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Slogan “a USP não vai parar” é coerente com a inserção da universidade na lógica neoliberal e empresarial, diz professora Ana Fani em webinário organizado pela Adusp
“Fomos lançados no ensino a distância em cinco dias, sem discussão e sem consulta à comunidade”, destacou o professor Marcelo Zaiat (EESC) no evento realizado em 30/4. “Não consigo entender como a Faculdade de Educação (FE) não foi chamada para essa discussão”
O atual cenário da pandemia da Covid-19 projeta duas questões fundamentais para a sociedade: de uma parte, pensar na urgência do presente e em políticas mitigadoras de modo a que toda a população tenha acesso a possibilidades de superação da crise. De outra, criar espaços para pensar numa sociedade desvinculada da lógica neoliberal na qual vivemos, assentada na desigualdade.
A reflexão foi proposta pela professora Ana Fani Alessandri Carlos, docente do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, no webinário “A universidade em tempos de pandemia”, promovido pela Adusp na tarde desta quinta-feira (30/4). A atividade, como explicou na abertura do encontro o presidente da Adusp, professor Rodrigo Ricupero, é a primeira que a entidade realiza neste formato durante a pandemia da Covid-19 e terá continuidade nas próximas semanas.
A professora Ana Fani ressaltou que a situação gerada pela disseminação da doença “não é uma questão meramente da saúde nem da economia, mas vem se somar a uma crise profunda da sociedade urbana” e ganha amplitude de questão social por “aprofundar a desigualdade social que percebemos na cidade”. Nem mesmo a estratégia de isolamento social adotada para combater a doença é hegemônica, porque não se dá em toda a cidade da mesma forma. “Nos espaços periféricos, a vida continua se realizando para fora das casas. O isolamento social e a quarentena se realizam de modo desigual. O simples ato de ficar em casa ou de ter aceso a tratamentos revela a desigualdade, e a segregação aparece de forma gritante no momento em que estamos vivendo”, apontou.
Na avaliação da professora, o vírus ataca desigualmente a sociedade, apesar do discurso que afirma que a sua expansão seria “democrática”. “No plano do discurso se encobre que o sistema de saúde já vem sendo dilapidado e degradado pelos governos, com situações como a emenda do teto dos gastos aprovada no governo Temer [EC 95]”, considera .
No cenário pós-pandemia, além de seguir lutando na defesa do sistema público de saúde, será necessário enfrentar uma situação ainda mais grave porque “o estágio neoliberal do capitalismo está erodindo as bases sociais da sociedade”. Se a pandemia escancara a extrema pobreza e a desigualdade no combate ao vírus, as políticas devem propor soluções desiguais numa sociedade desigual.
“A universidade deve pensar em qual é o seu papel não só para compreender o momento presente, mas pensar o momento do futuro, que só pode ser atingido se mergulharmos a pensar nas condições que fazem da nossa realidade essa desigualdade de direitos que vivemos”, afirma a docente.
“Recado de que ‘a USP é para os fortes’ é extremamente nefasto”
Na sequência do debate, o professor Marcelo Zaiat, docente da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC), abordou questões mais localizadas nas orientações e determinações que a Reitoria da USP vem emitindo em seus comunicados desde o início da pandemia.
O primeiro deles, publicado no dia 12/3, dizia que a USP estava tomando “as providências necessárias para a proteção de sua comunidade”. Em 13/3, foi comunicada a suspensão das aulas a partir do dia seguinte e, no próprio dia 17/3 foi lançado o slogan “a USP não vai parar”.
“Fomos lançados no ensino a distância (EaD) em cinco dias, sem discussão e sem consulta à comunidade”, afirmou Zaiat. “Teríamos tempo para poder pensar e discutir com a comunidade, mas isso não aconteceu. Não consigo entender como a Faculdade de Educação (FE) não teve um protagonismo nisso e não foi chamada para essa discussão.” Num primeiro momento, lembrou, o chamado era para que os docentes aderissem ao sistema de EaD se se sentissem confortáveis com ele. Logo a seguir, porém, “fomos levados para uma onda de ‘faça, não importa como’”.
Na avaliação do docente, o reitor Vahan Agopyan —“um engenheiro, e eu também sou engenheiro” —procurou transmitir uma imagem de reafirmar a liderança da USP, inclusive como instituição que dá diretrizes à sociedade. A expectativa desse discurso era de que tanto alunos quanto professores estivessem relaxados em sua casa, preocupados apenas em aprender a lidar com novas tecnologias e se adaptar a esses meios. A realidade, contudo, é de pessoas que não estão relaxadas, convivem com pessoas que são do grupo de risco da doença, estão com medo, em luto e vivendo toda sorte de problemas.
Uma das mensagens que a universidade está transmitindo com essa postura é de que “a USP é para os fortes”, com a indicação de que “aos fracos” resta trancar a matrícula —e a universidade, afinal, já estendeu o prazo para o trancamento. “Esse é um recado extremamente nefasto”, diz Zaiat.
O professor lamenta o fato de que a universidade não tenha parado para discutir e refletir sobre a questão, que poderia expor suas próprias fragilidades e aquelas decorrentes de uma sociedade que lamenta a queda da atividade econômica apontando para a queda de emissões registrada desde o início da pandemia. “A USP vai sair dessa situação orgulhosa de não ter perdido um dia de aula. Olhando como docente, isso é muito triste. É muito pouco a universidade atravessar uma pandemia como essa e sair com essa visão”, concluiu.
Antes de abrir a palavra aos docentes que assistiam ao debate, o presidente da Adusp salientou que, no fundo, a universidade vai produzir uma exclusão dos alunos oriundos de setores sociais com menos recursos que chegaram ao ensino superior, por vestibular ou por cotas, nos últimos anos. “Há uma semelhança do projeto de quarentena na sociedade, separando quem pode e quem não pode ficar em casa, com quem pode estar na EaD e quem não pode”, considera Ricupero.
Entre as manifestações, a vice-presidenta da Adusp, professora Michele Schultz Ramos, lembrou a questão da desigualdade de tratamento dentro da universidade, como é o caso dos trabalhadores terceirizados, inclusive do grupo de risco, que tiveram que continuar trabalhando. Pelo menos dois funcionários terceirizados de uma empresa de vigilância que prestavam serviço à universidade faleceram em decorrência da Covid-19.
“O slogan ‘a USP não vai parar’ é absolutamente lógico e marca definitivamente o rumo escolhido pela USP no qual a universidade se insere na lógica neoliberal e é uma empresa”, disse a professora Ana Fani Carlos. “O problema não é que o terceirizado não tem direito à quarentena: o problema é que uma universidade que tem compromisso social não poderia ter trabalhadores terceirizados cuja vida está em risco, do mesmo modo que os nossos alunos que estão no Crusp [Conjunto Residencial da USP] também correm riscos”, afirmou.
“Discurso da USP é prepotente, ela é o alter ego de Deus”
O professor Marcos Bernardino (EACH) concordou com Ana Fani quanto à caracterização da crise, “que não é sanitária, não é econômica, mas urbana”. Também disse ser correta a avaliação de Zaiat quanto à linha aplicada pela Reitoria. “Como é que com uma crise dessas se faz açodadamente ensino a distância — e não se chama um educador para participar de um comitê de crise. É ridícula essa situação, é um absurdo”.
O professor Antonio Almeida (Esalq) é outro que compartilha a análise de Ana Fani de que a crise é antes de tudo urbana. “A tragédia da pandemia vai crescer muito”, destacou, dando como exemplo cenas que viu na TV do transporte público completamente lotado em Goiânia. “A desigualdade vai aumentar muitíssimo, R$ 600 é um ‘troco’”, disse sobre o auxílio aprovado pelo Congresso Nacional, observando que ao mesmo tempo são implantadas medidas que retiram benefícios dos trabalhadores. A seu ver, a atitude da Reitoria frente à epidemia dá margem a distorções: “Não tem cabimento colegas que estão aproveitando essa situação para fazer o semestre ainda mais pesado do que normalmente é”.
“O discurso da USP é prepotente, ela é o alter ego de Deus. Vai dar uma casa para o aluno que mora com dez pessoas?”, questionou o professor Celso Eduardo Lins de Oliveira (FZEA), diretor da Adusp. Ele acredita que, ao contrário do que preconiza a visão otimista de muitas pessoas de que o mundo pós-epidemia será menos desigual, o sistema capitalista vem agindo de modo que as coisas continuem iguais. “Há o desejo de uma sociedade melhor, mas não vai ser assim. A Bolsa de Valores não fechou, o mercado do petróleo também não. As forças do capitalismo financeiro continuam”. A seu ver, a ideia de que “nós estamos contribuindo, vocês só sabem reclamar” é que está por trás do discurso de que a USP não pode parar. “A universidade não é um locus de democracia”, afirmou.
“Minha opinião é de que não voltaremos a dar aulas presenciais antes da descoberta da vacina [contra Covid-19]. Tenho salas de aula lotadas, com alunos grudados. Que fazer?”, indagou a Zaiat o professor Farid Tari, do Instituto de Ciências Matemáticas e Computação (ICMC). “Tenho uma certeza: a volta não vai ser como a comunidade deseja, mas como a Reitoria quer, porque não está sendo discutida”, respondeu Zaiat.
Ana Fani também comentou a questão: “A USP tem que parar para discutir o que fazer nesse momento. Parar entre aspas, porque discutir a univeridade, conversar com os alunos, não é parar. Este sim é um compromisso com a sociedade. Alunos estão informados de que isso faz parte da construção da cidadania”.
Antes de encerrar o debate, o presidente da Adusp chamou atenção para o comportamento autoritário da Reitoria: “A USP pode ter aula a distância, mas não pode ter Conselho Universitário a distância. Não foi chamado para discutir a crise. Essa série de comunicados [da Reitoria] no fundo é para introjetar a culpa em quem não está colaborando com essa política”.
Os problemas são imensos em todos as unidades, comentou. “Esses 90% [índice oficial de oferta de disciplinas online] incluem o professor que mandou um e-mail para a turma”. Ele traçou uma analogia entre o comportamento da Reitoria frente à situação do corpo discente e o que aconteceu nos hospitais da Itália no auge da epidemia: “A USP está escolhendo para quem vai o respirador: para quem tem dinheiro, conexão maravilhosa [com a Internet], quarto sozinho. E para os outros é trancamento”.
A Adusp continuará a promover webinários durante o período da pandemia. Na próxima quinta-feira (7/5), às 16h, o tema será a posição da entidade frente à atual situação da universidade. O debate poderá ser acompanhado pela página da Adusp na Internet.
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