Pesquisa nacional comprova que a pandemia afeta mais a produtividade acadêmica de mulheres com filhos e pode aumentar disparidade de gênero na ciência

Levantamento online promovido pelo grupo Parent in Science teve quase 15 mil respostas. Entre os docentes, 76% dos homens sem filhos disseram ter conseguido submeter artigos, contra 47,4% das mulheres com filhos. Conclusões devem orientar a formulação de políticas de apoio aos grupos mais vulneráveis, defendem organizadores do trabalho

A pandemia da Covid-19 está afetando diretamente o trabalho e a produtividade dos cientistas — docentes/pesquisadores, alunos de pós-graduação e pós-doutorandos — das universidades brasileiras. Porém, os efeitos não são os mesmos para todos: uma das diferenças demonstradas por uma pesquisa realizada pelo grupo Parent in Science entre abril e maio é a da proporção de docentes que conseguiram submeter artigos científicos conforme haviam planejado. Entre os homens, 68,7% responderam que conseguiram, enquanto o percentual de mulheres foi de 49,8%. Porém, quando se analisa o efeito da parentalidade, a diferença sobe bastante. Entre os homens sem filhos, 76% disseram ter submetido artigos, contra 47,4% das mulheres com filhos.

“Por que esse parâmetro é importante? Porque no final das contas nós somos avaliados em grande parte pelo número de artigos publicados. Se as mulheres não conseguirem submeter os artigos nesse período, isso vai ter um impacto gigantesco na sua carreira em 2020 e 2021”, aponta Leticia de Oliveira, docente do Instituto Biomédico da Universidade Federal Fluminense (UFF) e integrante do Parent in Science.

A idade dos filhos é outro ponto que chama a atenção no levantamento. O impacto no trabalho é muito maior quando as crianças têm até 12 anos. Para os homens, porém, a idade dos filhos pouco interessa, enquanto para as mulheres isso faz muita diferença.

Quando a criança tem de um a seis anos, 52,4% dos homens conseguiram submeter artigos, contra 28,8% das mulheres. Com crianças de menos de um ano, a diferença é ainda maior: 61,1% para os pais e 32% para as mães.

Além de gênero e parentalidade, o levantamento abordou o efeito da raça, concluindo que os principais impactos são sentidos pelas mulheres negras, com ou sem filhos. Os estudos sobre a questão racial serão aprofundados no projeto, que defende a importância de aumentar a diversidade na ciência, diz Leticia, ressaltando que as mulheres negras representam somente 3% dos docentes que orientam na pós-graduação e 7% do pessoal com bolsas de produtividade no país.

Os dados obtidos pelo levantamento Produtividade acadêmica durante a pandemia: efeitos de gênero, raça e parentalidade são importantes para a formulação de políticas de apoio, ressalta Letícia nas declarações prestadas ao Informativo Adusp, porque elas devem ser direcionadas às pessoas mais vulneráveis: as mulheres com filhos pequenos, as que entraram cedo na carreira e as mulheres negras.

Editores relatam baixo número de artigos submetidos por mulheres na pandemia

O Parent in Science nasceu em 2016 por iniciativa de Fernanda Stanisçuaski, docente do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) — que, em sua página no Currículo Lattes, informa ser mãe de três filhos e ter tirado licença-maternidade em 2013, 2015 e 2018. O grupo surgiu com o intuito de levantar a discussão sobre maternidade e paternidade no universo da ciência no Brasil e comemora algumas mudanças já conquistadas para as mães no cenário científico, como a inclusão de critérios específicos que consideram os períodos de licença-maternidade na análise dos currículos em editais de várias instituições.

Logo nos seus primeiros levantamentos, o grupo constatou, por meio da análise dos currículos Lattes, que após o nascimento dos filhos há uma queda no número de artigos publicados pelas cientistas mães, o que não ocorre com os pais nem com as mulheres que não têm filhos. Essa queda na produtividade se mantém por quatro a cinco anos.

Neste ano o Parent in Science pretendia ampliar sua atuação no país, realizando eventos e simpósios – mas surgiu a pandemia. A partir de então, as integrantes do grupo começaram a receber relatos pelas redes sociais, principalmente de mães, dizendo que estavam impossibilitadas de trabalhar durante esse período e que não sabiam como conciliar as atividades remotas com a maternidade, até porque tinham que acompanhar também as aulas online dos filhos menores — cenário apresentado pelo depoimento de docentes ao Informativo Adusp em reportagem publicada em abril.

Preocupado especialmente com a questão dos prazos para as alunas de pós-graduação com filhos, o grupo lançou uma pesquisa online para discentes de mestrado e doutorado e recebeu quase 10 mil respostas. Assim que chegaram os primeiros resultados, o Parent in Science enviou uma carta à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) mostrando os dados e pedindo prorrogação de prazos. “Nunca recebemos uma resposta oficial, mas de fato a Capes prorrogou por três meses as entregas e as bolsas”, conta Leticia.

Enquanto o grupo lançava outros dois questionários dirigidos a pós-doutorandos e docentes, editores de revistas científicas publicavam comentários no Twitter dizendo que nunca havia sido tão baixa a submissão de artigos por mulheres como durante a pandemia.

Infrográficos: Parent in Science

“Ficamos muito preocupadas. Já há um gap grande pela questão da maternidade e, com a pandemia, a situação na disparidade de gênero ficaria mais complicada”, diz a docente. “A maternidade não é um problema, é uma atividade humana que a pessoa tem todo o direito de exercer. A questão é a falta de políticas de apoio.”

Na avaliação de Letícia, a pandemia pode gerar um aumento na disparidade de gênero, comprometendo algumas das conquistas dos últimos anos. Uma delas, exemplifica, é um maior equilíbrio entre homens e mulheres na autoria de artigos. De acordo com relatório publicado pela editora Elsevier a partir de artigos indexados na base de dados Scopus, a presença na autoria subiu de 55 mulheres a cada cem homens no período de 1999 a 2003 para 80 mulheres a cada cem homens de 2014 a 2018.

“Não chegamos em cem para cem ainda, mas melhoramos sensivelmente”, considera a docente. Porém, lembra, o dado se refere apenas à autoria de artigos: em áreas como o exercício de cargos ou posições de poder, o equilíbrio ainda está bem distante.

Agências devem ter editais específicos, para evitar disparidades de gênero e raça

Ao todo, quase 15 mil acadêmicos responderam à pesquisa. O maior contingente foi o de alunos de mestrado e doutorado: 9.970. Nesse grupo, 41,1% dos homens sem filhos afirmaram que estão conseguindo trabalhar remotamente no período da pandemia, contra 11% das mulheres com filhos. Na opinião de 82% dos pós-graduandos, a pandemia está impactando o progresso da dissertação ou tese. Entre os pós-doutorandos houve 619 respostas. Apenas 2,2% das mulheres com filhos responderam que estão conseguindo trabalhar de forma remota.

Entre os docentes, 18,3% dos homens disseram que conseguem trabalhar remotamente, enquanto para as mulheres o índice é de 8%. A pesquisa registrou 3.629 respostas de docentes de todo o Brasil, 70% concentrados no Sul e Sudeste.

Os principais problemas apontados pelas mulheres em relação ao trabalho remoto foram, de longe, os cuidados com os filhos e a casa, mas cerca de 30% das respostas também mencionaram cuidados com idosos.

O Parent in Science ressalta na publicação que alguns pontos levantados nos questionários não puderam ser analisados, devido ao baixo número de respostas. “Um exemplo é a questão sobre cuidados com filhos com deficiência. Sabemos que este momento da pandemia tem sido particularmente complexo para estas famílias, com a restrição de acesso a terapias e tratamentos e a redução das redes de apoio. Infelizmente, não conseguimos trazer números para esta discussão. No entanto, frisamos a importância de se trazer esta questão para dentro do meio acadêmico e científico”, diz o informe.

“Acreditamos que esse levantamento pode ajudar na construção de políticas de apoio à maternidade e às mulheres para diminuir a disparidade de gênero”, considera Letícia de Oliveira, que também coordena o Grupo de Trabalho Mulheres na Ciência da UFF. “Em relação às agências, uma questão importante é como serão analisados os currículos e a produção referentes aos anos de 2020 e 2021, porque a disparidade de gênero vai aumentar muito se não forem adotadas ações para mitigar os efeitos da pandemia também em relação à carreira das cientistas.”

A publicação do Parent in Science ressalta que os resultados apresentados “fortalecem a discussão sobre gênero, raça e maternidade como fatores contribuintes para a sub-representação feminina na ciência” e “criam um referencial teórico importante para orientar políticas públicas de auxílio às mães na área acadêmica”.

O informe aponta as seguintes sugestões às agências de fomento e universidades, a partir dos resultados da pesquisa: aumentar o prazo para submissão em editais de fomento; flexibilizar o prazo para prestação de contas e relatórios de projetos; elaborar editais específicos destinados aos grupos mais atingidos, para evitar um aumento da disparidade de gênero e raça; aumentar o tempo de análise do currículo para mulheres com filhos, em editais de financiamentos e concursos; programar os horários de reuniões considerando o horário escolar dos filhos; redistribuir, sempre que possível, a carga horária didática e atividades administrativas de maneira a não sobrecarregar os grupos de cientistas mais atingidos pela pandemia.

EXPRESSO ADUSP


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