Carlotti Jr. imaginou que a entrevista no “Roda Viva” seria um passeio, mas teve de responder a perguntas incômodas sobre falta de docentes
As ilustrações reproduzidas foram feitas ao vivo no programa por Luciano Veronezi

A entrevista concedida nesta segunda-feira (28/8) ao programa “Roda Viva”, da TV Cultura, pelo reitor Carlos Gilberto Carlotti Jr. surpreendeu pelo teor crítico de várias das perguntas a ele dirigidas por jornalistas que compuseram a bancada de entrevistadores(as). Já na pergunta inicial o reitor da USP foi questionado pela âncora do “Roda Viva”, jornalista Vera Magalhães, a respeito dos graves problemas de falta de docentes e cancelamento de disciplinas no curso de Letras da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH).

Ao abrir a entrevista, Vera relatou que, após anunciar que receberia o reitor da USP no “Roda Viva”, a TV Cultura recebeu milhares de mensagens “de alunos, de professores, de servidores”, com sugestões de assuntos a serem abordados. “E essa questão da falta de professores em diferentes faculdades, mas notadamente na FFLCH, e no curso de Letras, apareceu muito fortemente”, destacou a jornalista.

“Tem problemas nas Línguas Orientais, mas não só, também em Espanhol e outras graduações [sic], pessoas dizendo que não tiveram a oferta de disciplinas obrigatórias. Queria que o senhor explicasse o que está acontecendo sobretudo com essa importante faculdade, que é a que tem mais alunos da USP, e o que a Reitoria está fazendo a respeito”, disse a âncora, para espanto de Carlotti Jr.

O reitor respondeu da maneira habitual. “A USP desde 2014 tem contratado muito poucos professores”, admitiu, atribuindo esse fato à “crise financeira” e, depois, à pandemia de Covid-19. “E nós diminuímos de em torno de 6 mil professores para 5.100 professores. Quando nós assumimos o mandato, o nosso objetivo é voltar a ter esse número de 2014. Então estabelecemos um plano, aprovamos esse plano, apresentamos para o Conselho Universitário [Co], apresentamos para toda a comunidade e agora já estamos implementando”, afirmou, apresentando números de diferentes editais até chegar ao total de 876 contratações prometidas, e defendendo a contratação escalonada entre 2022 e 2025.

“Por que fazer esse escalonamento? Porque é muito difícil fazer a contratação de um número muito grande de professores num curto espaço de tempo. Você não tem candidatos para todas essas vagas”, alegou Carlotti Jr. “Agora, aquelas unidades que precisavam de vagas puderam e podem fazer antecipação dessas vagas de [20]24 e [20]25”.

As justificativas apresentadas pelo reitor não convenceram a âncora do programa, que cobrou medidas imediatas. “Mas essa questão específica do curso de Letras, que é do primeiro semestre e é uma questão muito aguda, o que está sendo feito para mitigar o prejuízo para os alunos com essa falta de professores?”, insistiu Vera.

Também aqui, as explicações de Carlotti Jr. ao responder a essa incômoda indagação seguiram a trilha habitual, ao delegar às unidades a responsabilidade pela solução dos problemas de reposição da força de trabalho. Talvez por ato falho, ele usou a expressão “vagas” para se referir aos(às) docentes a serem repostos(as) nas unidades, como se as verdadeiras vagas já não existissem nos cursos e tivessem que ser “distribuídas” entre unidades e departamentos.

“A unidade recebe um tanto de vagas [sic]. Nesse caso são 60 vagas que foram para a FFLCH. Foi feita uma comissão, eles fizeram a distribuição dessas vagas, agora nós estamos verificando se tem alguma imperfeição no sistema, que a gente possa corrigir. Mas foram [sic] um número grande de vagas para a FFLCH, uma comissão muito cuidadosa que fez um trabalho muito sério para fazer a distribuição entre os diferentes departamentos”, disse o reitor.

“É muito difícil, na Reitoria, você enxergar todas as pequenas particularidades que nós temos na universidade”, continuou, na mesma linha de se eximir de cobranças. “Então você tem que contar com a faculdade, você tem que contar com a congregação, com os departamentos, com os chefes de departamento para fazer essa regulação fina do que acontece dentro da universidade”, alegou, sem mencionar que a escassez aguda de docentes na FFLCH foi relatada mais de uma vez pelo representante da respectiva congregação em reuniões do Co (como relatado em audiência pública na Alesp).

Embora na reunião do Co de 22/8 Carlotti Jr. tenha pretextado a redução de receitas do ICMS como justificativa para não realizar futuras contratações, no “Roda Viva” ele tangenciou essa questão, preferindo utilizar como bode expiatório o fato de a universidade pagar aposentadorias e pensões de docentes e seus dependentes. Parece ser a primeira vez que tal argumento surge na retórica da Reitoria, ao menos publicamente.

“Nós temos um objetivo macro, de repor os docentes como nós tínhamos em [20]14, e não é simples a reposição, você precisa fazer todo um cálculo financeiro para ver se você consegue absorver essas contratações, porque outro ponto que nós precisamos entender na universidade é que os aposentados são pagos pela universidade, então quando o professor se aposenta ele não sai da folha. Então eu não posso fazer uma substituição automática de um professor sem olhar a condição financeira da universidade”, alegou.

Esse argumento não se sustenta, no entanto, uma vez que trata de forma simplista e equivocada a questão do pagamento de aposentada(o)s e pensionistas. O verdadeiro problema é o subfinanciamento e a insuficiência financeira, algo cotidianamente denunciado pelo GT Verbas da Adusp e que a Reitoria ignora. De acordo com a lei 1.010/2017, o Estado deveria arcar com a diferença entre o gasto total com pagamentos de aposentadorias e pensões e o arrecadado com as alíquotas previdenciárias. De forma que a universidade não arca com pagamentos de aposentados(as) e pensionistas, mas sim com o pagamento da insuficiência financeira que é de responsabilidade do governo estadual.

“[R$]5 bilhões de verba enquanto na Letras faltam 114 professores no mínimo”, resumiu no chat do YouTube uma pessoa, provavelmente uma estudante, que assistia à entrevista, fazendo referência aos valores que a USP tinha em caixa em dezembro de 2022 (R$ 5,6 bilhões), conforme dado divulgado pela própria Reitoria no Diário Oficial do Estado.

FFLCH precisa de 114 contratações, das quais 80 imediatamente

O jornalista Fernando Andrade (Rádio CBN) foi outro que levantou na entrevista a questão da falta de docentes, citando documento do Departamento de Letras Modernas (DLM) que aponta redução do número de docentes em todas as suas habilitações, em relação a 2014: Alemão, de 72 para 47; Espanhol, 16 para 12; Francês, 13 para 9; e Inglês, 17 para 10. “O documento mostra que seriam necessárias 114 contratações no geral, mas de imediato, para funcionar, 80. O senhor sinalizou 60 para a FFLCH. O que o senhor prevê? Porque muita gente pode não se formar no tempo adequado. Pode ocorrer o encerramento de disciplinas?”, questionou Andrade.

“Com esse pacote que eu descrevi para você, 200, 50, 500, mais 63”, disse fazendo referência aos diferentes editais de contratação que citou na resposta à âncora, “a FFLCH vai ter 99% do número de docentes que ela tinha em 2014”, sustentou o reitor, contra todas as evidências, e repetiu: “99% dos docentes”. E voltou a jogar nos ombros da unidade o encargo de suprir os claros existentes: “Então aí você precisa ter uma organização interna para fazer uma distribuição desses docentes para chegar ao valor. Nós não conseguimos aumentar em 50% o número de docentes da USP, não caberia no nosso orçamento. O nosso compromisso é voltar a 2014 e a FFLCH vai ter praticamente uma diferença de 1% do número que ela tinha”.

Neste momento Carlotti Jr. foi interrompido por Vera Magalhães: “A gente está falando em voltar dez anos, né? Desculpe interrompê-lo, mas voltar dez anos atrás [sic] para ficar um pouco pior, sendo que o mundo andou léguas nesse período”, rebateu.

O reitor então alegou inicialmente que nenhum curso foi criado no período, para em seguida corrigir-se: “O único curso criado foi o de Medicina de Bauru, que vai ter uma outra lógica de contratação, a partir do Centrinho, do HRAC [Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais de Bauru]”. Que “lógica de contratação” será esta, uma vez que o HRAC foi desvinculado em 2014 e teve sua gestão transferida ao governo estadual (que por sua vez a terceirizou por R$ 309 milhões à Faepa), ele não explicitou.

A disposição combativa da maior parte da bancada do “Roda Viva” possivelmente surpreendeu o próprio reitor, uma vez que antes da entrevista a Reitoria divulgou amplamente, por meio do Jornal da USP e até mesmo de mala-direta para o corpo docente, sua aparição no afamado programa da TV Cultura.

Outro entrevistador, Moura Leite Netto (Sensu Consultoria), apontou o fato de que no curso de Artes Visuais da Escola de Comunicações e Artes (ECA) onze disciplinas “devem ser fechadas” (canceladas por falta de docentes) e perguntou ao reitor se esse tipo de ocorrência não seria decorrência de um tratamento desfavorável das ciências humanas por parte da Reitoria. “Eu queria entender se esse contexto visto em sala de aula pode ser um reflexo do fato de que essas áreas de humanas acabam produzindo mais pesquisa qualitativa e não quantitativa como medicina, como ciências biológicas, e por conta disso têm um olhar menos atento por parte da universidade”, questionou o jornalista.

Carlotti Jr. negou qualquer atitude discriminatória em relação às áreas de humanas, na atualidade. Reconheceu que durante anos a contratação de docentes na USP esteve focada em produção científica, grandes projetos e pesquisa, mas disse que isso mudou. “O que fizemos em nossa gestão é tratar todos iguais. Você vai ter a mesma reposição em hard sciences, biológicas e humanidades. Nunca as humanidades tiveram tanta igualdade no tratamento quando tivemos agora”. Isso teria ocorrido, alegou ele, até no recente “edital competitivo” para contratação de 63 docentes.

“Não poderíamos ter sido mais agressivos”, repetiu o reitor quanto às cotas para docentes

O reitor também foi questionado quanto à ação judicial interposta pela Defensoria Pública do Estado contra mais de 200 concursos para contratação de docentes abertos pela USP, por não cumprirem as cotas de pretos(as), pardos(as) e indígenas (PPI). Ao responder, ele manteve a alegação burocrática de que segue a orientação da Procuradoria Geral (PG-USP) segundo a qual as cotas não são válidas para concursos anteriores à decisão do Co que instituiu as cotas para docentes PPI.

“Mas a universidade não tem uma postura muito reativa nessa questão, muito lenta?”, perguntou, na sequência, a jornalista Isabela Palhares (Folha de S. Paulo). “Porque a USP já teve esses concursos barrados anteriormente porque não tinha estabelecido uma política de cotas. Agora estabelece essa política não pensando na questão anterior. A USP não deveria se antecipar, e já pensar também que tem um caminho muito mais longo?”, provocou. “Hoje só 2% dos professores da USP são negros. Nas universidades federais eles já passam de 20%. A USP tem um caminho muito mais longo para trilhar, mas me parece adotar uma política mais conservadora. Por quê?”, arrematou a repórter.

Carlotti Jr. retrucou que a política de cotas para docentes adotada pelo Co na reunião de 22/5/2023 é “bastante progressista”, deixando porém de citar as fortes críticas recebidas do movimento negro e das entidades representativas. “Não consigo imaginar que nós poderíamos ter sido mais agressivos do que nós fomos”, disse, repetindo frase que proferiu ao final daquela sessão (e que foi objeto de repúdio de diversos grupos). “Estamos bem de acordo com o que nós propusemos e estamos aplicando esse projeto”, acrescentou. Alegou que há “detalhes jurídicos” e que tem de seguir o “aconselhamento” da PG-USP. Como exemplo de que a universidade “tem sido bastante progressista em relação a isso”, citou a criação da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP).

O jornalista Victor Vieira (O Estado de S. Paulo) perguntou ao reitor qual é a solução proposta para a situação altamente crítica do Hospital Universitário (HU). O reitor comprometeu-se apenas a “manter o atual”, em termos de reformas e contratações. Citou que cento e vinte das 400 contratações de servidores técnico-administrativos realizadas na sua gestão foram destinadas ao HU. “Queremos que aquele hospital funcione bem, mas não vamos fazer uma ampliação. Vamos manter o número de leitos que encontramos no início da questão. A crise que tivemos no pronto-socorro não tem relação com o tamanho do hospital”.

A escassez de docentes na universidade voltou a ser discutida no penúltimo bloco do programa, quando Fernando Andrade questionou Carlotti Jr. quanto a algo já abordado de passagem por Moura Leite Netto: “Por que 11 disciplinas do curso de Artes Visuais não foram oferecidas neste semestre, é falta de professor?”. Ele indagou igualmente se a USP continua oferecendo a disciplina de Libras de forma virtual. Ambas as perguntas partiram de estudantes que assistiam à entrevista. (O reitor respondeu que estão sendo contratados três docentes de Libras, mas que o processo é demorado.)

O reitor tergiversou quanto ao clamoroso caso de Artes Visuais. Frente à insistência de Andrade, respondeu que não domina a “granularidade” do processo e que a ECA recebeu 27 cargos docentes, transferindo assim, novamente, a responsabilidade pelo ocorrido. Mais uma vez, foi questionado pela âncora do programa. “Para um curso de Artes Visuais, se faltam onze professores é quase a ruína do curso, é quase a ruína do sonho do aluno de se formar”, ponderou Vera Magalhães. “Não está havendo um excesso de burocracia e um excesso de insensibilidade da Reitoria para um problema que é humano e que é muito grave, porque diz respeito à vida de jovens que nem começaram a sua vida?”, acrescentou ela.

“Eu tenho que confiar numa estrutura que funciona e que nos levou a ser uma das… entre as 100 [maiores] universidades do mundo”, vangloriou-se Carlotti Jr após explicações sobre a estrutura decisória que avalizou o pacote atual de contratações. Depois, ao responder a um questionamento de Isabela Palhares sobre se não teria ocorrido um erro de diagnóstico no dimensionamento das contratações de docentes, produziu uma nova pérola: “Nós temos 50 unidades na universidade. Não são todas as unidades [sic] que nós estamos tendo esse problema. Onde tem, eu não quero transferir essa responsabilidade para o diretor, dizer ‘a Reitoria fez tudo certo, o problema são os diretores’. Não vou fazer isso”. Ah bom!

EXPRESSO ADUSP


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