A sessão do Conselho Universitário de 30/11/2021 pretende apreciar a “Proposta de Política de Inovação para a USP”, que, se aprovada, alterará profundamente os pilares de pesquisa, ensino, cultura & extensão da Universidade de São Paulo. Do modo como está redigida, praticamente se insere um novo e estranho pilar na universidade pública: a ‘criação de empresas’. Apesar de aprovada por diversas instâncias ligadas à administração central da USP, como a Procuradoria Geral (PG), a Comissão de Orçamento e Patrimônio (COP) e a Comissão de Legislação e Recursos (CLR),  a ‘Proposta’ carece de rigor técnico e científico. Prescinde-se, por exemplo, da definição de seus termos centrais, quais sejam ‘inovação’ e ‘empreendedorismo’. Para este último, não há sequer tentativa de conceituá-lo. O termo ‘inovação’, por sua vez, é definido genericamente como “o processo que parte de uma ideia e termina com impacto na sociedade, seja ele social, cultural, ambiental ou econômico”. No entanto, vários trechos do documento em que o termo é utilizado conflitam com tal definição precária, gerando graves e incontornáveis problemas de compreensão. Na esteira da falta de rigor, de acordo com seu artigo 3º, a “Política de Inovação da Universidade de São Paulo é uma visão de futuro”. A expressão do senso comum — ‘visão de futuro’ — é antecedida por uma partícula de indefinição: “uma”. Dentre tantas visões de futuro, qual seria esta a que se refere o documento? Não se sabe.

A tramitação da “Política de Inovação” ocorreu em pouco mais de seis meses, recebendo pareceres favoráveis da COP, da CLR e da PG, tendo esta última, inclusive, colaborado ativamente na redação final do documento, feita em conjunto com a Auspin – Agência USP de Inovação, órgão que encabeça a proposta. A velocidade com que a minuta final chega para a deliberação do CO é diretamente proporcional ao interesse da Reitoria em apreciar a proposta ainda este ano.

Segundo o parecer da PG, desde 2020 “já vige o entendimento pela [sic] possibilidade jurídica de docentes e servidores participarem do quadro societário de empresas que formem contratos de licenciamento de tecnologia com a USP”. Além disso, confirma-se a compatibilidade entre a legislação federal (art. 11, decreto federal 9.283/2018) e a legislação estadual (art. 243, lei 10.261/68) no que tange à possibilidade de serem firmados contratos de licenciamento de propriedade industrial entre a USP e a empresa que tenha em seu quadro de sócios pesquisadores da Universidade. A PG reconhece ainda a intenção evidente de impulsionar a criação de empresas dirigidas por docentes, discentes e servidores técnico-administrativos da Universidade, não questionando seu mérito. Sugere que as propostas de acordos colaborativos entre a USP e essas empresas sigam ‘rito diferenciado’, retirando das unidades as instâncias de aprovação e formalização dos acordos, que ficariam a cargo dos órgãos centrais, mais capazes, de acordo com o parecer, de “neutralizar o potencial de conflito de interesses” que pode surgir entre a universidade pública e o docente dono da empresa, que “naturalmente defenderá interesses da empresa em que possui participação societária”.

A minuta de Resolução a ser submetida ao próximo Co inicia-se com três considerações: 1. A missão da USP de promover todas as formas de conhecimento, por meio do ensino e da pesquisa, bem como estender à sociedade serviços indissociáveis das atividades de ensino e pesquisa; 2. A missão da USP, como Instituição de Ciência e Tecnologia Pública, de fomentar a inovação tecnológica, social e ambiental por meio da geração de conhecimento e de atividades de ensino e pesquisa; 3. A inovação como objetivo estratégico de políticas públicas nacionais e estaduais, ressaltando-se que a USP está integrada ao Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação. Em relação às considerações iniciais, não se explicita a relação espúria entre a Universidade e as empresas, tema que ficará bastante transparente ao longo da Resolução e, sobretudo, em seu Anexo.

A Resolução, que conta com apenas quatro artigos, começa por afirmar sua consonância em relação às legislações estaduais e federais, e condicionar, em seu artigo 2º, a aplicação da Política de Inovação à publicação de uma regulamentação específica acerca da gestão do ‘Núcleo de Inovação Tecnológica’. Dentre os itens listados, constam, por exemplo:

v. o empreendedorismo, por meio da gestão de incubadoras e da participação no capital social de empresas que explorem Propriedade Intelectual da Universidades;

vi. o compartilhamento e a permissão de uso por terceiros de seus laboratórios equipamentos, recursos humanos e capital intelectual;

ix. a participação, a remuneração, o afastamento e a licença de servidor ou empregado público nas atividades decorrentes da inovação e empreendedorismo;

xii. a gestão de conflitos de interesses nas relações da USP com empresas nascentes que tenham como sócios cotistas pessoas com vínculo com a USP (docentes, servidores técnicos e administrativos, discentes ou pós-doutorandos).

À Reitoria da USP cabe a implementação e o acompanhamento da Política de Inovação, que é tomada, no artigo 3º, como “uma visão de futuro”.  O Anexo à Resolução, intitulado “Política de Inovação da Universidade de São Paulo – Dos Princípios, Valores e Diretrizes da Política de Inovação da Universidade de São Paulo” traz já nos princípios da Política de Inovação o pressuposto de que “a inovação é mais fértil em um ambiente colaborativo e multidisciplinar, seja com empresas públicas ou privadas, governos, universidades, centros de pesquisa no Brasil e exterior”. Também ressalta-se a necessidade de simplificação dos processos e de uma burocracia mínima, a fim de garantir transparência. O último princípio incita o fomento à “cultura da inovação e do empreendedorismo” junto à comunidade uspiana. Como não se conceituam adequadamente nem ‘inovação’ nem ‘empreendedorismo’, não se é possível alcançar o significado dessa tal ‘cultura’.

A seção seguinte traz os ‘Valores’ da Política, iniciando-se por uma pretensa definição de ‘inovação’: “Inovação é o processo que parte de uma ideia e termina com impacto na sociedade, seja ele social, cultural, ambiental ou econômico”. A seguir coloca-se a inovação e o empreendedorismo como “partes fundamentais e indissociáveis dos processos de ensino, pesquisa e extensão universitárias”. Perceba-se aqui que a ideia de indissociabilidade, geralmente ligada ao tripé universitário, é transferida para os conceitos obscuros de ‘inovação e empreendedorismo’.

A aplicação da definição de ‘inovação’ trazida pelo documento gera profundas dificuldades de compreensão, como no trecho “a Universidade participa do processo de inovação, podendo ser o agente de implementação da inovação nos seus processos internos”. Ora, se a inovação, ela própria, é tomada como um processo, o ‘processo de inovação’ seria o que exatamente? E a seguir, o trecho ‘a implementação da inovação em seus processos’ poderia ser lido como ‘a implementação do processo em seus processos’. Não é possível extrair sentidos lógicos dessas passagens.

No último item do Anexo, intitulado Diretrizes, há uma tentativa de inserção das atividades de inovação e empreendedorismo ao longo do tripé universitário, inclusive recomendando sua valorização nas avaliações para progressão de carreira de docentes e servidores. Menciona-se a possibilidade de recebimento de ‘bolsa de inovação’ e prêmios por docentes, discentes e servidores que se envolverem em projetos de P, D & I (Pesquisa, Desenvolvimento & Inovação). Oferece-se a infraestutura da Universidade, especialmente seus laboratórios, a empresas e pessoas físicas.

Quanto ao Ensino, as diretrizes recomendam que os discentes cursem disciplinas específicas sobre inovação e empreendedorismo, independentemente da Unidade de oferecimento, incentivando a formação de turmas multidisciplinares e interunidades. Recomenda-se ainda a valorização do empreendedorismo e da inovação nos processos de admissão à iniciação científica e à pós-graduação.

Quanto à Pesquisa, incentiva-se a realização de projetos em colaboração com empresas, sendo que a Propriedade Intelectual gerada será licenciada com exclusividade ao parceiro privado, com a adequada contrapartida econômica ou financeira. Afirma-se também que a USP apoiará a criação de empresas nascentes por discentes, docentes e servidores a fim de explorar ‘tecnologias da USP’. Quanto à Cultura & Extensão, recomenda-se que a ‘cultura’ da inovação e do empreendedorismo seja contemplada em programas, projetos, atividades e cursos.

Por fim, há o último sub-item, 3.5, intitulado “Criação de Empresas”. Nele há cinco tópicos sobre o fomento e o incentivo à criação de empresas nascentes, com participação de discentes, docentes e servidores em seu capital social. Menciona-se a reversão integral da propriedade intelectual às empresas, mediante contrapartida econômica ou financeira. No último tópico, lê-se: “a USP, e/ou suas Unidades, podem constituir ou participar de fundos de investimento que invistam em empresas que explorem suas tecnologias, observada a legislação em vigor”.

Causa perplexidade a tramitação e aprovação pelos órgãos centrais da USP de um documento com tamanha inconsistência e falta de rigor, sendo as mais evidentes a indefinição de termos fundamentais e intensamente repetidos ao longo do documento, como ‘inovação’ e ‘empreendedorismo’.

Exortamos o Conselho Universitário a barrar a proposta e sair em defesa plena do ensino e da pesquisa públicos e socialmente referenciados!

Diretoria da Adusp

26 de novembro de 2021

EXPRESSO ADUSP


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