Conjuntura Internacional
No Brasil, docentes repudiam “cruzada censória” do governo Trump contra a pesquisa científica, e “comportamento digno da Idade Média”
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O governo de Donald Trump decidiu promover um ataque sem precedentes à ciência, que se manifesta até agora em duas dimensões. No âmbito do financiamento, Trump procura reduzir a não mais que 15% o subsídio federal às chamadas “despesas gerais” da pesquisa centífica, que correspondem a custos indiretos decorrentes de atividades administrativas e de suporte às pesquisas propriamente ditas. Ao menos por enquanto, essa medida de corte vem enfrentando grande resistência e sofreu alguns reveses da parte de juízes federais.
A política de cortes de Trump provoca inesperados reflexos no Brasil. Nesta quarta-feira, 12 de fevereiro, o Jornal da USP revelou que um “grande projeto de pesquisa sobre doença de Chagas no Brasil”, liderado pela afamada professora Ester Sabino, da Faculdade de Medicina (FM-USP), “está paralisado por conta das restrições impostas pelo novo presidente norte-americano ao financiamento de programas no exterior”. O projeto, que pretende “desenvolver novas metodologias para o diagnóstico e o tratamento de Chagas”, é realizado em parceria com três universidades de Minas Gerais e financiado pelos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (National Institutes of Health, ou NIH).
O custo total do projeto é de cerca de US$ 2 milhões, com desembolso anual de US$ 400 mil, para cinco anos de pesquisa (2022-2026). “Sabino conta que, ao enviar a ordem de pagamento das despesas de janeiro ao NIH (no valor de US$ 23 mil), recebeu a informação de que o pagamento fora rejeitado e que era necessário aguardar orientações do Escritório de Administração e Orçamento (OMB) do governo americano, sem maiores explicações”, relata o Jornal da USP.
A outra frente sob ataque do governo Trump, porém, é igualmente estratégica. Trata-se do próprio teor das pesquisas e das publicações científicas, na medida em que Trump simplesmente determinou a supressão de parte da linguagem utilizada nos papers e publicações médicas federais. Assim, segundo relato da Agência Reuters, por meio de uma ordem executiva, emitida em 31 de janeiro, Trump ordenou ao Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA que os textos governamentais façam referência unicamente aos sexos masculino e feminino, o que implicará uma revisão de todos os materiais em vias de publicação, com a finalidade de excluir palavras como “gênero”, “transgênero”, “LGBT” (lésbica, gay, bissexual e transgênero) e “não binário”.
No dia 7 de fevereiro, descobriu-se no Brasil que a censura praticada por Trump é ainda mais ampla, atingindo igualmente a área de ciências humanas, e que certamente afetará pesquisadores(as) brasileiros(as) que dependem de bolsas mantidas por instituições norte-americanas.
Nessa data, conforme relata o site da APUBH-Sindicato dos Professores de Universidades Federais de Belo Horizonte, Montes Claros e Ouro Branco, a “cruzada censória conduzida pelo governo Trump, por meio de interferência e varredura nas universidades e agências de fomento à pesquisa nos Estados Unidos”, fez as “primeiras vítimas” na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Os professores Marco Antônio Sousa Alves e Lorena Martoni, ambos da Faculdade de Direito da UFMG, que foram contemplados em 2024 com uma bolsa da Fundação Fulbright (Fulbright Specialist Program), foram comunicados pela representação brasileira da entidade de que o seu projeto foi censurado, por conter termos que se contrapõem às diretrizes impostas pelo governo Trump. “A bolsa seria utilizada para subsidiar a vinda de um professor da Columbia University para a Faculdade de Direito da UFMG por um período de 15 a 45 dias”, informa o site da APUBH-Sindicato.
Intitulado “O dilema da teoria crítica do direito: desafios contemporâneos”, o projeto de Marco Antônio e Lorena faz referência explícita à extrema-direita (far-right) e à “crise dos princípios democráticos”. A solução apresentada pela Fulbright Brasil para que a bolsa seja concedida, explica a APUBH, é a troca ou supressão de palavras ou expressões como: direitos humanos; perseguições por gênero, classe ou raça; emancipação social; promoção da justiça social; sistemas de opressão; crise dos princípios democráticos; crise ecológica; violação de direitos humanos e civis etc.
“É uma situação bizarra. Me sinto negociando uma bolsa com um regime ditatorial”, declarou Marco Antônio nas redes sociais. “Vejo um novo macartismo crescendo. E um regime autoritário nos EUA não é a mesma coisa que uma ditadura na Coréia do Norte, Hungria ou Venezuela, pois traz consequências muito mais nefastas (inclusive para o mundo acadêmico) e mexe com a geopolítica internacional de uma forma bem mais perigosa”.
“Jamais poderia imaginar que um dia temas de pesquisa seriam censurados”
“Fui bolsista da Fulbright em 1991. É uma instituição respeitada, um dos pilares da diplomacia cultural dos EUA. Jamais poderia imaginar que um dia os temas de pesquisa seriam censurados”, declara ao Informativo Adusp Online o historiador João Roberto Martins Filho, professor titular sênior do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Ele é uma das principais referências nos estudos sobre os militares brasileiros e a Ditadura Militar (1964-1985).
Martins Filho atuou como pesquisador visitante na Universidade da Califórnia em Los Angeles (1997) e, em dois períodos diferentes, na Universidade de Oxford (2006 e 2013). Assumiu a Cátedra Rio Branco em Relações Internacionais, patrocinada pela Capes e pelo Itamaraty, no King’s College de Londres (2014), e por duas vezes a Cátedra Rui Barbosa de Estudos Brasileiros na Universidade de Leiden, Holanda (2015 e 2018). “Li há pouco o livro A derrota do Ocidente de Emanuel Todd. Desde a publicação do livro, as previsões de Todd se revelaram certeiras”, diz.
“O primeiro mandato de Trump foi um verdadeiro desastre durante a pandemia de Covid-19, apesar dos esforços da comunidade científica, encabeçada pela direção do National Institutes of Health (NIH). É esse mesmo NIH que financia 80% da pesquisa na área de saúde, através do NIH Office of Extramural Research”, explica Elisabeth Spinelli de Oliveira, professora aposentada, desde abril de 2023, do Departamento de Biologia da Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP).
Elisabeth trabalhou no câmpus de Bethesda (Maryland) do NIH no período de 1974-1977, concluiu seu doutorado em Farmacologia na USP em 1989 e realizou pós-doutorado na Universidade de Münster (Alemanha), em 1996-1997. “Embora haja autonomia, a administração trumpista mostrou como até o NIH pode ficar encurralado frente às arbitrariedades do presidente, presentemente mais senhor de seu staff do que na administração passada. Perdem os EUA, perde o mundo todo da Ciência”, diz.
“Pensei que apenas o Brasil vinha flertando com o obscurantismo. Agora vejo que é uma tendência mundial. Pior ainda, o ‘País da Ciência’ (EUA), um dos que mais têm investido em pesquisa, passa a ter um comportamento digno da Idade Média”, comenta Pedro Ismael da Silva Jr., pesquisador do Instituto Butantan e orientador pleno da pós-graduação do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB-USP), onde também obteve seu doutorado. Como orientador ou coorientador, ele já formou 16 mestres e 15 doutores na USP e em outras universidades.
“Só falta queimar os pesquisadores em praça pública para o júbilo do povo. Isso claramente lembra a ascensão de Hitler em 1933-34”, adverte Silva Jr., cujas publicações sobre aracnídeos e suas toxinas somam mais de 4 mil citações.
“Há uma intenção de revanche em relação ao conhecimento científico”
“O ambiente científico e as universidades aqui nos Estados Unidos estão passando por um momento de enorme tensão e incerteza, eu diria até temor. Pesquisas em várias áreas, em particular no campo da saúde, mas também nas humanidades, estão sofrendo retaliação do governo de extrema-direita de Trump”, avalia o professor Paulo Fontes, do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e atualmente fellow no Radcliffe Institute da Harvard University.
“As agências científicas estão aparentemente num processo de desmonte. A meu ver, há uma clara intenção de revanche em relação ao conhecimento científico. As universidades em geral são ambientes considerados progressistas e antitrumpistas portanto. Então, nos setores mais fascistas do governo e do bloco de apoio de Trump, há uma clara ideia de perseguição a estes espaços, de atacar as ideias de diversidade, de luta antirracista, de inclusão social”, avalia o docente da UFRJ, em declarações prestadas ao Informativo Adusp Online.
“Aqui em Harvard por exemplo há um temor de que o governo, que já está fazendo isso, congele fundos públicos que são importantes para a universidade. No Brasil a gente tem uma certa imagem de que essas grandes universidades norte-americanas, por serem privadas, não dependeriam de fundos públicos, mas isso não é verdade. Muitas pesquisas de ponta nas áreas científicas mais importantes são financiadas com recursos públicos e com fundos públicos”, esclarece. Assim, acrescenta, as medidas de Trump colocam em xeque avanços científicos importantes.
“Esse obscurantismo do governo é bastante seletivo, obviamente, tanto em termos de áreas quanto de universidades a serem atingidas. Os setores empresariais, o Vale do Silício, o setor armamentista, precisam do conhecimento científico para o seu desenvolvimento”, pondera. A seu ver, o governo mira em alvos bastante específicos, buscando “criar um processo de autocensura, de controle interno”, que já está acontecendo. “Em várias universidades reitores, administradores adotaram uma postura bastante cautelosa, porque temem maiores represálias. É um quadro muito difícil”, admite.
Por outro lado, a investida do governo Trump contra a ciência e os cientistas gerou uma reação da força de trabalho que atua no setor. Sob a palavra de ordem “Tirem as mãos da nossa saúde, da nossa pesquisa, dos nossos empregos!”, os sindicatos de trabalhadores(as) do ensino superior convocaram um “Dia Nacional de Ação” a ser realizado em 19 de fevereiro próximo. Uma reunião preparatória para discutir uma estratégia nacional unificada seria realizada nesta quinta-feira, 13.
“A classe bilionária está travando uma guerra contra os trabalhadores, colocando em risco a saúde, a pesquisa, a educação e os empregos do nosso país. Esses ataques têm como alvo trabalhadores de faculdades e universidades de várias maneiras: impondo um teto aos custos indiretos de bolsas no NIH , congelando o financiamento para pesquisas cruciais e ameaçando trabalhadores acadêmicos em todo o país”, diz a convocatória do Dia Nacional de Ação.
“Sem resistência em massa, esses ataques resultarão em demissões, fechamentos de programas e escolas e devastação para economias locais que dependem do impacto econômico dessas faculdades e universidades”, avisa o texto. “Pesquisas que salvam vidas em tópicos como câncer, pandemias virais, doenças cardíacas, diabetes e Alzheimer não serão concluídas, ou mesmo iniciadas. Trabalhadores do ensino superior — que há muito enfrentam crescente precariedade no emprego — agora estão enfrentando uma insegurança no emprego sem precedentes”.
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