No último dia 12 de agosto, o reitor Carlos Gilberto Carlotti Jr. emitiu nota de pesar pelo falecimento, aos 96 anos, do economista, professor aposentado da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA-USP), ex-docente da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC-USP), ex-ministro de governos ditatoriais e deputado federal por cinco mandatos, Antônio Delfim Netto (1928-2024).

A nota do reitor da USP surpreende, porque não faz qualquer menção explícita ao envolvimento de Delfim Netto com a Ditadura Militar que governou o país de 1964 a 1985, especialmente seu papel destacado na condução da política econômica e seu endosso ao Ato Institucional número 5 (AI-5), de 1968, um marco no Terrorismo de Estado instaurado pelo golpe militar que derrubou o governo eleito de João Goulart (Jango) e levou à perseguição e ao assassinato de milhares de pessoas por 21 anos, muitas delas da comunidade universitária brasileira.

Salu Parente/Câmara dos Deputados
Delfim Netto

“Economista e Professor Emérito da FEA, Delfim Netto dedicou mais de 55 anos à vida pública, tendo assumido diversos cargos públicos, dentre os quais secretário estadual, ministro da Fazenda e embaixador. Durante sua vida pública interagiu com diferentes correntes políticas em diferentes momentos da história do Brasil”, diz a nota assinada pelo reitor, usando de eufemismos para disfarçar a forte participação do economista e professor no regime militar.

O AI-5, do qual Delfim Netto foi um dos signatários, impactou profundamente a USP, como fartamente comprovado e documentado pelo dossiê O livro negro da USP – O controle ideológico na Universidade, publicado pela Adusp na forma de livreto já em 1978 e depois republicado em 2004, sob o título O Controle Ideológico na USP (1964-1978). Na gestão Vahan Agopyan-Antonio Hernandes, por proposta da própria Reitoria, uma nova edição surgiu em 2018, na forma de uma parceria entre a Adusp e a Edusp, editora da universidade. Na ocasião Carlotti Jr. era pró-reitor de Pesquisa.

O reitor da USP poderia pelo menos ter buscado informações sobre a natureza dos 55 anos de “vida pública” de Delfim no repositório do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV), uma instituição séria conhecida por seus consistentes verbetes sobre personalidades históricas.

Ali ele teria verificado que o economista foi ministro da Fazenda nos governos presididos pelos generais Costa e Silva e Garrastazu Médici, entre 1967 e 1974, período da Ditadura Militar no qual Delfim tornou-se “o principal condutor da política econômica”, segundo o CPDOC, e ainda ministro do Planejamento do governo do general João Batista Figueiredo (1979-1985), quando, porém, “atuou efetivamente como um ministro da Fazenda, formulando as principais estratégias econômicas do governo e interferindo praticamente em todos os problemas nacionais”.

O reitor também descobriria que o padrinho político de Delfim, nos anos iniciais da Ditadura Militar, foi Roberto Campos, que o indicou como membro do Conselho Nacional de Economia. “Sua primeira nomeação para um posto executivo na área econômica ocorreu com a ascensão de Laudo Natel ao governo de São Paulo, logo após a cassação do mandato de Ademar de Barros em 5 de junho de 1966”, relata o verbete do CPDOC. “Nessa ocasião, o governo federal assumiu para si a indicação de nomes para três cargos decisivos da administração paulista, a saber: a Secretaria de Segurança, ocupada pelo general Augusto Fragoso, o comando da Força Pública, entregue ao coronel João Batista Figueiredo, e a Secretaria da Fazenda, cuja chefia passou a Delfim Netto, mais uma vez indicado pelo ministro Roberto Campos”, continua o ilustrativo texto.

“Com a posse do general Artur da Costa e Silva na presidência da República em 15 de março de 1967, Delfim Netto foi nomeado ministro da Fazenda e Hélio Beltrão assumiu a pasta do Planejamento. A nova equipe ministerial era composta por oito oficiais da ativa, dois da reserva, três técnicos civis e três políticos”, informa o verbete. Ou seja: um ministério composto por dez militares e seis civis, no qual Delfim despontaria como um dos mais importantes protagonistas.

O CPDOC destaca que a taxa de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro se manteve elevada durante toda a gestão de Delfim no Ministério da Fazenda: “9% em 1969, 9,5% em 1970, 11,3% em 1971, 10,4% em 1972 e 11,4% em 1973”, conformando o período conhecido como o do “milagre brasileiro”, que teve como “setores mais dinâmicos as indústrias de bens de consumo durável, bens de produção, construção civil e bens intermediários”, sendo que a “modernização produzida na economia se difundiu também para outros setores, como o comércio, que passou a ser controlado pelos supermercados, em detrimento do pequeno negócio tradicional”.

Ainda segundo o CPDOC, o Plano Estratégico de Desenvolvimento (PED), “elaborado no início de sua gestão, considerava os altos custos financeiros pagos pelas empresas e os elevados preços das tarifas dos serviços públicos como fatores principais do processo inflacionário, modificando assim o enfoque oficial dos anos anteriores, que tomava o excesso de demanda como a principal causa da inflação”. Interessado em retomar altas taxas de crescimento econômico, “Delfim tabelou e reduziu as taxas de juro e permitiu uma ampliação do crédito, o que provocou uma expansão de 43% dos meios de pagamento em 1967, equivalente ao triplo do ano anterior”. Ao mesmo tempo, porém, “o congelamento salarial foi mantido e o governo introduziu um sistema de controle de preços que desembocaria em 1969 na criação do Conselho Interministerial de Preços (CIP)” (destaques nossos).

Assim, o CPDOC reconhece os êxitos de Delfim no tocante ao desenvolvimento do capitalismo nacional. “Entretanto”, assinala, “os benefícios sociais desse crescimento econômico atingiram os assalariados de baixa renda em escala muito inferior ao que ocorreu nas camadas médias ou ricas. O valor real do salário mínimo caiu, e a parte mais pobre da população viu sua participação na renda nacional decrescer de mais de 1/6 em 1960 para menos de 1/7 em 1970”. Delfim Netto, por sua vez, “considerou normal esse processo de concentração de renda, afirmando que em qualquer tipo de desenvolvimento econômico ‘alguns melhoram mais do que os outros’”.

Prossegue o verbete do CPDOC: “Com o fim da censura prévia à imprensa, decretado no último ano do mandato presidencial de Geisel, começaram a surgir severas críticas a Delfim, por sua atuação seja como ministro, seja como embaixador [em Paris]. Estudo realizado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sociais e Econômicos (DIEESE) contestava os índices oficiais da inflação de 1973, que teriam sido subestimados, com sérias consequências para o cálculo dos reajustes salariais”.

Acrescenta que, em depoimento prestado em 1978 à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigava a política salarial do governo, o economista Julian Chacel, diretor de pesquisas do Instituto Brasileiro de Economia (IBRE) da FGV, reconheceu que, “em estudo encomendado pelo ministro Mário Henrique Simonsen em março de 1974, os índices encontrados haviam indicado, em 1973, um aumento de 24,8% nos preços, e não de 14%, como fora anunciado no governo do general Emílio Médici”.

Após a posse do general Figueiredo na presidência da República em 15 de março de 1979, foi organizado um ministério de composição entre o chamado “grupo da Sorbonne”, ligado às origens da Escola Superior de Guerra, e a equipe de Médici. “Dentro do esquema governamental, Mário Andreazza, escolhido ministro do Interior, José Costa Cavalcanti, presidente da Itaipu Binacional, e Heitor Aquino Ferreira, secretário particular do novo presidente da República, apoiaram, com êxito, a indicação de Delfim Netto para a pasta da Agricultura, considerada uma das prioridades do novo governo”, anota o CPDOC.

O verbete narra, igualmente, as duas tentativas fracassadas de Delfim de tornar-se governador de São Paulo indicado pelo ditador da vez, para ser ungido por meio de eleições indiretas. Após o final da Ditadura Militar, nas eleições de 1986, Delfim elegeu-se deputado federal pelo PDS, reelegendo-se quatro vezes, tendo passado por quatro outros partidos políticos: PPR, PPB, PP (atual Progressistas) e finalmente PMDB (atual MDB). Na Constituinte de 1988, alinhou-se ao chamado “Centrão”, que defendeu a agenda conservadora.

Na virada do século, apoiou a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e flertou com a esquerda, chegando a ser nomeado por Lula membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (em 2003) e do Conselho Curador da Empresa Brasil de Comunicação (EBC, em 2007). Registre-se, a propósito, que tanto Lula quanto o ministro Fernando Haddad emitiram notas de pesar sobre Delfim tão omissas e fantasiosas quanto a do reitor da USP.

De outras fontes que não o CPDOC, restam evidências de envolvimento direto de Delfim com o financiamento da sinistra Operação Bandeirantes (OBAN), embrião dos destacamentos de operações de informações-centros de operação de defesa interna (DOI-CODI). Ele foi citado como um dos participantes de reuniões com grandes empresários, como Gastão Vidigal, cuja finalidade era arrecadar fundos para o aparato de repressão política, ao lado do empresário dinamarquês Henning Boilesen, que frequentava as dependências da OBAN e se envolvia pessoalmente nas sessões de tortura: Boilesen “levava sempre a reboque o ministro Delfim Netto” em tais reuniões, conforme depoimento do jornalista Sílvio Ferraz.

“Eu voltaria a assinar o AI-5. Eu tenho dito isso sempre”, declarou Delfim em 2021, em entrevista ao portal UOL. “Aquilo era um processo revolucionário, vocês têm que ler jornais daquele momento. As pessoas não conhecem história, ficam julgando o passado como se fosse o presente. Naquele instante foi correto, só que você não conhece o futuro”, alegou o ex-ministro de Costa e Silva, Médici e Figueiredo.

Deve ser o que o reitor Carlotti Jr. chama de “interagir com diferentes correntes políticas em diferentes momentos da história do Brasil”.

EXPRESSO ADUSP


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