Defesa da Universidade
Em meio ao colapso do Crusp, Reitoria enaltece parcerias com a iniciativa privada que oferecem exatas 9 bolsas-moradia
Informativo Adusp solicitou ao vice-reitor Antonio Carlos Hernandes cópias dos termos de parceria firmados com as empresas Uliving Brasil e Share Studing Living. Até o fechamento desta matéria, contudo, esses documentos não foram repassados
Foto: Cecília Bastos/USP
Ao mesmo tempo em que se agravam as condições de permanência no Conjunto Residencial (Crusp) da Cidade Universitária e nos câmpus do interior, a Reitoria firmou parceria com as empresas Uliving Brasil e Share Student Living, que atuam no segmento de moradia estudantil do mercado de imóveis e oferecerão nove “pacotes de hospedagem” gratuitos, por até cinco anos, a estudantes da USP oriundos de escolas públicas. É a chamada bolsa-moradia, que a Reitoria associa ao programa denominado “Vem pra USP!”.
A iniciativa foi divulgada com alarde em reportagem publicada em 25/6 no Jornal da USP, mídia eletrônica oficial da universidade. De acordo com essa matéria, as bolsas-moradia “são destinadas a alunos aprovados no vestibular Fuvest 2021, para cursos na cidade de São Paulo, e que participaram da Competição USP de Conhecimentos (CUCo) do Programa Vem Pra USP!”.
Além da hospedagem, as bolsas incluem gastos com água, energia, gás e Internet. “Os contratos deverão ter duração de 12 meses, podendo ser renovados por até 60 meses, dependendo da avaliação do desempenho acadêmico do aluno”, diz o Jornal da USP.
Na reportagem, o vice-reitor Antonio Carlos Hernandes afirma que o “Vem pra USP!” é um “exemplo de ação social na educação com capilaridade, presente em 642 municípios e em quase todas as escolas públicas do Estado”, e enfatiza: “Para a USP é importante agregar mais e mais parcerias”.
Aempresa Uliving Brasil oferecerá três vagas em apartamentos de sua rede, localizados na cidade de São Paulo. O convênio tem duração de cinco anos e valor anual é estimado em R$ 90 mil. Já o termo de parceria da USP com a Share Studing Living, assinado em abril, prevê o oferecimento de seis vagas a partir de agosto, no empreendimento denominado “Share Butantã”.
“Empresas entraram em contato com a USP”, diz vice-reitor
O Informativo Adusp indagou ao vice-reitor, por intermédio da Assessoria de Imprensa da Reitoria, como foram selecionadas as empresas Uliving e Share Student Living para firmar parceria com a USP. “As empresas citadas entraram em contato com a Universidade para fazer a doação das bolsas para os estudantes oriundos de escolas públicas que participaram da Competição USP de Conhecimentos (CUCo) do Programa Vem Pra USP!”, respondeu Hernandes.
Questionado quanto ao baixo número de moradias oferecidas, praticamente irrelevante frente à demanda existente, e quanto à visibilidade concedida pelo Jornal da USP a uma iniciativa de empresas privadas, o vice-reitor tangenciou: “A divulgação da parceria no Jornal da USP tem dois objetivos: incentivar os estudantes a participarem da CUCo e incentivar outras empresas a fazerem doações à Universidade”.
Indagado quanto à existência de eventual contrapartida à Uliving Brasil e à Share Studing Living, “financeira ou de outra natureza”, Hernandes limitou-se a declarar que não há “nenhuma contrapartida financeira”.
Solicitado a esclarecer que providências a Reitoria pretende adotar frente à necessidade de urgente reforma e melhorias no Crusp, o vice-reitor citou matéria publicada recentemente pelo Jornal da USP, reiterando que já foi licitada a reforma do Bloco D, “que possui sete pavimentos e terá toda a infraestrutura elétrica e hidráulica readequada, além de um novo reservatório de água”. De acordo com ele, a obra inclui reforma das cozinhas, lavanderia, salas coletivas e acessibilidade em todos os ambientes. “Será a primeira grande reforma estrutural desde a criação do Crusp. A Superintendência de Assistência Social (SAS) está providenciando a realocação dos alunos para dar início à reforma”.
Em outra frente, acrescenta, “um sistema de Internet de alta velocidade está sendo instalado, com o uso de ‘cabos irradiantes’ que levarão acesso de qualidade a todos os apartamentos do conjunto”.
Hernandes declarou ao Informativo Adusp, ainda, que “em poucos dias” uma nova estrutura estará à disposição dos estudantes que participam dos programas de assistência social da USP: “O novo Centro de Acolhimento foi construído dentro do Conjunto Residencial, próximo ao Anfiteatro Camargo Guarnieri, e tem previsão de entrega até o final do primeiro semestre. Além da facilidade de localização, a nova estrutura vai centralizar as demandas dos alunos com dificuldades socioeconômicas”.
Também solicitamos ao vice-reitor cópias dos termos de parceria firmados com as empresas Uliving Brasil e Share Studing Living. Até o fechamento desta matéria, contudo, esses documentos não foram repassados ao Informativo Adusp.
“Parece um inexplicável distanciamento da realidade”, diz professora
“Tenho até certa dificuldade para comentar, pois não acho palavras para nomear e descrever este episódio. Em um momento no qual a universidade está em ebulição com suicídios e precariedade do Crusp, o feliz anúncio da parceria com as empresas para concessão de nove bolsas parece algo como um inexplicável distanciamento da realidade. Fico com a impressão de que a parceria serve mais para as empresas do que para os estudantes da USP”, comentou, a pedido do Informativo Adusp, a professora Elizabete Franco Cruz, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH).
A docente, que há tempos acompanha a situação do Crusp, se diz “perplexa e estupefata” com a notícia publicada sobre a bolsa-moradia. “Diante do Crusp sem cozinha,sem luz, com 500 estudantes na pandemia habitando um espaço com infraestrutura precária, a resposta institucional são nove bolsas para alunos bem sucedidos?”, questiona. A seu ver, está em curso na USP, nitidamente, “o paradoxo da adoção de cotas e do abandono dos cotistas e dos que não se enquadram nos padrões tradicionais da universidade”.
Referindo-se à imagem, publicada pelo Jornal da USP, de um dos quartos oferecidos pela empresa Uliving, Elizabete considera haver, em síntese, um um delineamento do lugar de pobres e negros na USP. “Eu vi aquela foto do quarto e pensei nos espaços que conheço do Crusp. Duas fotos que são antíteses. O que me entristece é que a USP tem várias bolhas, mas há uma turma vivendo situações muito difíceis e outra parte está nesta bolha imaginária do sucesso de suas ações. Esta é a política de permanência da USP? O Crusp coexistindo com nove lindos quartos?”
No entender da professora da EACH, a universidade não está sabendo lidar com o fato de que a realidade da USP mudou com o ingresso de estudantes por meio das cotas. “Já registrei com algumas colegas ideias sobre isto, mas penso que há realmente uma questão conceitual e que a USP precisa mudar o paradigma. Feliz pelo(a)s nove estudantes que terão bom quarto, mas arrasada pelo Crusp e pelo que parcerias como estas nos contam sobre a USP e seus projetos de futuro”.
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