Slam e encenações no Congresso do Andes-SN apoiam-se em autores como Solano Trindade, Belchior e Clarice Lispector e no trabalho da Comissão Nacional da Verdade
07/02/2020 07h47
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Teatro, poesia, música e artes plásticas estão entre as manifestações culturais incluídas pela Adusp na programação do encontro que reúne docentes de todo o Brasil na USP
A agenda de debates e votações do 39º Congresso do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN) tem sido enriquecida por uma programação cultural cuja organização ficou a cargo da Adusp, entidade anfitriã do encontro. Diversidade e uma forte conexão com expressões artísticas ligadas a movimentos e questões sociais têm sido as características da programação, que inclui manifestações de artes plásticas, música, poesia e teatro.
Logo na abertura, na última terça-feira (4/2), essa marca esteve presente com a apresentação do slam Letra Preta, de Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo. O grupo tem forte atuação na Biblioteca Comunitária Solano Trindade, criada na região em 2001 pelo Coletivo de Esquerda Força Ativa.
Com cerca de 220 mil habitantes, Cidade Tiradentes conta com 0,39 livro disponível em acervo de biblioteca pública municipal para cada morador de 15 anos ou mais – o distrito com melhor proporção é a Liberdade, com 2,18. Há na região 2,63 equipamentos públicos de cultura para cada cem mil habitantes. A primeira posição é do Butantã, com 53,67. Os dados são do Mapa da Desigualdade 2019 da Rede Nossa São Paulo.
“Este evento é muito oportuno, pois temos governantes antieducação que querem sucatear e acabar com a educação pública, desde a fase infantil até a educação superior. Querem transformar as universidades em máquinas de diplomas que produzam pessoas sem consciência de classe, sem entendimento da humanidade. Logo, é muito importante travar esse debate em favor da educação”, afirmou Nando Comunista, integrante do Letra Preta e do Coletivo Voz Ativa, durante a apresentação do grupo.
No palco, Nando e as slamers Suilan de Sá e Élida Freitas declamaram poemas de Solano Trindade (1908-1974), que dá nome à biblioteca mantida pelo coletivo, e também de autoria própria, como o texto falado por Suilan e inspirado na letra de “Mucuripe”, de Belchior: “As armas do genocídio / vão sair para matar / vão levar a minha alma / pras águas fundas do mar / hoje à noite me deixar / sem direito a saudade / sem direito de sonhar / calça larga desbotada / camisa de gola branca / que até o mês passado / lá no gueto ainda era flor / um sorriso amarelado / de um rapaz preto encantado / com vinte anos de dor. / As armas do genocídio / vão sair para matar / vão levar a minha alma / pras águas fundas do mar / hoje à noite me deixar / sem direito a saudade / sem direito de sonhar / calça preta ajustada / camisa de linho branco / que até o mês passado / lá no gueto ainda era flor / a tiara cor da África / de uma moça encantada / com vinte anos de dor / genocídio gela goela / leva-nos daqui.”
“Nós não nos envergonhamos da nossa história”
Outras apresentações realizadas ao longo do congresso são fruto do trabalho do Grupo de Estudo e Pesquisa Ecoar – Estudos em Corpo e Arte, coordenado pela professora Marilia Velardi, docente da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP.
“O Ecoar é um grupo bastante atravessado por questões de gênero e sociais e debates sobre movimentos sociais”, diz Marina Corazza, dramaturga e mestranda do Programa de Mudança Social e Participação Política da EACH. Nesta sexta (7/2), Marina apresentará o embrião da primeira cena de um trabalho em processo inspirado em Orlando, de Virginia Woolf.
Na terça, Renata Frazão Matsuo apresentou um fragmento de um trabalho chamado (Tra)Vestidas, que também terá novo trecho encenado no sábado (8/2), dia do encerramento do congresso. “O (Tra)Vestidas é fruto direto do Ecoar e tem a ver com uma abordagem metodológica que a gente estuda, que é a investigação acadêmica a partir da prática artística como um meio de organização do conhecimento produzido durante a pesquisa”, explica a atriz Nathália Bonilha, mestranda na EACH e integrante do grupo. Esse trabalho tem por base o texto “Se eu fosse eu”, de Clarice Lispector.
Nesta quinta (6/2), Nathália e as atrizes Diane Boda e Jamile Rai apresentaram um trecho da peça Contra AI-5, do Coletivo Atos de Resistência. No espetáculo completo, sob a direção de Paulo Maeda e Thammy Alonso, são encenadas as falas de 22 mulheres que combateram a Ditadura Militar. O texto é retirado diretamente dos depoimentos dessas mulheres à Comissão Nacional da Verdade (CNV) ou a comissões instaladas nos Estados.
Os três depoimentos escolhidos para o fragmento de Contra AI-5 apresentado no congresso — os de Nilza Fontes, Suzana Lisboa e Criméia de Almeida — impactaram fortemente os e as docentes participantes. Torturada enquanto estava grávida, Criméia pouco viu o filho após o parto e temeu que a criança pudesse ser encaminhada para adoção clandestina por parte de alguma família de militares ou policiais ligados à ditadura. O filho João só lhe foi restituído 53 dias após o nascimento. “E nós, que perdemos essa guerra, que perdemos nossos familiares, a gente está sempre disponível para contar a nossa história, porque nós não nos envergonhamos dela”, conclui o depoimento.
EXPRESSO ADUSP
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