A professora Cynthia de Oliveira Lage Ferreira, do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação de São Carlos (ICMC), corre o risco de ser desligada do Regime de Dedicação Integral à Pesquisa e à Docência (RDIDP) depois que seu mais recente relatório de atividades, referente ao biênio 2015/2017 de estágio de experimentação, foi reprovado pelo Conselho do Departamento de Matemática Aplicada e Estatística (CD-SME).

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Professora Cynthia Lage Ferreira

A docente encaminhou um recurso à Congregação da unidade, mas esta, além de rejeitar o recurso, aprovou proposta do diretor da unidade, Alexandre Nolasco, de sugerir à Comissão Especial de Regimes de Trabalho (CERT) que instaure um “processo adminis­tra­ti­vo para avaliação do desempenho da docente”, conforme registrado na ata da reunião que apreciou o caso, em 28/4/17. Um dos pareceristas sugeriu que “uma alteração do regime de trabalho, para um regime em que o desenvolvimento de pesquisa represente uma parte menor, pudesse ser considerada”, o que obviamente implicaria redução salarial.

A professora Cynthia ingressou no ICMC em abril de 2013 e, após engravidar cerca de quatro meses depois, saiu de licença-maternidade em abril de 2014. Mesmo estando em licença maternidade, a docente foi obrigada a escrever seu relatório referente ao primeiro biênio de estágio experimental.

Durante este período a docente desenvolveu seus projetos de pesquisa (tendo projeto de pesquisa aprovado pela Fapesp) e de extensão, participou de comissões e orientou iniciações científicas. Embora não tenha tido publicações no período, continuou desenvolvendo suas pesquisas durante o período gestacional.

“Foi bastante complicado escrever um relatório estando com um bebê no colo. Na prática, estava escrevendo sobre apenas um ano de trabalho. Mais ainda, estava escrevendo sobre um ano não convencional. O que esperar de uma documentação produzida nestas condições?”, explicou ela em entrevista ao Informativo Adusp.

Dois anos depois, ao apresentar uma carta à Congregação do ICMC, Cynthia questionou as circunstâncias em que redigiu o seu primeiro relatório: “Não tem a licença-maternidade as mesmas prerrogativas de uma licença saúde?” “A USP não deseja ter mulheres como docentes? Não temos direito de constituir uma família?”

Críticas

Enviado a três pareceristas, esse primeiro relatório “recebeu críticas, mas foi aprovado pelo CD-SME em novembro de 2014”, segundo depoimento do chefe do Departamento, professor Gustavo Buscaglia, à Congregação. “A primeira aprovação do relatório resultou numa recomendação de apresentação de um novo relatório, para o período de 2015 a 2016. O processo foi encaminhado à CERT que aprovou o relatório e solicitou um novo relatório em dois anos”, isto é: a CERT emitiu parecer “com observação de refazer o relatório e o projeto de pesquisa”, segundo a ata da Congre­ga­ção.

Para o professor Gustavo Buscaglia, chefe do departamento desde 2015, “pode-se ver que, na decisão do CD-SME, foi considerada a licença-maternidade usufruída pela professora, e que a solicitação de novo relatório após um ano foi de alguma maneira análoga a uma extensão do primeiro período de avaliação”.

A professora Cynthia exerceu seu direito de defesa e foi ao Conselho Departamental defender seu relatório do biênio 2013/2015. “É um absurdo o que aconteceu comigo lá. Além de um dos pareceristas escrever que, embora meu projeto de pesquisa fosse muito bom, não acreditava que eu tivesse capacidade de realizá-lo, outras coisas mais me foram ditas. Não as cito aqui por que não tenho como provar minhas afirmações. Infelizmente a USP não mantém registro de áudio de suas reuniões e suas atas não contêm transcrições completas das falas dos membros. Isso é um desrespeito ao parágrafo IV, do artigo 5 da Constituição Federal: ‘é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato’”.

O segundo relatório da professora, submetido em dezembro de 2015, foi novamente rejeitado pela maioria dos pareceristas e pelo CD-SME. Um terceiro relatório foi enviado em outubro de 2016, sobre as atividades realizadas pela professora entre 2015 e 2017, e novamente rejeitado pelo CD-SME, em março de 2017. Em abril, a Congregação rejeitou um recurso da professora, que solicitara um prazo maior para uma nova avaliação. Neste período, a professora novamente engravidou, e só voltará de sua nova licença-maternidade em fevereiro de 2018.

A avaliação ignorou a dificuldade causada pela interrupção do trabalho. “Toda vez que você retorna [de licença], é normal o trabalho ficar mais lento. Há um período de adaptação à nova condição familiar. Quando voltei da licença, em outubro de 2014, tive uma primeira negativa em relação ao trabalho. Desde então começaram as cobranças excessivas, que causaram um desgaste mental importante. Tenho convivido com insônia, crises de choro e taquicardia. Para mim, também, não é fácil expor esta situação de vulnerabilidade em público. Quero evitar que outros colegas passem pela mesma situação”, descreveu Cynthia.

Projetos de pesquisa

No recurso submetido à Congregação, a professora desmente a acusação de que não produziu academicamente: “Com relação à pesquisa, já tive projeto regular Fapesp aprovado (vigente entre 2013 e 2016), desenvolvo um projeto sobre Variedades Hiperbólicas em conjunto com um professor da UFSCar e estou trabalhando em uma colaboração internacional com a Universidade do Porto junto com a professora Maria Luísa B. de Oliveira e o professor José Cuminato, ambos do SME. Estamos usando um método para resolver equações diferenciais ordinárias, a saber: o método TAU, para resolver um sistema de equações diferenciais ordinárias não lineares que modela a dinâmica do DNA breathing, o qual foi tema de estudo da minha tese de doutorado”. Observa ainda que “o traba­lho com pesquisa é mais desa­fia­dor e produtivo quando envolve alunos de pós-graduação”, e que “logo que retornei da minha primeira licença, solicitei a orientação de um aluno de mestrado, que, no entanto, não foi permitida”.

Após observar uma falta de representatividade em nossos cursos de alunos provenientes de escolas públicas (sobretudo da região), Cynthia decidiu investigar a questão e desenvolveu o projeto de pesquisa “A matemática e o jovem: despertando múltiplas habilidades e talentos”. Voltado para alunos do ensino público, esse projeto organizou pesquisas e eventos em escolas da cidade com o objetivo de facilitar e aumentar o ingresso dos estudantes nos cursos do ICMC. “Além de compreender as razões e apontar possíveis ações para reverter esta situação, o objetivo deste trabalho com estudantes de ensino médio é descobrir vocações e talentos para Matemática e Estatística. O ensino público tem certa deficiência, mas esconde alunos que têm potencial para essa área, que não é muito conhecida”, diz. Os resultados da pesquisa foram tema de matéria no telejornal da EPTV, publicados no portal G1, e serão em breve submetidos a uma revista especializada.

“Minha leitura pessoal é que a produção em pesquisa da professora Cynthia foi considerada aquém dos padrões mínimos esperados pelos membros dos colegiados, ao ponto dessa insuficiên­cia não ser compensada pelas outras atividades comprovadas. Mesmo hoje em dia, no Curriculum Lattes da professora aparece como último artigo científico publicado um trabalho de 2011, anterior à sua contratação na USP”, declarou o professor Buscaglia, em resposta a questionamentos que lhe foram encaminha­dos pelo Informativo Adusp.

Além de seus projetos de pesquisa, Cynthia se dedica a orientar alunos em projetos de inicia­ção científica e pré-iniciação. Também participou de diversas comissões, notadamente a Comissão de Cultura e Extensão, a Comissão Organizadora do Curso de Bacharelado em Matemática e a Comissão de Iniciação Científica do SME. “A iniciação científica é tida como um trabalho secundário. Pré-iniciação científica, então, neste ano de 2017, apenas o meu projeto foi proposto dentre todos os docentes do ICMC”, observa a professora que também organizou, junto com outros colegas, dois workshops de iniciação científica dos alunos do departamento nos anos de 2016 e 2017.

Indagado a respeito, o professor Buscaglia alega que os pareceristas e órgãos colegiados levaram em conta o conjunto da atuação profissional da docente, “incluindo ensino, pesquisa, extensão, gestão e internacionalização”.

Na opinião do professor Ozíride Manzoli Neto, também do ICMC, os colegiados deveriam ter aceitado os relatórios da professora, “mas os órgãos da USP não agem sempre de forma razoável”. Não se trata de episódio isolado, lembra. “Não é o primeiro caso, a USP tem feito várias dessas coisas. O Departamento é que influenciou a Congregação a fazer isso. O Departamento em tese sabe das dificuldades específicas”.

Estresse laboral

A diretoria da Adusp entende que as especificidades da situação da professora Cynthia, particularmente no tocante à licença-maternidade, não foram de fato levadas em consideração. A professora foi pressionada para apresentação de relatório enquanto gozava de licença-maternidade e lhe foi cobrada produtivi­da­de após um ano de perma­nên­cia em atividade. Além disso, elaborou relatórios, ao longo de seus quatro anos de USP, anualmente ou referentes a um período de trabalho correspondente a um ano de atividade, tendo invariavelmente sido cobrada de produtividade como um docente que não tem suas atividades interrompidas.

A decisão da Congregação de sugerir à CERT que instaure processo administrativo inaugura uma prática não utilizada pela USP que, até o momento, reservou esse procedimento para apuração de faltas graves e não para avaliação de desempenho. Esse é mais um caso exemplar de desrespeito à normas basilares que deveriam resguardar as relações de trabalho em uma instituição pública e de desatenção para as condições de vida das pessoas, o completo menoscabo da licença-maternidade.

É mais que sabido das interferências que a maternidade acarreta para todas as mulheres em relação aos diferentes papeis que desempenham na sociedade e está mais que estabelecida a necessidade de que lhes seja dada a devida proteção e segurança. A lógica opressora da USP, em sua saga produtivista, confunde capacidade, dedicação e compromisso com a onipresente “produção em série” de artigos científicos, e desumaniza o corpo docente e de funcionários técnico-administrativos nesses “tempos modernos” que retratam o retrocesso sem paralelo ora em curso.

Cresce o número de casos de docentes que procuram a Comissão de Atendimento aos Docentes da entidade por conta de opressões e desrespeitos análogos. Nesse cenário, merece destaque a postura altiva e coletivamente responsável de quem, como a professora Cynthia, vem a público denunciar o assédio institucional sofrido ― que não lhe poupa sequer durante a vigência de sua licença-maternidade ― e alerta para a necessidade de posicionamento individual e coletivo da categoria contra esse estado de coisas, que caminha a passos largos para o mais generalizado estado de opressão, inaceitável em qualquer ambiente de trabalho e, em particular, na USP.

Informativo nº 444

EXPRESSO ADUSP


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