e inspiração como ser humano que tive”.

Funcionárias(os) da USP e da Unicamp aprovam moção de pesar

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Na luta pelo Hospital Universitário da USP (foto: Daniel Garcia)

O 8º Congresso Estatutário das(os) Funcionárias(os) da USP aprovou moção de pesar pelo falecimento do professor, “cuja história de luta é exemplar!”. “Desde 1979, quando fizemos juntos a icônica greve de funcionários e professores, o companheiro João Zanetic construiu uma sólida relação de cumplicidade e solidariedade dos professores da USP com os funcionários, bem como da Adusp com a Asusp/Sintusp”, diz a nota.

“O nosso querido professor Zanetic, ex-presidente da Adusp, ofereceu-se para dar um curso no Sintusp, ‘Como gostar de física’, aos nossos filiados, além disso, sempre foi sócio de nosso sindicato, fato do qual muito nos orgulhamos! Nosso Congresso, sob longos aplausos, envia esta moção à Associação de Docentes da USP e aos familiares do companheiro Zanetic, especialmente a sua combativa companheira Nana!”.

Também o Sindicato dos Trabalhadores da Unicamp (STU) manifestou-se, em nota própria, prestando condolências aos familiares e amigos. “João Zanetic, presente!”, concluem ambas as notas.

A Associação dos Docentes da Unesp (Adunesp) e o Sindicato dos Trabalhadores da Unesp (Sintunesp) emitiram nota de pesar conjunta, intitulada “Querido João Zanetic, presente!”, que lembra ter sido ele “um grande companheiro, combatente incansável na defesa dos serviços públicos”.

“Em toda a sua trajetória na USP, desde os tempos de movimento estudantil, jamais se afastou do bom combate, figura central nas lutas em prol da educação e da saúde públicas e presença marcante no Fórum das Seis. Simbolicamente, nosso companheiro partiu no dia em que se celebram 50 anos da Revolução dos Cravos, evento histórico que nos inspira até hoje na rejeição às ditaduras no Brasil e no mundo”.

EXPRESSO ADUSP


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