O Painel 4, “Relacionamento com as fundações”, o último do “Diálogo TCE-Cruesp”, foi tão ou mais revelador que o primeiro painel. A mesa foi ocupada exclusivamente por representantes das fundações privadas ditas “de apoio”, que se sentiram muito tranquilos para expressar o que pensam a respeito do tema. Alex Kenya Abiko, professor titular da Escola Politécnica (EP-USP) e Antonio Vargas de Oliveira Figueira, professor titular do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (CENA) e diretor-executivo da Fundação de Apoio à USP (FUSP), foram os expositores, tendo como mediador o professor Fernando Peregrino, dirigente da Coppetec e presidente do Conselho Nacional das Fundações de Apoio às Instituições de Ensino Superior e de Pesquisa Científica e Tecnológica (Confies), que vem a ser o lobby nacional dessas entidades.

Abiko é coordenador-geral de um programa de cursos pagos mantido pela Fundação para o Desenvolvimento Tecnológico da Engenharia (FDTE), uma das três fundações privadas ditas “de apoio” à EP-USP. O Portal da Transparência da USP registra pelo menos cinco “cursos de extensão” coordenados por Abiko em anos recentes (apenas um deles declaradamente realizado com a FDTE), cujo valor total é de R$ 5,384 milhões. Assim, como se verá mais adiante, ao defender no TCE a necessidade dos “cursos de extensão” e das fundações privadas, como fez, Abiko advogou em causa própria.

Tão à vontade estava Abiko, que decidiu “contar um segredo”, praticar sincericídio, em pleno TCE, precisamente a instituição encarregada de fiscalizar as universidades e as entidades privadas que supostamente as apoiam. “Essa relação da USP com essas 30 fundações de apoio é uma relação tranquila? É uma relação, vamos dizer assim, consolidada? Sem grandes problemas? Não, muito pelo contrário”, explicou, preparando o terreno para a inconfidência que viria a seguir.

“Eu acho que a gente está aqui entre amigos e a gente pode contar um segredo que é o seguinte: no momento nós temos apenas duas dessas fundações com convênio com a USP: a FUSP e a FDTE. Nós temos 28 fundações, que se dizem de apoio à USP, que não estão conveniadas, não existe uma relação formal dessas 28 fundações com a USP. Isso é alguma coisa que está sendo construída, e isso é alguma coisa que essas novas leis trazem: uma oportunidade que é extremamente importante” (destaques nossos).

Entre amigos, portanto, revelou-se algo que a USP não admite publicamente, não informa à sua comunidade, e que o Ministério Público de Fundações finge ignorar: o relacionamento totalmente irregular entre a universidade, as suas unidades e tais entidades privadas.

Em 2018, o Informativo Adusp questionou os promotores de justiça de fundações da capital acerca das irregularidades que envolveram o processo de extinção da Fundação de Estudos e Pesquisas Aquáticas (Fundespa), entre as quais a inexistência de convênio entre essa entidade e o Instituto Oceanográfico da USP, por ela “apoiado”. Não houve resposta. Em 2019, foram solicitadas informações à Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária (PRCEU) quanto à situação atual dos convênios, uma vez que a declaração de Abiko remonta a março de 2018. Decorridas duas semanas, a PRCEU ainda não respondeu.

“Nós temos dois convênios: o primeiro, com a FUSP, que foi assinado agora em janeiro de 2017, e um outro convênio, baseado nesse padrão desse convênio USP-FUSP, que foi assinado com a FDTE em julho de 2017”, detalhou o professor, dando a entender, em seguida, que firmar tais convênios envolve algum tipo de dificuldade e de negociação, mas que tudo estaria bem encaminhado.

“A Reitoria da USP, os dirigentes da USP, estão extremamente comprometidos e compromissados com essa ideia de que a gente consiga assinar convênios de acordo, convênios com todas as demais 28 fundações que ainda não assinaram. É lógico que isso vai depender de um trabalho muito grande da Reitoria, mas também os dirigentes dessas fundações já estão se preparando para que a gente consiga formalizar esta relação. Essa é a primeira questão que eu queria colocar para vocês”.

A confissão mostra compadrio, para não dizer promiscuidade, entre a administração da universidade e as entidades privadas autoproclamadas de apoio. Os “dirigentes da USP” citados na frase acima são, não raramente, os mesmos que participam dos conselhos curadores das fundações privadas, ou coordenam projetos remunerados que elas intermedeiam. O próprio Abiko integrou Grupo de Trabalho composto exclusivamente por docentes ligados a tais entidades, e nomeado, sem alarde, pelo reitor Vahan Agopyan com a finalidade de propor maior “flexibilização” do RDIDP, a pretexto exatamente de adequar o Estatuto do Docente ao Decreto Estadual 62.817/2017.

Afirmou ainda o professor que as fundações de apoio são importantes para viabilizar as atividades de cursos de extensão, “aquilo que a gente chama da educação continuada”, isso porque “nós não queremos que os nossos engenheiros, dentistas, médicos, recebam um diploma da USP e nunca mais retornem à USP, quando a tecnologia se desenvolve e as pessoas têm que se atualizar”. Mas destacou, e o grifo é nosso, ser importante “que a gente consiga fazer com que esses cursos dentro das universidades públicas e gratuitas sejam pagos”!

A interessante explicação para essa contradição em termos (universidades gratuitas x cursos pagos) é a seguinte: “Essa é uma fonte de recursos para a universidade e não só uma fonte de recursos para a universidade mas também uma forma de a universidade se ligar à sociedade, se ligar às empresas e se ligar ao mercado. Porque muitas vezes é através do curso de extensão que a gente deixa de ser aquela torre de marfim que muitas vezes a universidade é conhecida e reconhecida”.

Portanto, está esclarecido: para que a USP deixe de ser uma torre de marfim, nada melhor do que os cursos pagos, que ademais permitem a ela se conectar à “sociedade”, às empresas e ao “mercado”. Acrescentou que as fundações privadas “estão nos auxiliando para que a gente consiga conversar de uma maneira mais aberta, mais direta, mais responsável, mais participativa, com o setor produtivo e com a sociedade que paga os nossos salários, que cobra de nós uma série de resultados, mas que também a gente só consegue entregar alguns resultados se a gente tiver o apoio das fundações de apoio”.

Orador seguinte, Antonio Vargas Figueira, da FUSP, queixou-se da “mídia muito negativa, não só a externa como dentro da própria universidade”, que fica a perseguir as fundações privadas ditas de apoio. “A gente tem sempre uma mídia muito negativa, sempre quando tem um escândalo aparece, a gente sempre lembra da lixeira do reitor da Universidade de Brasília quando fala de fundação de apoio”. Em seguida, porém, admitiu a existência de “maus exemplos” que permitem esse tipo de exposição midiática.

“Aqui [fazendo referência a uma transparência] é só para lembrar que a gente trabalha no terceiro setor, a gente sempre esquece isso, que são entidades privadas sem fins lucrativos, então isso aí faz toda a diferença do mundo. A gente tem que pensar que a gente tem uma fundação, é um patrimônio com uma finalidade social, ou seja, a impressão que dá é que a gente tem feito o uso errado, muitas vezes fazendo um mea culpa das fundações de apoio […] a gente teve maus exemplos e com isso as coisas ficaram ruins e por isso essa má publicidade”.

A frase de Figueira traz duas falácias, que requerem contestação até porque se tornaram, impunemente, lugares-comuns. Na verdade, fundações privadas “de apoio” são empresas (e não “terceiro setor”), ainda que formalmente não possuam fins lucrativos. O lucro toma outra forma, seja como superávit, seja como remuneração dos coordenadores de projetos. E a grande maioria delas não se formou a partir de um patrimônio, como as fundações privadas tradicionais. Ao contrário, valeram-se da apropriação de recursos da instituição “apoiada” (como a USP) para, então sim, constituir um patrimônio.

O diretor-executivo da FUSP reconheceu as benesses fiscais que essas entidades recebem e que, a seu ver, justificam que haja controle da parte do Ministério Público: “Porque a gente tem várias isenções tributárias, reconhecimentos de algumas imunidades e assim por diante, a gente tem alguns benefícios sociais”.

Ele citou diversos projetos “de natureza social e cultural” apoiados por fundações como a FUSP, e que beneficiam grupos sociais vulneráveis: “A gente pensa só nas grandes coisas, nos professores da Poli, da Engenharia, da COPPE, ganhando uns valores absurdos ou coisas desse tipo, mas a gente tem que pensar que essas fundações têm um projeto de natureza social”, “são projetos que têm um impacto social muito grande e não é uma questão que envolve sempre a parte de ensino, que você sempre tem alunos, bolsistas que atuam nesse projeto, isso obviamente tem um impacto na educação”.

Um dos projetos citados é mantido pela ong Smile Train, que dá apoio a cirurgias de reparação de lábio e palato no Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais de Bauru (HRAC), “então para cada cirurgia de reconstituição de palato e lábio essa instituição dá 250 dólares”, empregados para “contratar novos anestesistas para fazer um número maior de cirurgias, ou seja, você tem coisa de bastante impacto direto”. “Obviamente isso é uma função de Estado, mas a gente sabe que o Estado, como a doutora Maria Paula deixou muito claro, não consegue hoje em dia cumprir todas as suas obrigações”. Figueira esqueceu-se de dizer que o HRAC foi ilegalmente desvinculado da USP, em 2014, por seu companheiro de diretoria da FUSP, o então reitor M.A. Zago.

Existem ainda, citou, “muitos recursos disponíveis hoje em dia com a ANP [Agência Nacional do Petróleo] que por lei é obrigada a direcionar alguns recursos do fundo de petróleo, então a gente tem por exemplo esse projeto Tanque de Provas Numérico [TPN] dentro da Escola Politécnica, agora mais recentemente existe esse Research Center in Gas Innovation também, que é um projeto muito grande, recebeu agora R$ 68 milhões da Shell através desses recursos da ANP, e temos também parte do projeto”. Trata-se, explicou, de uma iniciativa conjunta da Fapesp e da Shell, “mas tem uma parte que é administrada pela FUSP”.

Vale mencionar que o TPN está no centro de projetos relacionados ao escândalo que envolveu a FUSP em 2014, bem como de denúncias apresentadas em 2016 pela empresa de engenharia naval Oceânica Engenharia contra a FDTE e contra o professor titular Eduardo Aoun Tanuri e a direção da EP-USP. A Reitoria prometeu “transparência” quanto ao ocorrido na FUSP, mas jamais cumpriu a promessa, e simplesmente ignorou as acusações da Oceânica Engenharia.

Após exibir gráfico apontando a disponibilidade, em 2017, de quantia próxima a R$ 1,3 bilhão para projetos com petróleo, via ANP, Figueira declarou que “obviamente a universidade não conseguiria captar isso tudo, então é necessário realmente ter uma fundação de apoio que tenha agilidade para fazer isso e fazer essa prestação de contas que é extremamente complexa”. Sic! Pobre USP, sua excelência, embora cantada em prosa e verso, é obviamente tão precária que ela não conseguiria captar recursos da ANP; é lerda demais; e ainda por cima certamente não daria conta de fazer a correspondente prestação de contas, tarefa de alta complexidade que somente pode ser confiada à FUSP, portento da contabilidade!

O diretor-executivo da FUSP voltou então ao tema dos “problemas” enfrentados pelas fundações dentro da USP, que ele abordou de passagem no início de sua exposição, quando se referiu à “mídia muito negativa, não só a externa como dentro da própria universidade”. As palavras transcritas a seguir atestam que é sempre fascinante perceber que, para os docentes ligados a essas entidades privadas, a lei simplesmente não existe. E que “ideologia” é sempre a dos outros, nunca a nossa.

“Então a gente tem muito problema dentro das próprias universidades, eu não sei como é a Unicamp e a Unesp, mas na USP tem certos setores ideológicos, eles questionam, levantam que a gente não faz licitação, não faz concurso público, conflitos de interesse: eu sou professor da universidade e sou diretor ao mesmo tempo, acham que existe” (destaques nossos), começou Figueira. “Mas se você entendeu o que é uma fundação, que é um patrimônio com objetivo social, eu não vejo nada de errado eu, que sou da universidade e tenho uma formação de pesquisador, poder trabalhar dentro da fundação para ela atender melhor aos objetivos da instituição, da universidade”.

Depois de apontar, com alguma razão, que o manual do TCE faz uma salada terminológica ao definir “fundação de apoio” e “fundação conveniada”, ele abordou a questão da logomarca das universidades e unidades, novamente pelo viés muito próprio dos privatistas. A seu ver, existe “preconceito” quanto à “utilização da marca de excelência da administração pública, quer dizer, parece que a fundação está usando o nome da USP, Unesp, Unicamp, para se beneficiar, isso aí é uma coisa que não é exatamente isso, o benefício que a gente tenta buscar é exatamente para as ICTs”.

Também não se furtou de comentar o percentual da taxa de administração, “os famosos 15%” nas suas palavras, questão levantada no primeiro painel por Sérgio Rossi, diretor-geral do TCE. “De novo isso aí é um teto, na USP são 30 fundações, se você estiver cobrando 15% vai aparecer uma que vai cobrar bem menos. Na realidade a lei de mercado não vai permitir que chegue a números abusivos desse tipo”. Ele informou que no acordo de cooperação entre USP e FUSP foi definida uma taxa de 10% de “reembolso”. Viva a lei do mercado! (Próxima e última matéria da série:Fernando Peregrino, presidente do Confies, ataca a burocracia e os órgãos de controle”)

EXPRESSO ADUSP


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