O produtivismo acadêmico e as avaliações e ranqueamentos dele decorrentes representam uma “solução (falsa) à procura de um problema”. Além de não favorecer um avanço substancial da ciência nacional, nem contribuir para resolver os verdadeiros problemas do ensino superior, o sistema produtivista baseado em recompensas simbólicas e monetárias gera distorções — e o “pensamento mercantilista” já está afetando as novas gerações de docentes e pesquisadores. Por outro lado, o momento atual convida à reflexão sobre como reverter esse estado de coisas, de modo que a produção científica nacional possa gerar impacto social positivo, contribuir para aperfeiçoar políticas públicas e a gestão pública no Brasil e até mesmo aperfeiçoar as práticas empresariais.

Tais conclusões sintetizam o debate “Produtivismo acadêmico: origens e atualidade”, iniciativa da Comissão de Mobilização (CM) da Adusp, que reuniu no Anfiteatro da História, em 3/11, os professores Thomas Wood Jr., da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e colunista da revista CartaCapital, e Otaviano Helene, do Instituto de Física da USP e ex-presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP-MEC). A mesa foi composta ainda pelos professores Pierluigi Benevieri (IME), da CM, que coordenou o debate, e Adriana Tufaile (EACH), da diretoria da Adusp.

Helene começou pela avaliação de que os indicadores de educação e de ciência e tecnologia não são favoráveis ao Brasil. “A América Latina tem 14 ganhadores de prêmios Nobel, cinco dos quais em ciências: Física, Química e Fisiologia, e o restante é ou Literatura ou Paz. Nenhum é brasileiro. E o Brasil é metade desse conjunto. Então, cientificamente a gente não está nada bem. A gente pode estar bem quando põe, por exemplo, número de artigos publicados etc: somos o décimo-quinto país do mundo. Só que somos a quinta população”, ponderou.

“Ser a quinta população e ser o décimo-quinto país em termos de produção cientifica, mesmo medido por uma métrica duvidosa, ou insuficiente, não é nada bom”, continuou. “Quando a gente relativiza para o tamanho da população, o Brasil cai para a posição 86 num conjunto de 200 países. Quer dizer, a gente está na melhor das hipóteses na média mundial”. Argentina, Chile e Uruguai estão muito melhor posicionados, acrescentou. No entendimento do professor do IF, num balanço geral, “a situação brasileira, quer na ciência e tecnologia, quer na educação, é muito ruim, é muito grave”, e a situação tende a piorar muito com a PEC 55 (ex-241).

Armadilhas

No tocante aos processos de avaliação, ele recomendou cuidado com os ranqueamentos, embora eles sejam “usáveis para algumas coisas”, a depender das finalidades. “É preciso tomar um pouco de cuidado com armadilhas desses ranqueamentos, porque às vezes o ranqueamento é utilizado para justificar alguma ação”. Para ilustrar seu argumento, Helene citou que, na USP, Agronomia, Filosofia e Arquitetura são as três áreas de conhecimento mais bem avaliadas nos rankings internacionais. Assim, se unidades como a Escola Politécnica e a Faculdade de Medicina, bem como os outros cursos da FFLCH exceto a Filosofia, vierem a fechar, “a USP vai lá para cima no ranking quer dizer, uma ação totalmente errada melhora o ranking”.

Deu também um exemplo em sentido contrário. Comentou que em todas as unidades da USP há pesquisadores de pós-doutorado, os chamados “pós-docs”, os quais recebem bolsas ou alguma outra forma precária de remuneração e publicam papers que têm como coautores seus colegas, seus orientadores e outros professores. “Se esses pós-docs entrarem no corpo docente da USP, e com isso a gente por exemplo reduzir a carga horária dos professores, aumentar as vagas, expandir a universidade etc. todos ganham. Os pós-docs porque continuam recebendo dinheiro público numa situação muito mais estável. Nós, sobrecarregados com as aulas, vamos ter com quem repartir as classes. Vamos ter mais estudantes. Todo mundo ganha, mas a USP cai no ranking, porque esses pós-docs, que não eram contados no denominador de papers por docente, vão passar a ser contados. Então, uma ação correta põe numa situação pior no ranking”.

Em alusão à “Nova CPA”, Helene destacou que a avaliação realizada pela própria USP “nunca foi baseada num diagnóstico”, não contando sequer com alguma base teórica: “É uma solução em busca de um problema. Inventaram o remédio. Os senhores proponentes dessas avaliações não têm nenhum paper, nenhum artigo, nada escrito sobre avaliação. Um deles, quando o consultei num debate, citou um artigo qualquer, quando eu fui ver o artigo não tem nada a ver com o problema que ele está tentando enfrentar na avaliação. Não tem referência bibliográfica nenhuma. Estão avaliando sem saber como é que funcionam as avaliações”.

Depois de registrar que a USP passa por processos de avaliação interna e externa, sendo esta mais ou menos periódica, advertiu: “A avaliação externa nunca foi avaliada. As avaliações da Capes também não foram avaliadas, para saber qual seria a melhor avaliação para a USP”. A seu ver, a avaliação que prevalece na atualidade é tipicamente neoliberal. “É o estado de espírito do neoliberalismo: cada um por si. E conta paper enquanto for vantajoso para eles, quando não for vai contar outra coisa”.

Administração

Wood Jr. relatou que se inteirou da temática do produtivismo quando passou a coordenar a área de pesquisa da Escola de Administração da FGV, há cerca de seis anos. “Como decorrência disso, passei a escrever alguns textos sobre essas questões na CartaCapital. Eu sempre falava: estou falando de Administração, mas os leitores não se importavam, gente da Agronomia, Química, Física, de todas as áreas”. No debate ele abordou os vínculos entre Administração e ciências e a relação entre essas áreas e o produtivismo.

“O produtivismo tem sido muito forte no Brasil”, reconheceu. “Eu separo produtividade, que é você conseguir fazer mais com menos recursos, de produtivismo, que é fazer mais a qualquer custo. Primeiro, essa orientação exagerada por produção, todo mundo obcecado por publicar. O assunto não importa mais. Importa se você vai ou não publicar”. Ele recorreu a uma metáfora: a produção em escala industrial de artigos-padrão equivaleria à “linha de montagem” de uma “fábrica de carburadores”, ou seja: destinada à produção de um item obsoleto. “A gente está produzindo uma coisa que não se lê. É uma coisa anacrônica, é assustador”.

O professor da FGV avalia que, atualmente, a própria Capes está mudando essa noção de “quanto mais artigos, melhor”, valorizando mais a qualidade. Mas apontou as distorções estimuladas pelo sistema. “Tenho visto a ciência-salame muito frequentemente: três, quatro publicações da pessoa e ela está falando a mesma coisa, é a mesma pesquisa dividida em várias partes para maximizar o número de publicações e a pontuação. E muito comum também a carona: coloca o nome de mais um colega no trabalho, que foi lá assistir à banca, ou deu uma olhadinha na parte metodológica. Isso já passou, está longe do limite ético. Essas coisas todas vêm dessa pressão por quantidade”.

Como é que isso aconteceu, indagou? No caso da FGV, esclareceu, a pressão começou a aumentar há cerca de vinte anos, quando a produção científica da instituição era reduzida, havia orientação para publicação de livros didáticos e o foco dos professores era ensino e consultoria. “A Capes fez um pouquinho desse papel, mas para nós foram principalmente as acreditações por órgãos internacionais. A FGV se propõe a ser uma escola internacional. A gente instituiu um monte de incentivos, bônus, prêmios, e não é pouco dinheiro, apoio aos professores para produzir artigos, coaching de professores para auxiliar na produção dos artigos, pagamento para congressos, tudo com dinheiro interno. Tudo isso foi feito e funcionou, aumentou fortemente a produção. Agora, qual produção aumentou? A fábrica de carburador”.

Um dos resultados colaterais é que a cultura científica mudou. “E se estabeleceu de fato um pensamento mercantilista, horroroso. As pessoas pensam claramente quanto elas vão ganhar: se eu publicar no periódico tal, não importa quem vai ler, é qual é o prêmio desse periódico. Tem a lista lá que diz: esse periódico é R$ 40 mil que você ganha no final do ano se publicar [nele], esse outro é R$ 20 mil… Isso está mudando a forma de as pessoas encararem ciência. Pessoalmente fico muito preocupado com o pessoal mais jovem, que está hoje fazendo mestrado e doutorado. Eles entram com ótimas ideias, preocupações, querendo resolver problemas, trazer contribuições, e em pouco tempo entram bonitinho nesse sistema. De congresso, pontuação, publicação etc”.

Confira o vídeo do debate:

 

EXPRESSO ADUSP


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