Saúde
Em meio ao desamparo na pandemia e a uma reforma atabalhoada, o Crusp resiste, mostra documentário de estudantes da ECA
09/02/2022 09h36
O contraste das imagens do vídeo institucional “A USP é de todos, a USP está em você!” com aquelas captadas nas dependências do Conjunto Residencial da USP (Crusp) é explorado de forma marcante já na abertura do documentário “Bloco D: (des)amparo na pandemia”, de autoria dos alunos Diego Macedo, Giovanni Marcel, Luccas de Almeida Nunes e Pedro Smith, da Escola de Comunicações e Artes (ECA), e realizado sob orientação do professor Renato Levi (vídeo ao lado).
O documentário foi produzido em meio à indignação da comunidade de moradora(e)s do Crusp com o anúncio da necessidade de súbita desocupação do Bloco D para o início de uma reforma, em 2021 — às vésperas do final de um semestre letivo e em plena pandemia.
O processo, caracterizado como “despejo” pela comunidade, foi conduzido de forma atabalhoada, sem planejamento e sem transparência pela Superintendência de Assistência Social (SAS). No dia 26 de de julho, a SAS enviou um comunicado por e-mail aos moradores e moradoras concedendo o prazo exíguo de 20 dias para que deixassem os apartamentos.
A mobilização da(o)s moradora(e)s, inclusive com intervenção judicial, e de outros setores, como a Frente USP Democrática e Solidária, obrigou a universidade a prorrogar o prazo para a desocupação.
Problemas decorrentes da falta de planejamento foram inevitáveis — entre eles, como relatam a aluna e o aluno entrevistados pelo documentário, estava o fato de que as obras foram iniciadas enquanto alguns apartamentos ainda estavam ocupados, fazendo com que trabalhadores da empresa contratada para a reforma eventualmente “surpreendessem” aluna(o)s em suas moradias.
“Essa reforma pegou todo mundo de surpresa. A gente sabia que em algum momento [o Crusp] iria passar por reforma. A gente não sabia qual era o bloco e em que momento isso iria acontecer. Mas posso dizer que ninguém imaginava que fosse acontecer no meio da pandemia”, testemunha Gabriella Proença, aluna do curso de Geologia e moradora do conjunto desde 2019.
“As pessoas têm uma vida dentro do prédio, são moradores, não hóspedes de um hotel”, prossegue. “Trataram os alunos como se fossem estranhos, como se não fossem bem-vindos na universidade.”
Embora reconheça que a reforma era necessária e vinha sendo demandada pela(o)s moradora(e)s, Diego Gonçalves, o “Pii”, aluno do curso de Ciências Sociais e morador do Crusp desde 2018, ressalta que todo o processo “foi feito de cima para baixo” e “sem nenhum tipo de diálogo”.
Pii considera que é necessário que o Crusp tenha novos blocos para oferecer mais vagas, num processo de expansão que favoreça a(o)s aluna(o)s que vêm entrando a partir da implementação das cotas na universidade.
“É como se a USP estivesse expulsando os menos privilegiados”, afirma aluna
Gabriella qualifica a conduta da USP no processo da reforma como “um tapa na nossa cara”. Na sua avaliação, muita(o)s aluna(o)s precisam da moradia para continuar frequentando a universidade e, nesse contexto, é como se a USP “estivesse expulsando os menos privilegiados, os que vêm de uma realidade que diverge da maior parte dos alunos.”
“É como se ela dissesse que não se importa conosco, com a nossa permanência. O Crusp existe para isso, para a permanência das pessoas menos favorecidas e que são economicamente fragilizadas”, afirma. “Todo mundo se sentiu extremamente perdido, se sentiu invisível dentro da universidade.”
De acordo com a estudante, mesmo a reacomodação da(o)s moradora(e)s em outros apartamentos quando do início da reforma se deu muito mais em função da mobilização da própria comunidade cruspiana do que pela ação da SAS.
O contraste entre o discurso oficial e o cotidiano da(o)s moradora(e)s se mantém. No dia 21/1, poucos dias antes do final da gestão de Vahan Agopyan, o então vice-reitor Antonio Carlos Hernandes e o pró-reitor de Graduação, Edmund Chada Baracat (que continua no cargo em caráter pro tempore), “inauguraram” o espaço que sediará a nova lavanderia coletiva do Crusp, no bloco E. A “inauguração” foi acompanhada por uma diretora do DCE Livre “Alexandre Vannucchi Leme”.
A área de 400 metros quadrados, destinada ao atendimento de todos os blocos, ainda está vazia. A USP não vai comprar os equipamentos, mas contratar uma empresa que vai fazer a instalação e manutenção das máquinas.
No início da reforma do Bloco D, a SAS prometeu que todo o processo de evolução da obra poderia ser acompanhado por meio de uma página em seu site na Internet. Porém, a área destinada ao cronograma não tem nenhuma atualização e registra o índice de 0% de etapas realizadas.
Problemas de saúde mental se agravaram com isolamento
Os depoimentos de Gabriella e Pii abordam também outros temas, como a realidade da(o)s moradora(e)s que permaneceram no Crusp durante a pandemia — cerca de 400 dos 1.600 residentes — e os problemas enfrentados na comunidade, que vão desde as questões de infraestrutura física até as dificuldades de convivência e de saúde mental.
Em termos de infraestrutura, a manutenção dos apartamentos é bastante precária e há problemas crônicos como a falta de lavanderias e de cozinhas. Muitos blocos têm infiltrações, sofrem interrupções no fornecimento de energia e chegam a ficar sem água às vezes por dias seguidos. Outras carências são a falta de acessibilidade e de saídas de emergência, bem como de portas corta-fogo e escadas externas.
Já a pandemia favoreceu o isolamento e a falta de contato com a(o)s colegas num câmpus que se tornou quase deserto de um dia para outro. Novas dificuldades vieram com problemas como o fechamento do bandejão e a carência nas opções de alimentação, que a universidade tentou resolver com o fornecimento de marmitas cuja qualidade era muito criticada pela(o)s moradora(e)s.
“A gente se sentiu muito sozinho, sem muito amparo psicológico”, relata Gabriella. “A gente ficou muito abandonado aqui em termos de suporte por parte da USP. A USP disponibilizou a marmita e só.”
A aluna considera que a pandemia impôs um isolamento que contribuiu para piorar quadros de depressão, ansiedade e crises de pânico. Não por acaso, foram registrados vários casos de suicídio no período.
Na avaliação de Pii, a convivência de muitas pessoas em situação de vulnerabilidade num ambiente que não tem a estrutura adequada agrava os problemas.
“A USP deveria ser responsabilizada não só pelos suicídios, mas pelos adoecimentos. Muita gente vai para um lugar de que não volta. Obviamente existe uma pessoa que é coautora da sua própria desgraça, mas a universidade tem muita parcela de culpa nisso, até porque não é um caso ou outro, é muito sistêmico, e a permanência dessas pessoas em situação de abandono aqui dentro é o que mais contagia”, afirma.
Gabriella diz que o que mais gosta no Crusp “são as interações sociais, e o que menos gosto são as interações sociais”. Em sua opinião, muitas pessoas precisam de apoio psicológico e não o têm na moradia, na USP e nem na família, “o que acaba tornando esse ambiente meio desgastante”.
A estudante enxerga uma universidade que, em vez de se abrir cada vez mais, está se fechando. Como exemplo, cita a construção de um posto da Polícia Militar nas imediações do Crusp e a ocorrência de episódios como a perseguição de PMs numa viatura em alta velocidade a um aluno que estava de bicicleta. A viatura invadiu a calçada e os policiais continuaram a perseguir o aluno correndo com armas na mão. “Esse é o tipo de ação que você espera da polícia perante estudantes?”, pergunta. “Parece que tudo é para limitar o nosso acesso, e não para expandir.”
No entanto, diz Gabriella, “o Crusp resiste”. “Nós resistimos dentro do Crusp. O Crusp é resistência, é realmente uma permanência estudantil. A gente vai resistir até onde a gente puder — e [quando] não puder também.”
A Reitoria alardeia que mais de 50% de estudantes da USP são provenientes de escolas públicas, mas não se preocupa em adotar políticas de permanência que contemplem esse contingente do alunado adequadamente e na sua totalidade. Uma comparação do primeiro semestre de 2020 com o segundo semestre de 2019 revela que o número de trancamentos e não matrículas nos cursos de graduação da universidade cresceu 26%, índice alto e que deveria merecer mais atenção da administração central.
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